Artigo do ensaísta Eugénio Lisboa, publicado no "Jornal de Letras" que se transcreve com todo o gosto:
Nascido em 1928, na Póvoa de Varzim, Alfredo Campos Matos viria a licenciar-se em Arquitectura, pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, sendo a sua primeira obra o estúdio da casa do seu pai, na Póvoa de Varzim. Publica, em 1959, Algumas Considerações sobre Problemas da Arquitectura Contemporânea.
Autor de vários projectos que revelam um profundo conhecimento das grandes linhas de inovação da arquitectura contemporânea, ACM vai, em 1960, para Lisboa, onde trabalhará, até se reformar, na Direcção Geral da Urbanização, ocupação que, segundo Siza Vieira, “além de ter proporcionado ao projectista uma formação complementar abriu a CM novas oportunidades e permitiu-lhe viajar repetidamente e visitar, por exemplo, as chamadas «new towns» da Finlândia à Inglaterra”.
O futuro grande queirosianista não foi, portanto, um mero turista superficial, no campo da arquitectura, pelo contrário, foi um arquitecto empenhado, profundamente actualizado e actuante. Mas, muito cedo, a leitura do romance A Relíquia, de Eça de Queirós, o deslumbraria e o chamaria para essa “segunda profissão” de estudioso queirosiano, que nunca mais abandonou.
Biógrafo, analista, divulgador de imagens e de correspondência, ensaísta arguto, caçador de minúcias mais ou menos despercebidas do leitor desatento, CM, como bom e obstinado biógrafo, quis conhecer tudo. Dizia Lord Francis-Williams que “nem todos os segredos do coração humano são conhecidos dos biógrafos oficiais.” Campos Matos, até porque não é um “biógrafo oficial”, quis conhecer todos os segredos da alma do criador de Os Maias – e nisso, esforçadamente, se tem empenhado.
Trabalhador infatigável, amante da claridade e da simplicidade (que se conquista à custa de muito trabalho), Campos Matos tem dedicado ao opus queirosiano um inquirir lúcido e apaixonado, que acabou por frutificar numa vasta e sedutora bibliografia. Numa carta a Alberto d’Oliveira, Eça louvava, no bom estilo, as qualidades de “precisão, limpidez e ritmo que são qualidades da razão e das melhores”.
Foram estas qualidades que, desde muito cedo, seduziram o biógrafo Campos Matos, ao deparar-se com as obras do grande romancista. E foram também estas qualidades, penso eu, que porventura o terão atraído para outra das suas grandes “fixações”: António Sérgio, a quem dedicou atenção minuciosa e, além de uma Bibliografia publicada na Revista de História das Ideias, da Faculdade de Letras, de Coimbra (1983), um interessante e útil Diálogo com António Sérgio, também em 1983, com uma segunda edição aumentada, em 1989.
Por outro lado, CM chama, com grande eloquência, a atenção dos leitores para o ensaio de António Sérgio, “Notas sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Queiroz”, nestes termos: “Desde já afirmo que nada li de tão belo, tão inteligente e de tão original, dentre os milhares de páginas que me foi dado ler dos comentadores do autor do Padre Amaro.”
Do seu vasto labor é difícil seleccionar as obras fundamentais, tantas são elas: desde o primeiro livro – Imagens do Portugal Queirosiano (1975) -, passando pelo monumental e preciosamente útil Dicionário de Eça de Queiroz, de 1988, com uma terceira edição em 2015, pela imprescindível Correspondência Emília de Castro – Eça de Queiroz (1995), que, para sempre, demoliu a lenda do “mariage de raison”, pela colectânea Sobre Eça de Queiroz (2002), pela Fotobiografia, de 2007, pela edição, em dois volumes, da Correspondência (2008), até chegarmos, por fim, à excelente Eça de Queiroz – Uma Biografia, de 2009, com uma 3.ª edição em 2017 e uma edição brasileira em 2014.
Depois da biografia de Gaspar Simões, de 1945, a de Campos Matos é, fora de qualquer dúvida, a mais importante que, entre nós, se publicou, corrigindo, com bom acervo de provas, alguns erros flagrantes da obra de Simões. Sobre as outras biografias que entre nós se têm publicado, dedicadas ao autor de O Primo Basílio, será também proveitoso – e mansamente capitoso – ler o livro de CM 7 Biografias de Eça de Queiroz (2008), com uma edição francesa do mesmo ano.
É curioso verificar-se como CM está sempre a voltar a pontos da biografia, para os retomar, os acrescentar, os aprofundar ou melhor esclarecer. É como se a biografia nunca estivesse definitivamente terminada e houvesse sempre que a melhorar e tornar mais rica e mais clara. Um simples olhar para a sua bibliografia nos elucida a este respeito. O próprio CM, numa passagem do seu artigo “Algumas notas acerca de Eça de Queiroz – Uma Biografia”, do seu último livro 94 Reflexões sobre Eça de Queiroz e Outros Escritos, observa: “Uma biografia é um género difícil, sempre em aberto e exige do autor um conhecimento tanto quanto possível integral do biografado e da sua obra.”
CM, apesar de uma bibliografia vasta e exaustiva, dedicada ao mago de A Cidade e as Serras, considera todo o seu labor “em aberto”, estando sempre pronto para mais um artigo, um folheto, um livrinho esclarecedor. Até porque considera Eça, curiosamente, um autor “difícil”, na medida em que a limpidez e simplicidade do seu estilo podem induzir no leitor uma involuntária desatenção a riquezas escondidas mas essenciais.
A acção de promover a obra e a personalidade do autor de A Capital não se circunscreveu, em CM, ao acto de escrever e publicar obras essenciais a uma leitura melhor e mais esclarecedora dos livros do Mestre. CM desempenhou tarefas importantes, como por exemplo:
- Foi membro do Conselho Cultural da Fundação Eça de Queirós. - Fez o inventário do Património da Casa de Tormes.
- O Instituto Camões chamou-o a colaborar nas celebrações por ocasião do Centenário da morte do escritor. Produziu então uma exposição itinerante intitulada Eça de Queirós – Marcos Biográficos e Literários (1845-1900), com o respectivo catálogo, tendo também escrito o guião do vídeo-filme Eça de Queirós, Realidade e Ficção.
De entre as obras ultimamente publicadas, CM salientaria, como de sua particular preferência, o Diário Íntimo de Carlos da Maia, que congeminou atribuir ao protagonista de Os Maias e que teria sido supostamente redigido após os acontecimentos relatados no romance de Eça. “… pus nesta obra”, observa CM, “«tudo o que tinha no saco», do que resultou uma enorme quantidade de informação não despicienda, onde convoquei nomes como Tolstoi, Balzac, Romain Rolland, Charcot, Flaubert, Maupassant, Proust, Martin du Gard, Ruskin, Stefan Zweig, Axel Munthe, Freud e vários outros autores nacionais.”
Obra substancial, CM “deu-lhe” realmente tudo quanto tinha a oferecer, atribuindo a autoria disso ao personagem de Eça. Justifica assim o feito:
Pensar-se que toda a profunda e fecunda actividade desenvolvida por CM está terminada é desconhecer a massa de que é feito este estudioso arguto e incansável. Com ele, está tudo sempre “em aberto”, para mais alguma incursão, para mais alguma sugestão, para mais alguma tentativa de acrescentar, melhorar, esclarecer.
Nascido em 1928, na Póvoa de Varzim, Alfredo Campos Matos viria a licenciar-se em Arquitectura, pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, sendo a sua primeira obra o estúdio da casa do seu pai, na Póvoa de Varzim. Publica, em 1959, Algumas Considerações sobre Problemas da Arquitectura Contemporânea.
Autor de vários projectos que revelam um profundo conhecimento das grandes linhas de inovação da arquitectura contemporânea, ACM vai, em 1960, para Lisboa, onde trabalhará, até se reformar, na Direcção Geral da Urbanização, ocupação que, segundo Siza Vieira, “além de ter proporcionado ao projectista uma formação complementar abriu a CM novas oportunidades e permitiu-lhe viajar repetidamente e visitar, por exemplo, as chamadas «new towns» da Finlândia à Inglaterra”.
O futuro grande queirosianista não foi, portanto, um mero turista superficial, no campo da arquitectura, pelo contrário, foi um arquitecto empenhado, profundamente actualizado e actuante. Mas, muito cedo, a leitura do romance A Relíquia, de Eça de Queirós, o deslumbraria e o chamaria para essa “segunda profissão” de estudioso queirosiano, que nunca mais abandonou.
Biógrafo, analista, divulgador de imagens e de correspondência, ensaísta arguto, caçador de minúcias mais ou menos despercebidas do leitor desatento, CM, como bom e obstinado biógrafo, quis conhecer tudo. Dizia Lord Francis-Williams que “nem todos os segredos do coração humano são conhecidos dos biógrafos oficiais.” Campos Matos, até porque não é um “biógrafo oficial”, quis conhecer todos os segredos da alma do criador de Os Maias – e nisso, esforçadamente, se tem empenhado.
Trabalhador infatigável, amante da claridade e da simplicidade (que se conquista à custa de muito trabalho), Campos Matos tem dedicado ao opus queirosiano um inquirir lúcido e apaixonado, que acabou por frutificar numa vasta e sedutora bibliografia. Numa carta a Alberto d’Oliveira, Eça louvava, no bom estilo, as qualidades de “precisão, limpidez e ritmo que são qualidades da razão e das melhores”.
Foram estas qualidades que, desde muito cedo, seduziram o biógrafo Campos Matos, ao deparar-se com as obras do grande romancista. E foram também estas qualidades, penso eu, que porventura o terão atraído para outra das suas grandes “fixações”: António Sérgio, a quem dedicou atenção minuciosa e, além de uma Bibliografia publicada na Revista de História das Ideias, da Faculdade de Letras, de Coimbra (1983), um interessante e útil Diálogo com António Sérgio, também em 1983, com uma segunda edição aumentada, em 1989.
Por outro lado, CM chama, com grande eloquência, a atenção dos leitores para o ensaio de António Sérgio, “Notas sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Queiroz”, nestes termos: “Desde já afirmo que nada li de tão belo, tão inteligente e de tão original, dentre os milhares de páginas que me foi dado ler dos comentadores do autor do Padre Amaro.”
Do seu vasto labor é difícil seleccionar as obras fundamentais, tantas são elas: desde o primeiro livro – Imagens do Portugal Queirosiano (1975) -, passando pelo monumental e preciosamente útil Dicionário de Eça de Queiroz, de 1988, com uma terceira edição em 2015, pela imprescindível Correspondência Emília de Castro – Eça de Queiroz (1995), que, para sempre, demoliu a lenda do “mariage de raison”, pela colectânea Sobre Eça de Queiroz (2002), pela Fotobiografia, de 2007, pela edição, em dois volumes, da Correspondência (2008), até chegarmos, por fim, à excelente Eça de Queiroz – Uma Biografia, de 2009, com uma 3.ª edição em 2017 e uma edição brasileira em 2014.
Depois da biografia de Gaspar Simões, de 1945, a de Campos Matos é, fora de qualquer dúvida, a mais importante que, entre nós, se publicou, corrigindo, com bom acervo de provas, alguns erros flagrantes da obra de Simões. Sobre as outras biografias que entre nós se têm publicado, dedicadas ao autor de O Primo Basílio, será também proveitoso – e mansamente capitoso – ler o livro de CM 7 Biografias de Eça de Queiroz (2008), com uma edição francesa do mesmo ano.
É curioso verificar-se como CM está sempre a voltar a pontos da biografia, para os retomar, os acrescentar, os aprofundar ou melhor esclarecer. É como se a biografia nunca estivesse definitivamente terminada e houvesse sempre que a melhorar e tornar mais rica e mais clara. Um simples olhar para a sua bibliografia nos elucida a este respeito. O próprio CM, numa passagem do seu artigo “Algumas notas acerca de Eça de Queiroz – Uma Biografia”, do seu último livro 94 Reflexões sobre Eça de Queiroz e Outros Escritos, observa: “Uma biografia é um género difícil, sempre em aberto e exige do autor um conhecimento tanto quanto possível integral do biografado e da sua obra.”
CM, apesar de uma bibliografia vasta e exaustiva, dedicada ao mago de A Cidade e as Serras, considera todo o seu labor “em aberto”, estando sempre pronto para mais um artigo, um folheto, um livrinho esclarecedor. Até porque considera Eça, curiosamente, um autor “difícil”, na medida em que a limpidez e simplicidade do seu estilo podem induzir no leitor uma involuntária desatenção a riquezas escondidas mas essenciais.
A acção de promover a obra e a personalidade do autor de A Capital não se circunscreveu, em CM, ao acto de escrever e publicar obras essenciais a uma leitura melhor e mais esclarecedora dos livros do Mestre. CM desempenhou tarefas importantes, como por exemplo:
- Foi membro do Conselho Cultural da Fundação Eça de Queirós. - Fez o inventário do Património da Casa de Tormes.
- O Instituto Camões chamou-o a colaborar nas celebrações por ocasião do Centenário da morte do escritor. Produziu então uma exposição itinerante intitulada Eça de Queirós – Marcos Biográficos e Literários (1845-1900), com o respectivo catálogo, tendo também escrito o guião do vídeo-filme Eça de Queirós, Realidade e Ficção.
De entre as obras ultimamente publicadas, CM salientaria, como de sua particular preferência, o Diário Íntimo de Carlos da Maia, que congeminou atribuir ao protagonista de Os Maias e que teria sido supostamente redigido após os acontecimentos relatados no romance de Eça. “… pus nesta obra”, observa CM, “«tudo o que tinha no saco», do que resultou uma enorme quantidade de informação não despicienda, onde convoquei nomes como Tolstoi, Balzac, Romain Rolland, Charcot, Flaubert, Maupassant, Proust, Martin du Gard, Ruskin, Stefan Zweig, Axel Munthe, Freud e vários outros autores nacionais.”
Obra substancial, CM “deu-lhe” realmente tudo quanto tinha a oferecer, atribuindo a autoria disso ao personagem de Eça. Justifica assim o feito:
“Ao cabo de quase noventa anos de vida, a memória vai-se enchendo e enriquecendo de múltiplas leituras, viagens, histórias, filmes, acontecimentos vividos, por mim e por outros, que nos acodem ao pensamento, já depurados pelo tempo, que desejo transmitir como experiência de vida. Pude convocar com pertinência Eça pois continuo a viver dentro dele, como costumo dizer, lendo-o e lendo tudo o que sobre ele se publica.”O Diário Íntimo seria, pois, uma súmula de vida que CM transferiu, generosamente, de si para o protagonista do grande romance de Eça. Nele nos propõe, entre muitas outras coisas, aquilo que é a última (?) palavra sobre alguns temas queirosianos, alguns frequentemente tratados anteriormente e aqui retomados para um “statement” final (final?).
Pensar-se que toda a profunda e fecunda actividade desenvolvida por CM está terminada é desconhecer a massa de que é feito este estudioso arguto e incansável. Com ele, está tudo sempre “em aberto”, para mais alguma incursão, para mais alguma sugestão, para mais alguma tentativa de acrescentar, melhorar, esclarecer.
1 comentário:
Para sentir plenamente a beleza de A Relíquia, de Eça de Queirós, o leitor precisa de saber falar e pensar em Português! O estilo de Eça é, ao mesmo tempo, simples e brilhante!
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