segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Prefácio a "Ciência: 4000 anos de história" de Patricia Fara
Meu prefácio ao livro que acaba de sair na editora Horizonte:
Este livro de uma historiadora de ciência inglesa é verdadeiramente invulgar. De facto, são raros os livros que apresentam a história da ciência de uma maneira integrada, abrangendo todo o globo terrestre ao longo de um período tão extenso. Patricia Fara foge ao estereótipo usual de considerar a ciência uma criação ocidental, segundo o qual a ciência surgiu com a Revolução Científica. Escolhe-se convencionalmente a data de 1543, quando o astrónomo polaco Nicolau Copérnico publicou em Nuremberga a sua Revolução dos Orbes Celestes e o médico belga Andreas Vesalius fez sair em Basileia a sua Fábrica do Corpo Humano. Mas, para Fara, a ciência confunde-se com conhecimento do mundo, sendo óbvio que este começou muito antes de ter surgido o chamado método científico, alicerçado na observação e na experiência. A historiadora escolheu um tanto ou quanto arbitrariamente, conforme a própria admite, o período de tempo de quatro mil anos, por terem passado dois milénios depois de Cristo. Achando interessante a simetria temporal em torno da data do nascimento de Jesus Cristo, começa com os babilónios de circa 2000 a.C. para terminar na actualidade, apresentando as controvérsias correntes de base científi ca como a engenharia genética, a nanotecnologia e o aquecimento global. O argumento da autora é que todo o conhecimento do mundo está relacionado. A ciência tem a ver com tecnologia, mas tem também a ver com magia (aliás, na linha da “terceira lei” do escritor inglês de ficção científi a Arthur Clarke: «Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia»).
A autora foge à narrativa histórica tradicional baseada numa cronologia de grandes nomes e grandes feitos, isto é, na astronomia e na física, a visão de Galileu Galilei após Copérnico, as descobertas de Isaac Newton após Galileu, e a imaginação criadora de Albert Einstein após Newton. Ou, na área da medicina, a descoberta de William Harvey após Vesálio, seguindo-se a inovação de Louis Pasteur. Ou ainda, na área da biologia, a síntese de Charles Darwin, confi rmada pela moderna genética, após Carolus Lineu. Em vez disso, Fara declara logo à partida que «toda a gente tem antecessores» (p. 19), e enfatiza as origens e as contribuições para o conhecimento que vieram da China e do Islão, as primeiras completamente à margem do mundo ocidental e as segundas permitindo que esse mundo fizesse a ponte entre a Antiguidade Grega e o Renascimento. Discute as experiências de vários tipos, desde as mágicas às instrumentais, que, de modos diferentes, têm em vista a compreensão do mundo. Enfatiza o papel das instituições, como os grupos e as sociedades científi cas, um tanto ou quanto em detrimento do papel dos indivíduos. Confronta a ideia de um cosmos ordenado segundo leis naturais com as mundovisões de tipo religioso. Descreve a aproximação ao invisível, que não se fez sem problemas filosóficos, empreendida pela moderna ciência, seja no mundo dos átomos e das partículas seja no mundo das células e dos genes. E, por fim, com base na máxima baconiana de que «saber é poder», discorre sobre as decisões humanas que decorrem do conhecimento do mundo, por exemplo o termo da Segunda Guerra Mundial com uma terrível arma de base científi«mudou para sempre o Universo e os seus habitantes» (p. 382). Estamos em presença de uma história cultural da ciência, uma história que pode e deve ser lida não apenas pelos cultivadores e amigos da ciência, mas por todas as pessoas minimamente cultas que estão interessadas em saber o que é a ciência e como é que ela ganhou o papel de relevo que, indiscutivelmente, tem na sociedade contemporânea.
Se a ciência goza de uma aura de objectividade, ou pelo menos tem como marca a busca dela, é claro que a história da ciência só pode ser feita, como aliás qualquer história, com uma boa margem de subjectividade. A síntese de Fara, apesar de magistral, é controversa. Por exemplo, Newton é apresentado quase como um alquimista e um místico em vez do filósofo natural que rompeu com o passado. Darwin é visto como um misógino ou pelo menos alguém que considerava a espécie feminina inferior (este livro reflecte uma visão feminista da autora, que, naturalmente, terá ficado, como qualquer pessoa, perturbada ao verificar o pequeno papel das mulheres ao longo da história da ciência). E Einstein, em vez de um grande génio isolado, é perspectivado como um continuador de cientistas anteriores (é, por assim dizer, relativizado!). Contudo, os «ídolos da ciência» não têm pés de barro e resistirão a esta visão iconoclasta, decerto útil ao contrapor -se à visão corrente. A originalidade é, sem dúvida, uma das virtudes deste livro.
Esta é uma história da ciência, que procura ir muito além do panorama comum baseado nos indivíduos e nas nações. Mas será crucial no prefácio à edição portuguesa destacar as referências a Portugal e aos portugueses. São escassas, como seria de esperar. E, como também seria de esperar, resumem -se ao papel que os Descobrimentos portugueses tiveram nessa «onda de globalização» que precedeu a Revolução Científica. Fara não refere essas inovações tecnológicas que foram a caravela e o astrolábio náutico, mas fala das fontes portugueses do mapa representado num globo, da autoria de um discípulo do matemático e astrólogo alemão Johannes Mueller, mais conhecido por Regiomontano, que trabalhou em Nuremberga quase um século antes de aí sair o livro de Copérnico (p. 110). Embora não surja nomeado, o alemão Martin Behaim terá sido esse discípulo de Regiomontano: ele participou como cosmógrafo em 1484 na expedição portuguesa chefiada por Diogo Cão à costa oeste de África, construiu em Nuremberga por volta de 1491 um famoso globo e, regressado a Portugal, faleceu em Lisboa em 1507. Fara refere os novos animais e plantas que os portugueses trouxeram do outro lado do mar. Fala, com evidente fascínio, do rinoceronte desenhado por Albrecht Duerer, também ele em Nuremberga (pp. 109-111). O animal exótico foi dado pelos indianos ao rei D. Manuel I e este, por sua vez, ofereceu-o ao Papa em 1515 (em virtude do naufrágio ao largo da costa italiana do barco que o transportava, o pontífice só o veio a receber, embalsamado, no ano seguinte). E fala das espécies vegetais, como a malagueta e o tomate, que, trazidas da América pelos exploradores portugueses e espanhóis, permitiram a renovação da alimentação humana no Ocidente (p. 172). Poder-se-ia esperar que uma história global da ciência incluísse a «Passarola» de Bartolomeu de Gusmão de 1709, que tanta curiosidade levantou no seu tempo aquém e além -fronteiras, e o terramoto de Lisboa de 1755, que tanto abalou os filósofos de uma época em que Fara é reputada especialista, mas tal não acontece. Mas, embora sem referir Portugal, Fara descreve o famoso eclipse solar de 1919, ocorrido na ilha do Príncipe, na altura uma colónia portuguesa, e que foi observado pelo inglês Arthur Stanley Eddington (o papel deste astrónomo é também relativizado). E por aqui fica a ciência portuguesa no panorama da história mundial da ciência. São só uns parágrafos, mas eles chegam para deixar clara a importância de Portugal na história científica do mundo numa altura em que a Europa descobria outros continentes e a ciência moderna se preparava para emergir. Em contraste, na história mundial da música Portugal só aparece, como recentemente assinalou António Pinho Vargas, porque o rei D. João V, o mesmo que concedeu a Gusmão os direitos de um «instrumento de andar pelo ar», chamou à sua corte o compositor e organista italiano Domenico Scarlatti.
A visão da ciência proporcionada por Ciência: 4000 anos de história é intelectualmente estimulante. Os que já conhecem a história da ciência ficarão com abundantes motivos de reflexão. E os que não a conhecem ficarão despertos para ela e com vontade de aprofundar a introdução aqui fornecida. Dizer que um livro leva ao exercício mental e que provoca apetite para outras leituras é o melhor elogio que se lhe pode fazer. Os leitores, qualquer que seja a sua preparação, ficarão a pensar e quererão saber mais. A obra de Patricia Fara tinha esse propósito e cumpriu-o plenamente.
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