“Pro football is like nuclear warfare.
There are no winners, only survivor”s.
Frank Gifford
“No Público de 8 do
mês de Junho, o estimado colunista Rui Tavares, que leio sempre com interesse e
apreço, publicou um interessante artigo intitulado “Monocultura”, acerca do
mundo do futebol profissional, tal como existe em Portugal (e no resto do
mundo, aliás). Subscrevo tudo quanto ali se diz, excepto a escusada canelada às
“críticas pseudo-intelectualizadas ao futebol”, que me parece uma
condescendência populista, mas talvez compreensível em ano eleitoral… Eu
assumo-me, sem pudor, como um dos “pseudo-intelectuais” que tem lutado
repetidamente contra o atentado ao verdadeiro “espírito do desporto”, que é
todo o desporto profissional e o futebol profissional, em particular. Os gregos
das Olimpíadas, da Antiguidade, devem estar a dar voltas ininterruptas, no
túmulo, perante esta infâmia que diariamente se planta diante dos nossos olhos
e ouvidos.
Mas o curioso no interessante e justiceiro artigo de Rui
Tavares é ele, Rui Tavares, ter chegado, só
agora – perante a cómica e sinistra
opereta que foi a transferência de Jorge Jesus, do Benfica para o Sporting – à
conclusão de que “há limites para tudo”. Meu caríssimo Rui Tavares, esses
limites foram transgredidos, não agora, mas há muito tempo. Esta ópera bufa que
agora tanto o enojou vem-se repetindo pelo mundo todo e também pelo
Portugalinho, desde que o futebol se tornou um negócio mafioso e profundamente
malcheiroso.
Como V., também eu gosto de ver um bom jogo de futebol e
também o joguei, na minha adolescência, em Lourenço Marques. Rever o Eusébio,
meu conterrâneo, a fulgurar, em Liverpool, ainda me causa arrepios de prazer e
admiração. Mas nada disto tem que ver com a venda de jogadores e treinadores,
por milhões de euros, como “produtos de luxo”, nem com “clubes”, cuja
identidade, de tão diluída e conspurcada, muito difícil se torna definir – sem
falar nas indescritíveis – e muito noticiadas em horário nobre – “alocuções”
dos inefáveis donos do futebol. Este nojo é antigo e ofende mortalmente
o nobre jogo do futebol, que só pode ser não-profissional, para ser limpo e escorreito.
Dizia Orwell que “o desporto à séria [isto é, encarado profissionalmente] nada
tem que ver com o fair-play: está
intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a gabarolice, o desprezo por todas
as regras e o prazer sádico de ser espectador da violência – por outras
palavras, é a guerra, menos o tiroteio.” Ou, se preferir, e utilizando a
diatribe em epígrafe a esta crónica, “o futebol é como a guerra nuclear – não
há vencedores, há apenas sobreviventes.”
Este futebol – o dos Brunos de Carvalho, dos Luises
Filipes Vieiras, dos Pintos da Costa – tem suficientes bardos e tenores ao seu
serviço, para dispensar a condescendência, mesmo marginal, de um Rui Tavares,
que tem merecido e ganho o respeito de muitos de nós. O domínio dos meios de
comunicação por esta infecção que é o delírio futebolístico, em dia de
confronto “clássico” (clássico?!!!) é suficientemente vasto e nefasto para nos confranger ver um intelectual rigoroso
como Rui Tavares fazer-lhe nem que seja um tímido aceno, en passant. Os do
futebol profissional não se cansam de apregoar – para que conste, como aviso –
a excelsa e avassaladora importância desse sinistro "poder". O
“football manager” Bill Shanky, por exemplo, foi ao ponto de dizer que “o
futebol não é assunto de vida ou de morte – é muito mais importante do que
isso.” Acredite quem puder.
O verdadeiro espírito do desporto, disse-o eu algures, sem
vergonha nenhuma de me juntar à corte dos pseudo-intelectuais que Rui Tavares
mordiscou, “não rima com este concerto grotesco de bravatas, de gritaria, de
agressões públicas, de trafulhices com impostos, de dinheiros, dinheiros,
dinheiros… O desporto é esforço desinteressado e elegante, é exemplo de
autodomínio e beleza.”
O que se passou, recentemente, com a vitória do Benfica, em
Guimarães, no que respeita tanto ao comportamento de alguns polícias, como ao
de uma larga camada de povo, na Praça do Marquês de Pombal – é um descrédito
para a civilização. Como contribuinte rigoroso, ressinto que os meus impostos
sejam desbaratados com obscenos cordões de polícia a guardar os estádios e os
lugares públicos de manifestação, onde hordas desconjuntadas de energúmenos nos
causam vergonha de pertencermos à espécie humana. Para isto, meu caro Rui
Tavares, não pode haver qualquer espécie de condescendência – nem da parte de
intelectuais, nem da parte de pseudo-intelectuais. A esta cultura infame e
alienadora, a esta hidra em expansão – há que se lhe cortar, sem hesitação, a
cabeça. Isto não é futebol, é tumulto, é orgia, é arruaça, é anarquia, é tudo
quanto uma democracia adulta não deve acolher.
O verdadeiro desporto é outra coisa e tem outras motivações.
Perguntaram, um dia, a George Mallory por que é que tinha querido trepar o
Monte Everest. Respondeu com formidável simplicidade definidora: “Porque ele estava
ali.” Não para ganhar dinheiro, não para embaraçar quem, antes dele, não tinha
conseguido, não por bravata: apenas porque havia um desafio que estava ali e
talvez valesse a pena enfrentar. É isto o desporto, que nada tem que ver com as
marcas de carro que o Ronaldo compra nem com as meninas com quem se deita. “O
futebol, segundo me parecia”, observou ainda Orwell, “não é realmente jogado
pelo prazer de chutar a bola de um lado para o outro, mas é antes uma espécie
de combate.” Vai-se para esta guerra suja porque dá muito dinheiro. E, de caminho, infecta-se o espírito de toda uma juventude, formada à sombra destes “valores”.
Quando se atiram petardos dentro dos estádios de futebol ou
neles se agridem barbaramente os jogadores, está-se apenas a dar vazão à pressão produzida por toda uma “cultura”
que não preserva um único valor digno de ser preservado. Este futebol mafioso e
doentio há-de desaguar sempre nos
prélios nas ruas e nas praças e não há volta a dar-lhe, se não aparecer um
governo corajoso e determinado a pôr fim a tudo isto, de uma vez por todas:
basta ter a ousadia de definir e aplicar um conjunto de sanções que façam doer.
Mas que façam doer mesmo.
O grande romancista britânico E. M. Forster, de que algumas
belas obras foram transpostas para o cinema, observou isto, que eu assino por
baixo: “É o desporto internacional que tem atirado o mundo pela ladeira abaixo.
Iniciado por atletas tontos, que pensavam promover ‘compreensão’, e hoje
sustentado pelo desejo de prestígio político e pelos interesses ligados à
bilheteira. É absolutamente pernicioso.”
É com este futebol, Rui Tavares, que se não pode pactuar. Os
Joseph Blatter não aparecem por acaso: são um corolário”.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
Boa tarde, Senhor Professor.
Gostei muito de ler este artigo.
Fiquei satisfeita por saber que não sou só eu a criticar as máfias do futebol e muitos dos seus mafiosos!
Parabéns!
Já agora, um dos artigos que publiquei recentemente no meu blogue e que, por acaso, também se integra no espírito do seu.
Um abraço!
http://suricatina.blogspot.pt/2015/07/transferencias-de-jogadores-o-futebol.html
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