quinta-feira, 5 de julho de 2018

2027: Irá a procissão passar do adro?


Festejaram-se há dias os cinco anos de nomeação pela UNESCO da Universidade de Coimbra como Património Mundial da Humanidade. Relembro que a zona demarcada da cidade é ocupada pela Universidade em dois “pólos”: “Alta e Sofia,” o “pólo um” e o “pólo zero”, uma vez que o Mosteiro de Santa Cruz, contíguo à rua da Sofia, teve a ver primeiro com os Estudos Gerais no tempo de D. Dinis e depois com a fixação definitiva da Universidade em Coimbra no tempo de D. João III.

Há excelentes razões para todos nos termos regozijado com a aprovação da candidatura preparada pelo reitor Fernando Seabra Santos. E também há razões para estarmos satisfeitos com algumas das consequências da candidatura - um maior cuidado com a Alta e um maior afluxo de turistas, designadamente estrangeiros. Mas também há razões para insatisfação.

Um dos óbices do projecto foi o facto de não ter havido uma candidatura conjunta da Universidade e da cidade.

O divórcio continua à vista, com a Câmara a permitir o tráfego e estacionamento prolongado de autocarros na Rua Larga (uma via essencialmente pedonal que, apesar de larga, já não chega para o parque de estacionamento em que se transformou), a permitir pichagens em edifícios históricos muito próximos da Universidade (no outro dia passei pela Igreja de São Salvador e fiquei apavorado com o vandalismo) e a ser incapaz de fazer o que quer que seja em favor da rua da Sofia (essa rua, com monumentos por qualificar, fechados ao público, continua inerte como aliás toda a Baixa onde a rua se insere).

A falta de cuidado com o património revela afinal a incultura da actual gestão camarária: podiam ser dados outros exemplos, mas um verdadeiramente inacreditável é o abandono a que está votado um notável hospital medieval - o Hospital de São Lázaro, criado por testamento do rei D. Sancho I, que está sepultado em Santa Cruz de Coimbra ao lado de seu pai, D. Afonso Henriques. Pois a mesma Câmara que numa sua publicação classifica o Hospital como sítio de interesse cultural, permite aparentemente que os restos do Hospital, incluindo uma capela ancestral, sejam vítimas do camartelo para construir um centro de saúde.

A Universidade tem ficado também a dever a si própria uma continuação dos planos que tinha no tempo da candidatura para valorizar o seu património. O exemplo mais gritante é o da segunda fase do Museu de Ciência da Universidade a instalar, a instalar diante do Laboratorio Chimico, no Colégio de Jesus, estabelecido em 1542 e um dos mais antigos colégios jesuítas do mundo. Ajudei no planeamento da exposição “Segredos da Luz e da Matéria” que ainda hoje está como estava, praticamente sem renovação, no Chimico, e colaborei na elaboração de planos circunstanciados de musealização do Colégio de Jesus, ligado à actual Sé Nova.

Pois esses planos foram todos postos na gaveta. Assisti ao Concurso Internacional de Arquitectura para adaptar o edifício em face das novas necessidades museológicas, mas, nos últimos cinco anos, nada se passou de visível. Os turistas trazidos em autocarros que poluem o Património Mundial e prejudicam a vida universitária, quase só vão à sobrecarregada Biblioteca Joanina, onde outro dia uma “funcionária” (duvido que o fosse, devia ser uma precária sem formação) me quis despachar de forma malcriada, quando eu ciceroneava um grupo estrangeiro, anunciando que só tinha cinco minutos. Respondi-lhe, obviamente, que tinha o tempo que fosse preciso para mostrar tudo aos nossos convidados. Os turistas não têm restauração decente na Alta. Se a procuram descendo à Sofia não a encontram.

Foi, depois de muita espera e parece que bastante hesitação, anunciado o nome de um responsável pelo projecto “Capital Europeia da Cultura 2027”, que se faz acompanhar de um conjunto de nomes, alguns deles respeitáveis na área da cultura, que formam porém uma comissão desenhada com intuitos mais políticos do que culturais.

Por muita arte que tenha o responsável, o mágico Luís de Matos, as fragilidades da Comissão estão bem à vista: por exemplo, o arranjo partidário começou-se a desmanchar logo à partida quando um representante do PSD se demitiu. Não sei nem ninguém sabe que linhas mestras já existem para rumo estratégico da referida capital. Mas a defesa do património – que em Coimbra tem o expoente reconhecido na “Universidade – Alta e Sofia” – devia ser um das principais desígnios da Comissão, que estranhamente não tem ninguém de áreas, essenciais para Coimbra, como o património e o urbanismo.

O tempo já está a contar para 2027. A procissão ainda agora vai no adro, mas se tanto a Câmara como a Universidade de Coimbra continuarem desirmanadas entre si e da cultura, pensando que esta se resume à atracção de turistas (que nem sequer ficam um dia inteiro na cidade), o cortejo não irá passar do adro.

E, se sair, Coimbra arrisca-se a que a Europa não queira ver o andor.

Carlos Fiolhais 

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