sábado, 21 de janeiro de 2017

"A universidade empresa e os estudantes-clientes"

Na sequência do texto Mais vale ceder e de comentários de leitores ao texto A verdadeira exclusão, transcrevo um extracto do livro A utilidade do inútil do italiano Nuccio Ordine (pp. 101-109).

"Gostaria de me deter sobre os efeitos catastróficos que a lógica do lucro tem produzido no mundo da educação (...). Ao longo da última década, na maioria dos países europeus, com raras excepções como a Alemanha, as reformas e os contínuos cortes de recursos financeiros têm desfigurado (...) a escola e a universidade. De modo progressivo e muito preocupante, o Estado começou a desonerar-se de encargos económicos nas áreas da educação e da investigação básica. Este processo tem determinado, paralelamente, também a escolarização das universidades. Trata-se de um revolução copernicana que nos próximos anos mudará radicalmente o papel dos professores a a qualidade do ensino. 
Quase todos os países europeus parecem estar orientados para uma redução dos níveis de dificuldade a fim de permitir que os estudantes possam passar nos exames com maior facilidade, na tentativa (ilusória) de resolver o problema daqueles que não acompanham regularmente os cursos. Para diplomar os estudantes no tempo exigido pela lei e para tornar a aprendizagem mais agradável, não se exigem esforços adicionais, mas, ao contrário, procura-se seduzir os estudantes com a perversa redução progressiva dos programas e com a transformação das aulas num jogo interactivo superficial, baseado em projecções em power point e na aplicação de questionário de múltipla escolha (...) 
o mecanismo actual transforma-se num estratagema que obriga as universidades - cada vez mais ocupadas com a despropositada captação de recursos, devido à penúria de fundos - a fazer o impossível para se tornar uma fábrica de diplomas (...)
como escreveu o professor de filosofia Emmanuel Jaffelin no Le monde de 28 de Maio de 2012, as relações entre professores e estudantes parecem estar fundadas substancialmente numa espécie de clientelismo: "pagando muito caro a sua matrícula em Harvard, o estudante não espera somente que o seu professor seja bem formado, competente e idóneo; espera que ele seja submisso, pois o cliente é o rei" (...)
Também nas universidades públicas (...) se procura atrair estudantes a qualquer preço, promovendo verdadeiras campanhas publicitárias, como acontece com os automóveis e os produtos alimentares. As universidades, infelizmente, vendem diplomas e títulos. E vendem-nos insistindo especialmente no aspecto profissionalizante, oferecendo aos jovens cursos e especializações com a promessa de emprego imediato e ordenado atraente (...). 
Também os professores se transformam cada vez mais em simples burocratas ao serviço da gestão comercial das empresas universitárias. Passam os seus dias a preencher formulários, a fazer cálculos, a produzir relatórios (às vezes inúteis) para estatísticas (...) responder a questionários, preparar projectos (...) interpretar normas (...) confusas e contraditórias.  
Parece que ninguém se preocupa, como deveria, com a qualidade de investigação e do ensino. Estudar (com muita frequência esquece-se que um bom professor é acima de tudo um incansável estudante) e preparar as aulas tornaram-se um luxo (...). 
Contrariamente ao que as leis dominantes do mercado e do comércio nos pretendem ensinar, a essência da cultura está baseada exclusivamente na gratuitidade: a grande tradição das academias europeias (...) lembra-nos que o estudo é antes de mais nada a aquisição de conhecimentos que, livres de qualquer vínculo utilitarista, nos fazem crescer e nos tornam mais autónomos. E justamente a experiência do aparentemente inútil e a aquisição de um bem, não imediatamente quantificáveis, revelam-se "investimentos" cujos "lucros" virão à luz a longo prazo. 
Seria absurdo colocar em dúvida a importância da preparação profissional nos objectivos das escolas e das universidades. Mas a tarefa da educação pode ser realmente reduzida à formação de médicos, engenheiros ou advogados?
Privilegiar exclusivamente a profissionalização dos estudantes significa perder de vista uma dimensão universal da função formativa da educação: nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os alunos a cultivarem autonomamente o seu espírito e a possibilitar que expressem livremente a sua curiositas. 
Equiparar o ser humano exclusivamente com a sua profissão seria um erro gravíssimo: em todo o ser humano há algo de essencial que vai muito além do seu próprio ofício. Sem essa dimensão pedagógica, ou seja, totalmente afastada de qualquer utilitarismo, seria muito difícil, no futuro, continuar a imaginar cidadãos responsáveis, capazes de abandonar o próprio egoísmo para abraçar o bem comum, expressar solidariedade, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, proteger a natureza, defender a justiça..."

1 comentário:

marina disse...

cada vez mais actual o problema , à medida que as consequências se revelam: todo mundo se interroga porquê e se espanta com e chora a qualidade do jornalismo hoje . pois a resposta está aí , na qualidade dos licenciados em " jornalismo " . sem ovos não há omoletes :)

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