Neste mundo comandado por máquinas, torna-se
cada vez mais difícil ser humano. Vivemos em liberdade condicional, vigiados em
todo o lado por essas pulseiras electrónicas que são os telemóveis. Somos inopinadamente
dados como culpados de qualquer coisa e a pulseira lá está para não fugirmos. Fui
no outro dia interpelado por um SMS da minha operadora de telecomunicações que
me avisava de uma suposta dívida para com ela:
[P/ evitar suspensao da conta v devera liquidar o valor vencido de x ate ao dia y. MB/Ent w /Ref z
/Imp. x]
Reproduzo como recebi, com abreviaturas e
sem acentos (este é que é o verdadeiro acordo ortográfico que nos estão a impor!),
apenas com as letras v a z a substituir números. Ignorei a mensagem,
uma vez que tinha dado autorização para cobrança automática pelo banco. Mas,
quando a intimidação reapareceu, não me fiquei. Embora ciente de que era uma máquina
e esta é incapaz de uma conversa, resolvi tentar uma aproximação, imitando-a nas
abreviaturas e na falta de acentos:
[Os senhores tem autorizacao para cobrar
do meu NIB. Façam-no pf.]
Recebi a resposta na volta do correio:
[A sua ultima factura no valor de x tem data limite de pagamento até ao
dia y. Aceda tambem, gratis, apoiocliente.
O valor vencido tem a entidade w e a
referencia z.]
A máquina era teimosa, mas notei alguma
abertura: “factura” tinha um c como eu gosto, “gratis” embora sem acento vinha
delicadamente envirgulado e os “Ent.” e “Ref.” anteriores vinham agora descodificados.
Até o “até” tinha, aleluia, um acento agudo. O caso não seria grave. Usei a
paciência:
[Repito: Podem levantar no NIB indicado.
Por que nao o fazem e pretendem criar uma questao inexistente? Um cliente
descontente.]
Só depois de a ter enviado é que me
apercebi que a minha prosa rimava no final. Não gostei e a máquina, fiquei logo
a saber, também não:
[Nao foi possivel identificar o seu pedido.
Utilize palavras chave como pontos, saldo, tarifarios, etc. Mais informacoes em
apoiocliente.]
Só o uso de senhas como “saldo” e “tarifários”
em vez de “cliente descontente” me abriria portas. Cogitava eu na moderna semiótica
quando recebi um SMS muito jovial:
[Enquanto nao atendes, da musica aos teus
amigos. Liga gratis e escolhe 1 RingDing gratuito: Rihanna, Psy, Florence and the Machine,
etc.]
Estavam a dar-me música, tratando-me por
tu, mas eu não queria um “RingDing”, seja lá o que isso for, nem tamanha
familiaridade. Comecei a ficar irritado:
[Por favor parem de me mandar mensagens
anonimas. Eu estou identificado.]
Resposta lesta:
[Prefere escrever q falar? Envie SMS p/ qq
rede. P/ Tarifas envie sms com o seu Tarifario. Consulte + info, gratuitamente,
em apoiocliente.]
Sim, nestes assuntos prefiro escrever do que
falar, uma vez que, das poucas vezes em que recorri a callcenters, a conversa foi de surdos. Perante uma situação
particular, repetiam-me fórmulas gerais. Não sei se, do outro lado, há máquinas
a imitar seres humanos ou seres humanos, mal pagos, a imitar máquinas (um amigo
meu que passou por lá assegura-me que é esta última). Despedi-me:
[Por favor não insistam em enviar-me
mensagens sem nexo.]
A réplica foi:
[Comunique Mais, envie sms c/: Aditivo
FimdeSemana, Aditivo SMS; Aditivo Rede Fixa, Aditivo Internacional, Aditivo
Internet.]
Mas não comuniquei mais por aquele meio. Enviei
antes emails para o dito “apoiocliente”.
Quiseram primeiro testar-me a ver se eu era uma máquina como eles, exigindo-me um
reconhecimento óptico de caracteres. A resposta demorou, mas voltou a ser
maquinal. Tentaram vencer-me pela exaustão. Era mesmo assim. Não queriam cobrar
pelo banco, eu teria de pagar pelo multibanco. O máximo que consegui foi o encaminhamento
para um “Departamento de Controlo de Qualidade”. O problema devia estar aí: a
qualidade era controlada, no sentido de a impedir.
O que se tinha passado? Eu tinha comunicado
à operadora a mudança do meu NIB, mas a máquina dela tinha uma relação estável
com a máquina do meu ex-banco. Recusava-se a mudar. Para mostrar a sua
obstinação, a máquina “cortou” mesmo comigo, desligando-me no anunciado dia y o
telemóvel. Procurei, numa loja, um ser humano, para lhe dizer que ia mudar de
operadora. Nesse representante da espécie humana encontrei finalmente um assomo
de humanidade. A pessoa, temendo talvez o desemprego, pediu desculpa pelo
sucedido, que eram “automatismos”, que havia um erro e que me iam indemnizar. Automatismos?
Formatados pelas máquinas, esquecemo-nos que, pelo menos por enquanto, ainda
somos nós que as formatamos.
7 comentários:
Ola,
1. Uma solução simples e eficaz para o seu problema, que recomendo sem hesitações depois de a ter praticado com grande satisfação minha nos ultimos 46 anos, é não ter telemovel...
2. Caso não queira escolher a solução acima, julgo existir uma forma razoavelmente eficaz de conseguir restabelecer rapidamente a relação em moldes "humanos" : dê ordem ao seu banco para suspender todo e qualquer pagamento à operadora e vai ver que esta ultima entrara rapidamente em contacto consigo.
3. Dito isto, é verdade que é por vezes preciso uma certa teimosia. Pessoalmente, apos uma longa série de mails, consegui finalmente convencer o operador de telefone fixo de que sou cliente (não é em Portugal) a dar-me um numero de fax para onde possa escrever em caso de reclamação. Argumentei que não conseguia encontrar nenhuma justificação para ter de pagar à empresa as chamadas para um serviço de reclamações, uma vez que as reclamações tendem a ter como causa disfunções da mesma empresa. Acrescentei que descendo de uma tribo em vias de extinção, que tem como costume ancestral cortar relações com quem não consegue justificar os seus actos...
Boas
Vivemos comandados por máquinas mas somos nós que as comandamos e daí que elas mandam o que lhes mandam que mandem. É curioso como muitas vezes as pessoas se desculpam com a máquina, tentando esconder com isso, a sua própria incapacidade em lidar com a mesma. Obedecer, cegamente, às ordens da máquina, às vezes é muito mais fácil do que programá-la, correctamente, para que dê as ordens que queremos.
Muito oportuno.
Caro Professor Fiolhais
O caso que descreve, embora diferente mas próximo, traz à minha lebrança dois casos passados comigo, mas primeiro tenho de contar uma história verdadeira.
Quando morei na Ajuda, a nossa criada - era no tempo em que havia criadas, hoje são empregadas - chegada da mercearia, contou o que ouvira, num sussuro diálogo, entre o marceneiro e o patrão sobre um galheteiro que o primeiro tinha vendido mas esquecido de assentar o nome do freguês no caderno de fiados, e ao que o patrão respondeu que não se preocupasse, que pusesse o galheteiro em todos os clientes, que aceitasse os reclamantes e pedisse desculpas pelo engano, e os não reclamantes deviam ter culpas no cartório para ficarem calados. E assim se foi enriquecendo o merceeiro, provavelmente com outros produtos.
Posta a história em proémio vamos aos factos.
Um dia recebi uma carta, eu que moro em Lisboa, da EDP de Coimbra reclamando o pagamento de uma dívida de uma centena de euros. Porque culpas no cartório não tinha, respondi que achava a dívida muita estranha porque os meus negócios com a EDP de Lisboa corriam de feição. E a propósito acrescentei que a carta de EDP coimbrã se assemelhava à oportuna história do galheteiro da qual lha dei conta.
Passado algum curto tempo, recebi uma carta de desculpas e que engano houvera.
O mesmo ocorreu com outra empresa cujo nome entrou nos alçapões da memória, mas o historial foi idêntico obrigando-me a contar-lhes a história do galheteiro.
Cordialmente
Caro Prof., Haja um ensino exigente e de qualidade da Língua Portuguesa (salvaguardada de nacionalismos tropicais) e não tema pelo uso desta estenografia das SMS, que existe em todo o lado - a começar logo ali em Espanha - que está 21 lugares acima de nós da lista dos países por índices de alfabetização
Eu creio que há empresas que se servem do facto de os clientes não poderem contactar com responsáveis seus, quando muito uns telefonemas para uns "autómatos" que nada de útil conseguem responder, para os esmifrarem.
Noutros casos fazem uma "perseguição" às pessoa através dos telefones, móveis ou fixos, para fazerem "contratos", alterarem tarifas e proporem "o diabo a quatro", em qualquer dia e a qualquer hora, por mais inconvenientes que sejam.
A TMN tem feito isso com várias pessoas que conheço, algumas da minha família. E alguns casos são absolutamente infernais...
Ora, os cidadãos precisam cada vez mais de leis simples e claras, mediante as quais possam defender-se.
Mas isso seria se os deputados do nosso parlamento representassem, realmente, os eleitores.
É comum este tipo de acomodação e, possivelmente a maioria de recurso a disposição.
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