Minha apreciação ao filme Intestellar, do realizador anglo-americano Christopher Nolan no Público de hoje: aqui. Trancrevo o texto porque o acesso ao Público é limitado (completei a nacionalidade do realizador e corrigi uma gralha):
“Odeia, odeia a luz que começa a
morrer.”
O verso Odeia, odeia a luz que
começa a morrer é de Dylan Thomas, o escritor galês cujo centenário se está a comemorar.
Ele é repetido por um dos personagens principais do filme Interstellar, do
realizador anglo-americano Christopher Nolan, que acaba de estrear em Portugal
e em todo o mundo (ou, pelo menos, no planeta Terra). Quem o repete é o Prof.
Brand (Michael Caine), um físico da NASA que procura o mistério último da
gravidade e, com ele, a esperança de salvação para uma humanidade em desespero. O verso de
Thomas, que inspirou o título de uma obra de António Lobo Antunes, abre um
poema belíssimo: “Não entreis docilmente nessa noite serena, / porque a velhice
deveria arder e delirar no termo do dia;/ odeia, odeia a luz que começa a
morrer.”
Interstellar é uma glosa
cinematográfica ao tema da morte, neste caso o apocalipse do nosso planeta
devastado por tempestades e pragas. Como ocorre em geral nos seus tratamentos
artísticos, também aqui a morte é recusada. Escreveu um outro poeta, o alemão
Friedrich Hoelderlin: Onde há o perigo, surge também a salvação. A redenção é,
no filme, proporcionada pela ciência e pela sua filha dilecta, a tecnologia.
Desvendemos um pouco do enredo,
embora tentando não desmanchar o prazer dos leitores que ainda não viram. Num
futuro indeterminado, vastos campos de milho surgem cobertos por nuvens de
poeira e são pasto de doenças. Nesse mundo distópico, com o ar a ficar
irrespirável, a ciência e a tecnologia quase desapareceram (já só voa um drone
solitário). Na escola ensina-se que a ida à Lua não passou de um embuste. E os
estudos superiores são um capricho face a necessidades básicas de
sobrevivência. Um agricultor que foi piloto de testes da NASA, Joe Cooper (Matthew McConaughey), tenta manter a sua
família: a espertíssima filha adolescente Murph (em jovem Mackenzie Foy
e, mais tarde, Jessica Chastain), o seu irmão e o seu sogro, já que a mulher
tinha morrido de um tumor na falta de diagnóstico por ressonância magnética. Este
cenário dantesco está longe de ser novo na ficção científica: lembrei-me logo
de Um Cântico para S. Leibowitz, de Walter Miller, onde a humanidade regressa à
Idade Média após um desastre nuclear e só um escasso conhecimento sobrevive em fragmentos. O filme
não é claro sobre a origem do “fim do mundo”. Há uma referência ao Dust Bowl,
uma série de tempestades que ocorreram, por desleixo humano, durante a Grande
Depressão Americana, originando fome e miséria: o filme mostra depoimentos
autênticos de um documentário de sobreviventes. O fim no filme não é nuclear,
com uma explosão, mas sim o silêncio imposto pela falta de ar, Como escreveu um
outro poeta, T. S. Eliott: O mundo não acaba com um estrondo, mas com um
suspiro.
Mas enquanto há vida há esperança.
E a esperança irrompe aqui de um modo estranho a meio de uma estante. Na
pequena biblioteca do quarto da Murph surgem sinais, que enviam Cooper para uma
secretíssima base da NASA, às ordens do Prof. Brand. Ao despedir-se comoventemente
da filha, o pai não sabe que lhe está destinado o papel de salvador da
humanidade. É enviado para Saturno a bordo de uma estação espacial pois é lá
que se encontra a porta de um buraco de minhoca, isto é, um atalho no espaço-tempo
para um longínquo domínio interstelar. E é do outro lado do buraco que vai partir
à aventura para dois planetas aonde antes tinham sido enviados pioneiros, com o
intuito de encontrar refúgio para a humanidade. O plano do professor consistia
em domar a gravidade, alargando o referido buraco, para enviar o que restava da
humanidade a povoar as novas terras encontradas.
O que são buracos de minhoca? Uma
ideia dos físicos teóricos que exige uma prodigiosa distorção do espaço-tempo.
Segundo a teoria da relatividade geral de Einstein, invocada repetidamente ao
longo do filme, o espaço está ligado ao tempo (o espaço-tempo), a matéria à
energia (a matéria-energia) e a matéria-energia comanda o espaço-tempo. Matéria-energia
muito densa pode contorcer o espaço-tempo. O aproveitamento cinematográfico do
conceito não é novo. Já o astrofísico Carl Sagan o tinha usado em Contacto, livro
que serviu de guião a um filme onde McConaughey entrou, tendo recorrido aos
préstimos do seu colega Kip Thorne. Thorne foi agora o conselheiro científico
de Nolan. O aproveitamento das especulações de Thorne era uma ideia que estava
na carteira de Spielberg, o realizador de Encontros Imediatos de Terceiro Grau
e de IA, mas este cedeu-a a Nolan, o autor de Memento e de Cavaleiro das Trevas.
O que há de real nos buracos de minhoca? Bem, de facto, não se conhece nenhum,
mas discute-se, em papers de física, a possibilidade de os construir, o que
exigiria não só matéria exótica que dobrasse o nosso espaço-tempo a quatro
dimensões mas também dimensões adicionais. Um físico companheiro de Cooper
explica no filme com a ajuda de uma folha de papel: marca dois sítios, a
entrada e a saída do buraco, e diz que eles ficam ligados ao dobrar a folha,
isto é, acrescentando outra dimensão. O tema das dimensões adicionais é
corrente hoje na cosmologia e na física de partículas, apesar de não haver provas
da sua existência. A ideia agradou a Einstein por permitir a unificação das
forças da Natureza, o seu grande sonho que ainda não se materializou. É nele
que o Prof. Brand estava a trabalhar, no futuro onde o filme nos mergulha.
E o que há do outro lado do
buraco de minhoca? Um outro mundo. Planetas estranhos, um deles tão estranho
como as paisagens da Islândia, uma vez que parte do filme foi aí rodado, e um
buraco negro gigante, o Gargantua (nome retirado a Rabelais), que teve de ser
criado virtualmente. Entre outros truques científicos, o enredo envolve a
animação suspensa, que consiste na suspensão das funções vitais de uma pessoa preservando-a
pelo frio, e a disseminação de embriões humanos noutros planetas, crioperservados
pela Dr.ª Amelia (Anne Hathaway), a filha do Prof. Brand. Há também uma profusão
de truques cinematográficos, como a pelas câmaras IMAX e um nível de som que
pode incomodar os ouvidos mais sensíveis e que contrasta violentamente com o
silêncio sideral. E há truques científicos que combinam com truques
cinematográficos como os cálculos que Thorne efectuou para tornar a imagem de um buraco negro. o mais realista
possível
Como o buraco negro tudo atrai, desde
a luz até a curiosidade humana, os nossos heróis acabam por se precipitar para
o buraco negro. Cooper, com a ajuda de um robô não humanóide a quem foram dadas
as deixas mais engraçadas (lembrei-me do Hals de 2001 Odisseia do Espaço, de
Kubrick, uma das influências reconhecidas por Nolan), entra no buraco negro
para obter segredos sobre a força gravitacional. Esta é a parte que me pareceu
mais inverossímil de toda a trama, cuja base científica é em geral impecável, incluindo
as especulações aparentemente desenfreadas sobre o tempo. Os sinais são enviados
para a Terra. E, nesta, Murph vai conseguir recolhê-los para continuar o projecto
do Prof. Brand. Dentro do buraco negro Cooper cai em dimensões superiores, numa
tesselagem que aparece por trás da estante do quarto da miúda. Sim, miúda, porque Cooper viajou para trás no tempo
no interior de Gargantua.
A humanidade salva-se? Sim,
graças, como era previsível de início, à Drª. Murph, que acabou por estudar
física teórica (o nome dela afinal enganava pois algo vai correr bem!). E
Cooper fica sepultado no tenebroso buraco negro? Não. Afinal não era um buraco
negro mas um outro buraco de minhoca, bem maior, com uma entrada em buraco
negro e uma saída em buraco branco. Um buraco branco é o contrário de um buraco
negro: dele tudo sai, em vez de nele tudo entrar. Vai dar a uma base espacial,
em Saturno, para onde a humanidade, ressuscitada pelos conhecimentos de física,
se tinha conseguido escapar. Ainda chega a tempo de ver morrer a sua filha, com
134 anos, enquanto ele continua jovem. É o famoso paradoxo dos gémeos, enunciado
pelo físico francês Paul Langevin, contemporâneo de Einstein: um viajante que
vá a estrelas distantes à velocidade próxima da luz e volte consegue manter a juventude.
Mas donde veio a salvação, perguntará o leitor? Talvez do futuro, de uma
humanidade muito evoluída…
Contado assim (ou melhor semi-contado,
porque não conto os saltos surpreendentes do enredo) até parece um filme de
ficção científica de série B. Mas, não, é um dos grandes filmes do nosso tempo.
Para além de estar muito bem realizado (talentosos actores e portentosas naves consumiram
o orçamento do filme, equivalente ao Euromilhões), a obra de Nolan não é sobre
o espaço interestelar mas sim sobre o homem, a parte do universo que mais nos
interessa. É um hino à vida, ao mostrar a resistência à morte que o
conhecimento permite. Odeia, odeia a luz que começa a morrer. Mas, talvez mais
do que a ciência, o triunfo da vida baseia-se no amor, simbolizado aqui na
ligação cósmica entre pai e filha. Um ser humano vai ao fundo da escuridão, ao
interior do buraco negro, em busca da luz para dar à filha. É um representante
da humanidade que recusa a noite escura, mas, para tanto, o conhecimento tem de
se conjugar com o amor. O conhecimento sozinho não chega para salvar ninguém.
5 comentários:
Gostei muito do texto que citei no meu blogue.Espero ver o filme em breve.
Regina Gouveia
Ficou-me na retina esta particularmente feliz descrição: "...o buraco negro tudo atrai, desde a luz até à curiosidade humana..."
Visto o filme, tive uma enormíssima desilusão. Nem sequer me parece cumprir um papel de divulgação científica, tantas são as asneiras do argumento, já amplamente enumeradas. Mas a cinematografia então é mesmo má, mal montado, mal narrado, actuações medíocres, plasticamente pobre, um filme falhado em quase toda a linha.
Para mim, salva-se a citação do 2001 Odisseia no Espaço, perto do final, com Cooper a deambular perdido numa teia dimensional para além do nosso espaço, como um fantasma. Seria um belo final.
No meu blog:
http://olivrodaareia.blogspot.pt/2014/11/interstellar-de-christopher-nolan-um.html
Boa síntese, prof. Fiolhais! E ilumina um aspecto aparentemente "piegas" do filme, que é o papel da relação pai-filha. Ouvi acusá-la de ser uma cedência ao melodrama, por desistência do altruísmo pela "grande Humanidade" (abstracta), mas, como explica aqui, essa relação é simbólica e materializa a outra.
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