sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

PARECER ENTREGUE AO GRUPO DE REFLEXÃO SOBRE A FCT

Documento que entreguei ao Grupo de Reflexão sobre a FCT e que comenta o "draft" que está muito próximo do doumento final que foi agora divulgado. 

 Embora a constituição do grupo de reflexão e aconselhamento tenha um valor simbólico e, claro, político, ao mostrar que se restaurou o diálogo com a comunidade científica (a confiança virá por acréscimo), estou convencido de que o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior sabe perfeitamente o que tem de fazer num sector que aliás conhece como poucos. No rascunho da primeira reunião encontra-se reflectido muito e bom trabalho e gostei da orientação geral de mudança relativamente à política do governo anterior. Há algumas desigualdade no grau de pormenor do relatório, com algumas coisas muito vagas e outras muito específicas. Julgo natural dada a necessidade de reunir numerosas contribuições recebidas. O problema resolve-se editando o documento, designadamente reduzindo o seu tamanho. 

Reconheço-me na política de ruptura com o passado mais recente, por exemplo no anúncio do ministro de que vai dar mais atenção às pessoas, em especial aos investigadores mais jovens, que têm de encontrar mais e melhores oportunidades no país em vez de se verem constrangidos a emigrar. É claro que não é preciso mudar a missão da FCT, consagrada na lei, mas é preciso mudar o que tem sido a prática da FCT. É necessário rever o processo inquinado de avaliação, alargar o número de bolsas (acabando com o nada transparente processo dos programas doutorais), diminuir a burocracia (as “plataformas” informáticas, em vez de simplificar complicaram em muitos casos), reforçar a cultura cientifica em articulação com a Ciência Viva (a anterior direcção da FCT ignorou praticamente o Ciência Viva, em vez de trabalhar em conjunto), melhorar a sua relação com as instituições de ensino superior (estamos num tempo em que muitas universidades já se renovaram e têm de se renovar mais, rejuvenescendo os seus quadros) e com o tecido empresarial (em particular aproveitando os dinheiros europeus do “Portugal 2020”, um processo que não começou da melhor maneira e que e que não está a correr bem, e.g., duplicação de burocracia que já foi feita em concursos da FCT).

Presidência da FCT

Mas, primeiro que tudo, era preciso mudar a direcção da FCT, acto para o qual não é precisa nenhuma comissão. Trata-se de uma prerrogativa do ministro. A anterior direcção teve um comportamento vergonhoso (ver “Livro Negro sobre a Avaliação da Ciência e Tecnologia em Portugal”). Devia ser feita uma auditoria, averiguando por exemplo qual foi a correspondência trocada pela FCT com a ESF. A nomeação da nova direcção da FCT está a tardar. Estou absolutamente à vontade para dizer isto, até porque estou bastante de fora, incluindo fora de Lisboa: é preciso alguém da confiança do ministro (terá de estar em consonância com o governo), com provas dadas na prática da ciência (de preferência com experiência de gestão) e absolutamente isento (não pode estar comprometido com a política anterior). A dispersão dos responsáveis da FCT por áreas e instituições diversas é sempre aconselhável, de modo a evitar concentração de poderes – o próprio primeiro-ministro deu o exemplo com a escolha do ministro e da secretária de estado. Não percebo como é que a Presidente da FCT ainda ocupa o lugar para onde foi nomeada em condições precárias que são bem conhecidas. Ela não cumpriu o que prometeu quando anunciou primeiro para Outubro e depois para Novembro uma decisão sobre os recursos da pseudo-avaliação da ESF (existem processos em tribunal e jornais científicos nacionais e estrangeiros que continuam atentos ao desenrolar do processo). Demitiu-se tarde e a más horas, num acto que constituiu uma crítica intolerável ao ministro, acompanhado pela chantagem de parar todas as actividades em curso. O novo presidente da FCT terá de limpar a casa, começando por rever o processo de “avaliação” (entre aspas porque foi uma pseudo-avaliação). 

 Pseudo-Avaliação da ESF 

 Houve ilegalidades maiores, para além das sucessivas irregularidades processuais. Estive a reler o artigo 28 do Decreto Lei n.º 125/99,que rege a avaliação, do tempo do ministro José Mariano Gago (no primeiro governo de António Guterres): 

 "3 - O processo de avaliação terá por base, consoante os casos, as candidaturas ou os relatórios de actividades das instituições, nas suas componentes científica e financeira, visitas de avaliação e a audição dos responsáveis e outros elementos da instituição." 

Penso que não é possível aplicar o "consoante os casos" a mais nada que não a primeira disjunção - até porque depois há uma conjunção com as "visitas de avaliação e a audição". E é o que faz sentido, pois está a considerar-se as duas situações, consoante o centro é novo (candidatura) ou existente (avaliação de actividade). Ora, como não houve como manda este decreto visitas a todas as unidades, a lei foi violada. Não pode haver diferentes interpretações jurídicas sobre isto a menos que não se saiba ler português. Este aspecto é preocupante pois aparentemente, segundo o rascunho do relatório sobre a FCT, admite-se avaliação sem visita a unidades. Isso nunca foi feito no tempos dos ministros anteriores a Nuno Crato até porque é ilegal. Se o querem fazer, mudem o decreto-lei primeiro em Conselhom de Ministros. 

 Depois a decisão de alijar 50% do sistema científico nacional por uma cláusula secreta num contrato com uma entidade privada deve ser também ilegal. Nunca vi nada nem tão estúpido nem tão estranho como isso. Mas foi entre nós doutrina governamental que se cumpriu na pratica com a grande "poda" caucionada pelo ministro da pasta (ou será que ainda há homologações por fazer?). Hoje sabe-se (por que não publicar todos os documentos da avaliação para repor a transparência?) que nem sequer foram escolhidos os 50% melhores em cada área por manifesta incompetência do júri, pois alguns deles não tinham nem conhecimentos nem experiência suficientes para levar a cabo a tarefa que lhes era pedido (por exemplo, o responsável pela área das ciências físicas era um investigador sem currículo relevante da Universidade Aberta do Reino Unido e não de nenhuma boa universidade). A ESF deveria restituir o dinheiro que recebeu por o seu trabalho ter sido mal feito. Basta olhar para os cientistas portugueses mais influentes que não são dos centros ditos supraexcelentes. Dois são do IT que foi excluído a primeira volta. E basta olhar para os rankings de escolas de engenharia, uma área reconhecida e estratégica para o país que foi publicamente desvalorizada por "autoridades" como o Presidente do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Mas bastaria olhar para os resultados de investigadores e FCT e projectos concedidos pela mesma FCT após a avaliação da FCT-ESF, que mostram que “não rima a bota com a perdigota”. Outros aspectos de falta de correspondência entre as métricas da produtividade e os resultados da avaliação podiam ser referidos. Já não falo da falta de transparência e da mudança de regras a meio do processo. Já nem falo da falta de correspondência entre a avaliação e o financiamento, bem visível no final. Nem, embora seja muito grave e ainda mais em tempo de austeridade, a concessão de dinheiros públicos a privados, para financiamento de base da investigação. 

 Portanto, como eu sempre afirmei e comigo muitos membros da comunidade científica e fora dela, a mais recente avaliação foi uma fraude. Eu estou à vontade para o fazer pois não sou o responsável por nenhum centro. Acho incrível que muitos colegas nossos tenham sido impedidos durante mais de um ano de exercer qualquer investigação por lhe terem retitado todo o financiamento. Tal situação está desvalorizada no rascunho do relatório pois, quando muito, remete-a para “processos pendentes”. Registo que não há uma reivindicação de anular a actual “avaliação”, mas sim de fazer uma nova que será efectiva em 2018. A data de 2018 para a nova avaliação deve estar baseada na avaliação intercalar ao fim de três anos mencionada no regulamento. Ora o próprio regulamento prevê, nos artigos 4, 15 e 24, a realização de "avaliações excepcionais/extraordinárias", que podem alterar o financiamento. Há, portanto, uma saída para a reavaliação ainda antes de 2018, caso a tutela assim decida. No mínimo o uso para qualquer efeito da nota da actual “avaliação” devia ser nulo, tal como aliás exprimiu claramente o Conselho de Reitores (CRUP). Não percebo como é que um governo se interessa pelos exames do básico, com grande urgência, e não tem a mesma urgência para corrigir erros bem mais graves do governo anterior. 

 Sobre a avaliação há um outro aspecto que considero preocupante no documento de rascunho. Trata-se da frase "até porque para avaliação de investigadores ou equipas de investigação é muito mais eficaz e relevante, e tem menos inconvenientes, a apreciação pelos avaliadores de um pequeno número de trabalhos seleccionados que os candidatos consideram mais importantes". Para além da expressão "tem menos inconvenientes" não fazer sentido, está aqui escondido um ponto fundamental, e um dos muito poucos em que a direcção anterior da FCT tinha eventualmente razão: os centros não podem ser financiados per capita, ignorando questões de homogeneidade (com os projectos é diferente, mas esses não são avaliados per capita, o que mostra que, de facto, fazer isso não faz sentido). Mais especificamente, e usando uma caricatura: se os centros têm de apresentar n artigos significativos e há dois centros A e B com m e 2m membros respectivamente, se A e B apresentam ambos n artigos na revista de topo da área, não é claro como é que o financiamento deve ser atribuído sem haver mais informação. Por outras palavras, a anterior “avaliação” apontou uma questão que estava mal resolvida nas avaliações anteriores, mas que ela própria não soube resolver. Talvez uma forma mais simples de colocar a questão seja a seguinte: imagine-se um centro de Química com m membros dos quais um é prémio Nobel (e activo cientificamente) e os restantes m-1 elementos não fazem nada. Qual é o valor de m para o qual o centro pode ter a classificação máxima? Obviamente que tem de haver um limite. Isto pode claramente ser resolvido de várias maneiras (algumas das quais até são bibliométricas) e deve certamente ser tido em conta. 

 Um outro ponto que não deixa de ser relevante é não haver nenhuma alusão aos laboratórios associados: continuarão a ser avaliados conjuntamente com os restantes centros? Voltarão eles a ter um tratamento especial na avaliação? 

 Emprego Científico 

 Esta é uma questão-chave e que deve estar na ordem do dia. Os membros do grupo de reflexão são todos investigadores e quase todos do quadro. A FCT devia procurar envolver associações de bolseiros e associações de estudantes de pós-graduação e investigadores no estrangeiro na política científica. 

 O documento expressa de modo geral intenções positivas, como reforçar as bolsas de doc e posdoc atribuídas em concurso nacional, aumentar o financiamento para a ciência, melhorar os processos de avaliação, calendários previsíveis, etc. Tudo isso é evidentemente de aplaudir. É preciso diminuir a burocracia, que neste momento é infernal e aumentar as boas-maneiras com que devem ser tratados os investigadores ou candidatos a investigadores. 

 No emprego científico (para além das bolsas e dos contratos) também não encontro nenhuma proposta de política concreta. Leio “estimular, fomentar, criar condições...” Mas o que é que cabe à FCT, o que é que cabe às instituições de ensino superior e como é que poderão esses parceiros cooperar mais estreitamente? Será de considerar que uma parte do financiamento para a ciência seja incorporado no financiamento das instituições de ensino superior com objectivos quantificados pré-definidos, designadamente quanto à formação de recursos humanos e quanto ao número de trabalhos científicos? E como obstar à crónica endogamia do sistema universitário português (corre um abaixo-assinado sobre o assunto, que eu não assinei atendendo aos termos em que está redigido – designadamente pretende que as escolhas sejam feitas só por estrangeiros- mas cujos considerandos são obviamente de ponderar). 

 Na questão da avaliação de bolsas e contratos, parece que há a intenção de remover o programa de trabalhos dos critérios de avaliação (fala só no mérito do candidato e nas condições de acolhimento). Acho que o programa de trabalhos deve ser avaliado em conjunto com as condições de acolhimento para o executar (sem levar em conta a recente avaliação das unidades, claro), com ponderação de 50%, tal como nos últimos concursos da ainda direcção da FCT.

 Não há uma quantificação da ideia de redução do número de programas doutorais. Devia-se limitar o número de bolsas atribuídas nesses programas. E não abrir novos da mesma maneira. A expressão "capacitação adicional do sistema nacional de C&T" parece-me uma posição pouco clara e propícia a arbitrariedades. 

Não percebo bem por que se pretende que deixe de haver possibilidade de auto-proposta para integrar painéis de avaliação. É uma medida que permite aumentar a confiança e que possibilita que os painéis não sejam constituídos exclusivamente com base em critérios de proximidade social. A proposta de eliminar essa possibilidade, que nunca foi vinculativa, parece-me extrema. 

 Sei que não é uma atribuição da FCT, mas a questão da segurança social dos bolseiros cruza-se com a FCT. Idealmente seria a integração dos bolseiros, ainda que eventualmente apenas os de pós doutoramento, ou os de doutoramento a partir do 2.º ano, no Regime Geral de Segurança Social, mantendo os actuais valores das bolsas, aos quais seriam descontada a contribuição normal dos trabalhadores para a segurança social (o restante a TSU, seria paga pela entidade de acolhimento). Isto é quase equivalente a converter as bolsas em contratos de trabalho. Só faltaria acrescentar o IRS. Coisa que, a acontecer, teria que ter tida em conta no valor bruto das bolsas. Não sendo isto possível, e mantendo-se os bolseiros no regime do Seguro Social Voluntário, dever-se-ia aumentar o valor que é reembolsado pela entidade de acolhimento, para o escalão mais próximo do valor real da bolsa. Ou seja:

 - actualmente, qualquer bolseiro tem direito ao reembolso dos descontos para o Seguro Social Voluntário pelo valor base do Indexante de Apoios Socias (419,22€). Isto é, mesmo numa bolsa de posdoc (1495€), os descontos que são reembolsados pela entidade de acolhimento para a Segurança Social (ca. 121€ por mês) são como se o bolseiro ganhasse 419,22€. É este o vencimento que conta para a sua carreira contributiva. 

 - o valor reembolsado pela FCT (ou outra entidade de acolhimento) deveria ser o mais próximo do valor real da bolsa. Ou seja, no caso da bolsa de posdoc, o valor reembolsado deveria ser pelo menos equivalente a três vezes o Indexante de Apoios Sociais, ou seja a entidade de acolhimento reembolsaria cerca de 363€ de Seguro Social Voluntário. Assim, os rendimentos que contariam para a carreira contributiva seriam de 1257€ / mês. 

 É uma opinião, penso que seria essencial ouvir os representantes dos investigadores precários nisto. A mudança implicaria a revisão do estatuto do bolseiro. Que seria algo que pode estar no documento. Por exemplo: "Fomentar a revisão do estatuto de bolseiro, no sentido de melhorar a protecção social destes investigadores". 

 Cultura Científica 

 Em relação à cultura científica, o documento é algo vago e não aponta uma política concreta. Fará sentido considerar 5% do orçamento para actividades de divulgação e comunicação, como foi no primeiro ministério de José Mariano Gago? Como desenvolver acção concertada com a Ciência Viva?

 Alguns tópicos que reputo relevantes: 

 - levar efectivamente em conta na avaliação dos projectos de investigação e restantes candidaturas a componente de divulgação para a comunidade, com ponderações específicas relevantes e rubricas no orçamento. 

 - prever concursos para projectos de promoção da cultura científica, que possam envolver as unidades de investigação e outros agentes, como comunidade escolar, os media, etc. - concursos de contratos para essa área, para substituir o falado Programa de Comunicação e Gestão de Ciência. Concursos nacionais, em termos semelhantes ao “Investigador-FCT”, sem um número limite de vagas ou candidatos por unidade de acolhimento, que fomentem pré-escolhas locais. 

 - a FCT devia promover de modo efectivo na comunidade a investigação que financia, através de programas específicos próprios para o efeito. Palestras, notas de imprensa, eventos (participação na Semana da Ciência e Tecnologia, por exemplo). Por exemplo explicar as nossas participações internacionais (por que razão Portugal é membro do CERN, etc.). 

 Coimbra, 14 de Janeiro de 2016

 Carlos Fiolhais (Professor de Física da Universidade de Coimbra)

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Professor Fiolhais, esteja atento, porque o concurso investigador FCT 2015 voltou a promover admiráveis resultados. De facto, vergonha é coisa que não atinge uma grande parte dos avaliadores nacionais. A selecção dos candidatos para a segunda fase continua a ser efectuada com a ajuda dos peritos "lisboetas" e, como seria de prever, a maioria dos contemplados pertence às mesmas instituições dos peritos.

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