terça-feira, 24 de julho de 2018

"O BANCO DO TEMPO QUE PASSA" DE REEVES


Transcrevemos algumas das primeiras secções deste novo livro de Reeves,  saído como os outros na Gradiva, que condensa o seu pensamento:

"1. VISÕES DO MUNDO

Sentir-se em casa no Universo

 A este grande Universo que se nos apresenta quando observamos a olho nu um céu estrelado ou quando o vemos com a ajuda de um telescópio, é preciso aprender a reconhecê‑lo como o nosso habitat, a nossa casa comum, o nosso lar. Ele é a sede de todos os fenómenos que conduziram à nossa existência e àquilo que somos. Abriga toda a nossa história: passado, presente, futuro. É o seu receptáculo.

 Graças ao seu trabalho, desenvolvido ao longo de milhares de milhões de anos e durante milhares de milhões de anos‑luz, podemos observar o chão sob os nossos pés, ganhar consciência da nossa presença num planeta azul, próximo de uma estrela amarela, o Sol, numa sumptuosa galáxia branca, a Via Láctea, parte integrante do superaglomerado de Virgem, ele próprio localizado na imensa região chamada Laniakea, e dizer: «É a nossa casa!»

 O poder da perenidade

 Esta manhã, ao pequeno‑almoço, tirei um pêssego de um cesto. Com uma faca, cortei‑o. Senti sob os meus dedos a resistência do caroço. A sua presença dura e áspera no centro das camadas tenras da polpa recordou‑me o seu papel no futuro da sua linhagem. Enterrei‑o num vaso. Talvez dele nasçam descendentes. Florirão por seu turno e colorirão as primaveras com as suas enternecedoras flores róseas de pessegueiro. Outras pessoas deliciar‑se‑ão com os seus frutos.

 Levantei‑me. Lancei um olhar amoroso às begónias que ornam o armário da cozinha. Nos estames, o pólen já é visível. Senti‑me envolvido por estes órgãos que carregam as promessas do futuro, que ancoram o futuro no presente. São o garante dele. Sem eles, a vida extinguir‑se‑ia inexoravelmente. Como, aparentemente, os outros planetas do Sistema Solar, a nossa Terra seria estéril. Um aspecto notável da vida é a sua capacidade de durar, de se perpetuar em condições por vezes extremamente hostis. Aquilo a que podemos chamar a sua capacidade de perenidade.

Os grandes fetos que se encontram na minha sala são os descendentes de uma linhagem que se reproduziu com sucesso milhões de vezes. Ao longo dos cerca de três mil milhões de anos da sua existência, a vida na Terra sofreu uma série de crises e de perturbações geológicas, climatológicas, meteoríticas que teriam podido aniquilá‑la inúmeras vezes. Isto não aconteceu. Durante os últimos mil milhões de anos, contamos não menos de cinco grandes episódios de extinção maciça que eliminaram grande parte das espécies vivas. O terceiro, o do Período Permiano, há 250 milhões de anos, teria feito desaparecer mais de 95 por cento delas. No entanto, a vida desenvolve‑se cada vez mais e as flores da vegetação desabrocham fielmente em cada Primavera. Os agentes desta força envolvem‑me esta manhã ao pequeno‑almoço.

 Para me incluir neste grande movimento cósmico, reguei as begónias.

As estrelas são nossas avós

 Talvez nunca descubramos em que momento os humanos começaram a questionar‑se. A interrogar‑se sobre a imensa abóbada celeste da noite. A especular acerca das distâncias que nos separam das estrelas e acerca da influência que elas poderiam ter sobre nós.

 Obviamente, com os seus horóscopos, os astrólogos sempre tentaram ler nelas presságios quanto ao futuro. Agora sabemos que as estrelas nos falam do nosso passado. É a mensagem da astronomia contemporânea. Os átomos que elas fabricaram no seu coração quente são os mesmos tijolos que nos constituem. As estrelas são, de certa forma, as nossas muito longínquas avós.

 Somos poeira de estrelas: é esta a bela mensagem da astronomia contemporânea. Milhares de investigadores participaram na sua descoberta. Que recebam os nossos agradecimentos!"

Hubert Reeves


1 comentário:

cosmovisão disse...

Hoje acordei muito, muito devagar. Por razão nenhuma. Não tenho begónias para regar nem me apetece pensar em estrelas. Acordei por uma espécie de mítica razão orgânica, após uma realidade noturna consumida. Depois bocejei. Como um esgar de longínquo desmoronamento. Tomei um banho à deriva, em íntima transcendência com a água límpida. Há, de facto, uma renovação das cores e uma reposição dos sentidos quando se toma banho. O canto regressou desse espaço fantasmático que é o sono. Fiz um “cover” completo de uma velha canção da infância, plena de azul e lendária como qualquer réplica.
Vesti-me e tomei o pequeno-almoço, ato de simples sobrevivência.

Voltei a ausentar-me.

Foi então que vi o meu coração insculpido no céu eterno, a pulsar numa escala mais vasta, devagar, como eu. Inesperado e assombroso, quase dessubstancializado, ali estava ele, suspenso. Há muito que não o sentia debaixo deste podre pragmatismo de existir. Foi por causa do pássaro ao fundo da floresta, com duas longas asas irreais a filtrar o sol, brilhantes e simetricamente articuladas, fazendo variar o horizonte a cada esvoaçar, que o meu coração veio para mais perto...
Gostava tanto que voltasse a ser meu!

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...