quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Queiram todos os deuses que não chegue a muito mais velho, não fique muito doente... e, sobretudo, não fique pobre

Reprodução da fotografia de Taro Aso de Yoshikazu Tsuno/AFP/Getty Images
Muitas pessoas terão percebido que há um certo modo de pensar - ou de formatar o pensamento - a impor-se, não aqui ou ali mas em toda a parte. Não é um propósito novo, como novo não é o método usado para o alcançar.

Esse método, que podemos designar por mistificação, é tão perverso quanto perfeito. E é aplicado por especialistas, em quem o que haveria de humano não desabrochou, desapareceu, foi esquecido ou recalcado... mas dando-se a entender como razoáveis, sensíveis e amigáveis. Enganam, pelo menos até alcançarem os seus insondáveis fins...

Levam o mais comum dos mortais a aceitar e até a defender barbaridades, crendo que está a proceder bem, crendo, indubitável e honestamente, que não há outra via a não ser aquela em que foi instrumentalizado e em que, por sua vez, instrumentaliza outrem.

Conheço bem a mistificação na área em que trabalho, a educação. E devo admitir que tem sido muito bem conduzida, ao ponto prevalecer uma voz que tem tudo de doutrinal, sendo, nessa medida, irracional, indiscutível e, logo, inatacável.

Bandeira de vitória hasteada no campo da educação (onde, nestas guerras de manipulação, em geral, ocorre a primeira batalha, pela necessidade angariação de gente para outras que se seguirão), passou-se a outros campos, da política, do trabalho, da economia, etc. Um após outro, foram triunfalmente dominados e eis que chegámos ao último, que é também o mais delicado: a vida.

Há já algum tempo que os mistificadores insinuam que o "direito de viver" e o "dever de morrer" têm de se submetidos a regras, a critérios dado que a nossa presença ao cimo da terra e as contingências que a ela se associam, feitas as contas, nem sempre são rentáveis, podem mesmo sair caras, perturbando, dizem, a sustentação, o crescimento económico... algo deste género.

Vão minando e sempre avançando. Quando percebem que a sua voz, passou a ser "a voz", revelam-se tal como são: “Deus queira que (os idosos) não sejam forçados a viver até quando quiserem morrer”, “O problema não tem solução, a não ser que os deixemos morrer, e depressa", “o ministro da Saúde está consciente das despesas de saúde por paciente”, disse um deles (ver, por exemplo, aqui e aqui).

Estas palavras (e os actos a que conduzem) são do teor daquelas que Jacob Bronowski tão bem conheceu e denunciou. Numa imagem belíssima, o matemático, baixa-se para tocar na água de um fosso para onde foram deitadas as cinzas de quatro milhões de pessoas e murmura: "Isto é o que acontece quando as pessoas pensam possuir a verdade absoluta… Isto é o que os homens fazem quando aspiram ao conhecimento dos deuses..."

Nota: Em comentário, o leitor João Batista refere que a crónica de João Gobern de hoje, na Antena 1 da rádio, incidiu no mesmo tema. Vale a pena se ouvida com toda a atenção: aqui. Muito obrigada.

10 comentários:

joão viegas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Muito bom, gostei.

José Batista disse...

Quem também falou bem sobre este assunto, esta manhã, cerca das 07h e 50 min., na "antena 1" foi João Gobern.

Creio que este mal imenso vem da educação, sim, da educação. Em que a escola, ou quem manda nela tem tido imensa responsabilidade. Basta atender aos "diplomados" que tem produzido, às barbaridades que vão debitando e à ação que vão desenvolvendo. Uns intencionalmente, sabendo muito bem a quem servem, dominando, instrumentalizando e violentando, se necessário, com a máxima eficácia. Outros muito inchados, gloriosos na sua incompetência e irresponsabilidade, reclamando a rasoira para o que há de melhor de cada um: a sua liberdade, a sua individualidade e a sua personalidade; desse modo colaborando idiotamente com os primeiros.
Não sendo sociólogo, não sei o que vai ser da sociedade dentro de vinte anos. Mas não acredito no que estamos a preparar.
E não é por (qualquer espécie de) receio pessoal...

Se tentarmos limitar os estragos, já será alguma coisa...

Carlos Ricardo Soares disse...

Tenho pensado ultimamente num palavrão, quando penso nas pessoas que (me parece)não fazem nada para resolver os seus próprios problemas: autonomia. É um palavrão que me inquieta, porque é daquelas coisas que se "chama" aos outros, mas não gostaríamos que nos "chamassem" a nós. Fico a pensar que, se fôssemos autónomos, nem precisávamos de nascer, quanto mais depender dos outros para viver. Todos seríamos, talvez, independentes e não haveria necessidade de quem se sacrificasse pelos outros. Mas isto é como dizer que se todos fossemos saudáveis não havia doentes. E, o que me parece mais crucial e alarmante, é não deixarem as pessoas ser autónomas, impondo-lhes todo o tipo de limitações, constrangimentos, condicionalismos, preços a pagar, como se tivesse de ser assim, como se não houvesse outro modo de viver. Mas há, os imperativos monetários, as opções económicas, sejam dos governos, seja de quem for, no fundo, são imperativos dos homens e estes não são inalteráveis. Crianças, jovens, adultos, mais ou menos velhos, todos corremos o risco de não sermos vistos senão como um custo ou um estorvo numa lógica de proveitos e rentabilidades financeiras. O que me parece inadmissível e abominável é que alguém não se revolte contra isso, reduza as pessoas a essa visão e ainda defenda essa perspectiva como politica ou moralmente defensável. Já estivemos mais longe disso?

Carlos Ricardo Soares disse...

Esqueci-me de dizer que, em geral, quem mais reclama autonomia dos outros, queixando-se do peso deles nos orçamentos, é quem mais depende desses mesmos.

A. Moura Pinto disse...

Isto não vai lá com palavrões ou quaisquer estados de alma. Um tiro na testa bastaria.

augusto kuettner disse...

Matemos todos os que cá vivemos com 60 ou mais anos!!!!!!!!!!!!!!
Já!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Kynismós! disse...

Concordo com o ministro japonês, e ele diz que aplicará o que disse para si, isso deveria ser uma escolha de cada um... não quero ser um estorvo quando estiver decrépito...

Segue exemplo recente:

“Ele falou que se tivesse dificuldade e começasse a se sentir mal, que ele desejaria partir”

http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/01/amigos-contam-como-walmor-chagas-viveu-seus-ultimos-dias.html

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Um, dois, três. É sua vez.

augusto kuettner disse...

Uma "questão" é a escolha por cada um de nós do "testamento vital" ou/ da "morte assistida"!

Defendo ambos, dado que em certas circunstancias já não estamos de facto a viver......................mas daí a ser um governante a fezê-lo/decidi-lo/ obrigá-lo por nós vai uma elemantar distancia


............e é muito desadequado...humanamente!!!!!!!!!!!

Financeiramente dá jeito!!!!claro!!!!!!

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...