Extracto do livro "Do Livro e da Cultura", de Gil Jouanard, com tradução, introdução e notas de Miguel Graça Moura, que acaba de sair na Gradiva:
"Dois mal-entendidos vieram obliterar, e de
certa maneira dramatizar, o lancinante debate sobre o futuro do livro e o devir
da literatura.
Enquanto suporte e vector de informações,
resumo, utensílio de aprendizagem, instrumento pedagógico, via portátil de
evasão onírica, o objecto livro chegou de facto tardiamente ao campo onde,
desde há dezenas de milénios, se desenvolvem as aptidões cerebrais do ser
humano. Foi, de resto, por intermédio da oralidade que o Homo sapiens sapiens conseguiu o domínio mental e a seguir físico
do mundo visível; mas também que pressentiu a existência de uma vertente invisível,
impalpável mas activa, desse mesmo universo.
Este estatuto interino assumido pelo livro
enquanto vector, receptáculo e instrumento propagador de saberes, de intuições,
de elucubrações e de fantasmas fundava a sua legitimidade no pressuposto
segundo o qual «as palavras apagam-se, os escritos ficam».
Segundo o mesmo princípio, a comodidade e a busca
de eficácia encontraram utensílios muito mais fiáveis, menos aleatoriamente
tributários do grau de perícia e de domínio do utilizador, para desempenhar o
papel ao mesmo tempo pragmático e especulativo (mas também tranquilizador) de vade mecum, de jornal, de memória para todos os usos: a informática
e a electrónica propõem uma impecável versão sofisticada do canivete suíço para
uso cerebral.
Não duvidemos também do facto de que esta
nova prótese saberá rapidamente concorrer com (se não suplantar) a leitura
livresca, progressivamente relegada para o baú das antiguidades nobres e
sentimentais.
De resto, muitos bibliotecários já se
adiantaram a este movimento ao renunciarem ao uso do belo prefixo vindo da
Antiguidade, esse biblios portador de usos subtis, para adoptarem uma
outra raiz inaugural, tão pragmática como era o espírito dos romanos: o medium, utilizado aliás na sua forma plural media, que em latim significa ao mesmo tempo mediano e medíocre.
A causa está, pois, proclamada: ensinar,
informar e mesmo divertir (todas preocupações excluídas por Hölderlin da
panóplia das tarefas atribuídas aos poetas) serão, cada vez mais
frequentemente, e talvez em breve exclusivamente, assunto de «suportes» dotados
de inesgotáveis aptidões, extensíveis, combináveis entre si, com a informação a
substituir-se resolutamente à formação individual e à quota-parte de iniciativa
aleatória.
Todavia, não duvidemos de que os recursos de paciência,
de lentidão fértil, de sensualidade táctil e epidérmica, mas também visual, que
as páginas dum livro encerram, encontram diante de si um belo futuro: aquele
que é reservado às coisas raras, às práticas cuja natureza supostamente
elitista se oferece a quem lhe sabe reconhecer e adoptar as subtilezas,
fundadoras da parte mais fértil do húmus humano (esse húmus que privilegiará
sempre os acentos da viola da gamba em relação aos da música sintética).
Leremos, pois, tal como os amantes amam
acariciar-se em segredo: no retiro luxuoso, na calma e na volúpia das Pequenas
Bibliotecas Privadas — esses poderosos e afectuosos marcadores da identidade
individual.
É certo que muitas vezes já não se irá
procurar nos livros aquele saber e aquela «evasão» lúdica que são servidos
abundantemente nos self-services
de multimédia. Mas
continuar-se-á a ir descobrir neles a poesia e o pensamento requintado,
personalizado, voluntariamente atípico, aquele que, fora da norma globalizante,
permanecerá como fruto e sabor das palavras do acaso que nenhum sistema conseguiria
programar porque surgem de improviso, às vezes até de um lapsus generoso — palavras cujo sentido varia de um leitor para
outro, às vezes de um instante para outro, ao sabor daquele não-dito que as
atravessa e daqueles subentendidos que as fazem tremer.
Por outro lado — segundo mal-entendido e corolário
da «fatalidade» histórica — ouve-se dizer que a literatura está a morrer, que
já não há tantos grandes romancistas nem tantos leitores como no passado.
Para além do facto de que estas asserções
sumárias ganhariam em ser submetidas à prova do estudo cuidadoso e colocadas na
escala da extensão dos tempos modernos (isto é, os que decorrem desde o século XVII, investigando quem lia, no tempo deles, Descartes, Racine, La Fontaine,
Voltaire, Diderot, Chateaubriand, Baudelaire...), vai sendo tempo de constatar esta
evidência estranhamente iludida: o consumo das obras de ficção romanesca
decresceu à medida que se foi confirmando a aptidão da imagem móvel para se encarregar
dos recursos propostos pelo imaginário (isto é, a sua magnífica capacidade para
contar, evocar, narrar, descrever, e até sugerir...).
A tal ponto que a vocação de um Balzac, um Flaubert,
um Zola, hoje, teria sido sem dúvida a de recorrer às fabulosas aptidões
objectivas desses utensílios (que não o são mais do que o era uma pena ou, mais
recentemente, uma máquina de escrever). Melhor ainda: sem dúvida eles
encontrariam aí a ocasião de ampliar e aprofundar ainda mais o campo da sua investigação,
mas também de tornar mais sensível a densidade da sua percepção sensorial. Em
contrapartida, para o escritor e o leitor doidos por acasos linguísticos selvagens
e solicitações polissémicas íntimas — a que a história ou o conto só dizem
respeito em segunda instância —, a escrita ao nível altivo da mão e a leitura à
queima-roupa, ferozmente pessoal, — e portanto o livro — conservam uma
esperança de vida sem dúvida tão longa como a da espécie humana, que elas de
perto representam."
Esta literatura de proximidade ter-se-á
provavelmente afastado da preocupação de contar, de produzir frescos
históricos, de fornecer explicações, de misturar acontecimentos. Terá voltado a
ser o que tinha sido desde a sua origem: um modo de habitar e tornar- se a
própria realidade.
Assim, o livro do futuro já não será sem
dúvida factual nem pedagógico nem recreativo: será existencialmente o lugar por
excelência da emergência de instantes autónomos e irredutíveis, a que cada um
irá colher a energia para realizar a sua própria revolução interior, a sua
marcha lenta em direcção a si mesmo, a sua peregrinação à sua própria
emancipação, a sua prova de auto-superação permanente. Mas, com efeito, alguma
vez a literatura foi outra coisa?
2 comentários:
Agarrando unicamente no titulo: de facto neste País com toda a velocidade tudo está a ser feito para acabar com a Cultura e com o Livro...............quanto mais burros e incultos ficarmos mais satisfeito fica o Poder Politico......é o que temos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Por isso mesmo, que a Gradiva acolhe a leitura! Ternura a saber.
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