sábado, 14 de fevereiro de 2009

Ainda a língua do João

O Professor João Boavida respondeu amavelmente ao meu post sobre o seu post convidado, o que muito agradeço. Há aspectos em que concordamos. Por exemplo, a atitude provinciana de tentar copiar a academia americana ou britânica. Em filosofia eu vejo muito isso e farto-me de rir e de combater tal tolice. Este tipo de coisa acontece quando se é incapaz de ver a qualidade por si mesma, precisando nós que venha escrito em inglês para ser de qualidade — quando na realidade há filosofia escrita em português com maior qualidade do que muitas tolices escritas em inglês. Também concordo que as línguas evoluem e que a centralidade científica e cultural das línguas muda: no séc. XII o latim era a língua culta na Europa, apesar de a maior parte da população do mundo não saber sequer que existia a Europa; hoje, a maior parte das pessoas falam mandarim, mas ninguém sente que é importante aprender mandarim, porque não há a percepção de que exista bibliografia culturalmente relevante nessa língua. E todas estas mutações, é preciso não o esquecer, seguem as mutações políticas e económicas, porque a cultura custa muito dinheiro e a cultura sofisticada só subsiste junto dos grandes poderes económicos, que a podem pagar.

O que nos separa, então? Isto: não concordo com atavismos, com defesas nacionalistas de línguas, nações ou “almas” e “sentires” linguísticos. Que este tipo de defesa tem qualquer coisa de irracional — como defender a imensa superioridade do Benfica — é o facto de os portugueses nunca defenderem o sueco, por exemplo, ou o suaíli, mas sim o português, pela simples contingência de o português ser a sua própria língua. Isto é como defender que eu tenho direito a três refeições por dia mas o Xico não porque eu sou eu e o Xico não é eu.

As pessoas devem poder fazer o que quiserem, na língua que quiserem. Se querem fazer filosofia em hebraico, que o façam. Mas uma coisa parece evidente: sem uma língua comum, amplamente internacional, não pode haver uma comunidade científica e cultural internacional; e é importante que exista tal coisa, seja em que língua for. Se não fosse a mentalidade de defesa nacionalista de línguas, nunca se teria abandonado o latim como língua académica internacional, e isso seria melhor porque o latim já não estava associado a qualquer país e portanto não era sentido como um assalto de estrangeiros à nossa língua. Mas as fantasias estatistas da Europa moderna destruíram o latim, usando com má-fé o tipo de argumentos que hoje o Professor Boavida usa com boa-fé: a ideia de que era inigualitário usar uma língua que só os cultos entendiam, mas não o povo em geral. Evidentemente, se os políticos da altura estivessem preocupados com o povo, pensariam em dar-lhes formação escolar em latim, e não em fragmentar a língua académica internacional em dezenas de línguas que mais não foram do que a expressão do estatismo político que servia os políticos mas não os físicos, nem os biólogos, poetas, filósofos ou romancistas.

Em resumo: não há boas razões culturais ou científicas para defender a nossa língua nacional por ser nossa, e não se pode defender tal coisa sem se defender um isolacionismo que é a negação da cultura ou da ciência. Isto porque caso se defenda que cada académico ou cada filósofo deve escrever na sua língua, só os poucos que lessem essa língua poderiam ler o que eles escrevem, dado que nenhum académico pode dominar 40 línguas — e há muito mais do que 40 línguas no mundo. As razões para fazer defesas de línguas são exclusivamente políticas e nacionalistas, e não culturais nem científicas; e essas razões políticas e nacionalistas nunca têm realmente em mente o que é melhor para as pessoas reais, mas antes um projecto político qualquer, que geralmente foi concebido como coisa abstracta e desumana, fazendo-se contra as pessoas e não por elas nem para elas.

Uma última nota: concordo que o académico tem o dever prima facie de divulgar, na língua mais comum entre os seus concidadãos, a sua área da especialidade. É o que eu tento fazer. Mas não defendo que todo o académico tem esse dever; há académicos que ou não têm jeito para isso ou não têm interesse nisso ou estão demasiado ocupados com o futebol, e eu penso que isso é inteiramente legítimo. Desde que um dado número de físicos portugueses, por exemplo, escreva bons livros de divulgação e ensino em português, para chegar aos estudantes e ao público em geral, não precisamos que todos os físicos o façam.

17 comentários:

joão viegas disse...

Caro Desidério,

Ao ler o teu texto, fico ainda mais convencido que o que nos opõe não é uma questão de « patriotismo » vs. « liberalismo », mas antes a ideia que temos do que é uma « lingua » e do que deve ser a sua função.

A tua posição pressupoe que existe, ou que devia existir, uma lingua cientifica universal, isenta de ambiguidades e apta, não so a permitir que todos as cientistas comuniquem entre si para fazer avançar a ciência, mas também a substituir com proveito todas as linguas nacionais, pelo menos para termos uma representação objectiva das coisas. E a tal fantasia da mathesis universalis.

A ideia é bonita, mas é falsa.

A historia mostra que é falsa. Contrariamente ao que dizes, o latim não deixou de ser uma lingua viva por terem aparececido horriveis nacionalistas que o assassinaram. O latim morreu, muito simplesmente, porque os povos da Europa deixaram de o falar e porque nenhuma lingua se mantém viva se fôr meramente académica. Alias, foram os proprios académicos e eruditos da época que constataram que o latim que falavam ja não correspondia a nada : nem à realidade que os rodeava, nem sequer ao latim falado pelos Romanos. Nessa época, nasceram as linguas nacionais, mas também a ciência moderna. Convém não esquecer isto.

O que aconteceu ao latim aconteceria sem duvida nenhuma ao Inglês se ele se tornasse numa lingua cientifica falada unicamente por académicos. Este perigo não é teorico. Vê o que acontece no dominio dos negocios e da politica internacional. Ai o Inglês tornou-se ja lingua-franca e, numa reunião internacional, ninguém põe headphones quando o orador (que pode ser Chinês, Indiano, Português ou Hungario) fala Inglês. Mas, se reparares bem, basta o orador ser britânico e começar a falar uma verdadeira lingua viva, para as pessoas ficarem confusas e... porem imediatamente os headphones para ouvir a tradução. Isto prova que a lingua-franca se distanciou ja da lingua de origem.

E claro que esta simplificação é inevitavel, e até desejavel na medida em que favorece o contacto entre pessoas de varios paises. Neste aspecto tens razão : é bom para todos que os cientistas de varios paises possam comunicar e, hoje em dia, seria estupido não vermos que o fazem em Inglês. Portanto, quando disse no meu comentario de ontem que a "comunidade cientifica" é uma psicofoda, ha aqui um obvio exagero.

Mas a necessidade de comunicar com outros cientistas não deve fazer com que percamos de vista o essencial : a ciência não é feita "para comunicar com outros cientistas" e o "avanço da ciência" não é um objectivo em si.

A ciência é feita para as pessoas.

Se acreditassemos que existe uma lingua objectiva, racional (a tal mathesis universalis), que todos ganhariamos em adoptar para termos uma visão mais fina da realidade, mais racional, etc., então provavelmente deveriamos procurar implementar esta lingua em todos os paises do mundo. Deveriamos mesmo criar uma organização internacional para acabar com as linguas nacionais, um pouco como a FAO tenta acabar com a fome no mundo ou a OMS com as doenças.

So que esta lingua perfeita não existe, e o Inglês não é utilizado por se aproximar dessa lingua perfeita. E apenas utilizado porque é comodo, porque muitos o falam e porque é um bom instrumento de comunicação. E utilizado como mero "auxiliar" da ciência, não como « lingua cientifica », ou « algebra » propria da ciência.

Isto quer dizer que as pessoas vão continuar a falar linguas nacionais, a pensar em linguas nacionais, etc.

Ora o cientista trabalha para a comunidade em que se insere, e não para um mundo ideal de fantasia.

Estamos todos convencidos (e penso que J. Boavida também) que o excesso de nacionalismo é mau e que é perfeitamente estupido fecharmo-nos ao resto do mundo. Estamos todos convencidos que isto é ainda mais estupido no campo da ciência.

Mas procurar fazer com que haja ciência em Português, não é uma atitude de recusa do mundo exterior. Pelo contrario : trata-se de um corolario da modéstia que deve estar na raiz de qualquer atitude cientifica (e mais ainda filosofica), modestia que nos leva a compreender, e aceitar, que nascemos numa comunidade e que trabalhamos para esta comunidade. Esta atitude deve ser a do cientista porque implica também que ele esteja aberto à realidade (a toda a realidade) em que ele se move. A ciência não serve de nada se não procura facilitar a acção sobre esta realidade.

O texto de J. Boavida apenas sublinha que o facto do Inglês ser imprescindivel como auxiliar em muitas ciências (por ser um meio de comunicação eficaz dada a sua supremacia economica e politica), não deve ocultar que um cientista português so tem a perder ao recusar escrever na sua propria lingua. Tem ele, tem a universidade a que pretence e tem a sociedade em que se insere.

Desidério Murcho disse...

Onde foste buscar a ideia de que eu penso que o inglês é uma língua perfeita, uma mathesis universalis? Isto é completamente oposto ao que penso, dado que me oponho à ideia de que certas línguas têm “essências” ou “almas” ou “sentires” especiais, que é precisamente o que defendem os nacionalistas da língua. A língua é só o que fizermos dela, e a única atitude que tenho perante a língua é pragmática: desde que funcione bem, óptimo.

Quanto à tua ideia de que o latim morreu por não ser falado pelas pessoas, isso não é verdade. O latim morreu porque os estatistas queriam dividir para conquistar. As pessoas comuns falavam tão mal o latim quanto falavam o francês nascente ou o português nascente, que foram invenções das classes letradas. Não tivesse mais tarde havido um forte movimento europeu de escolarização universal, e hoje o francês ou o alemão escritos seria tão ininteligível para um francês ou alemão pobre quanto o latim o era.

O amor à língua-mãe é um estatismo atávico, e não há outra volta a dar a isto. Muitos dos grandes cientistas, poetas, romancistas, pintores estão-se nas tintas para esses atavismos precisamente porque trabalham a língua e sabem que é um mero instrumento e tanto faz uma como outra: cada língua tem as suas peculiaridades, e isso é interessante, mas nenhuma peculiaridade é um “sentir” ou uma “alma” inefável que urge obrigar os outros a cultivar. A citação de Fernando Pessoa mais incompreendida pelos estatistas da língua é a famosa “a minha pátria é a língua portuguesa”. Isto é geralmente interpretado como se Fernando Pessoa estivesse a defender um patriotismo da língua, quando na verdade o que ele estava a dizer é que não tinha pátrias e considerava a conversa das pátrias uma tolice, reconhecendo-se apenas como poeta, como artista, que trabalha com a língua — por acaso a portuguesa, por contingências irrelevantes (mas note-se que ele escreveu também em inglês e em francês).

João Silva disse...

Caro Desidério,

Se bem compreendi os seus comentários, para si a língua é um instrumento e, como tal, qualquer uma ,desde que funcione, serve. Como disse, Saramago e Eça de Queirós seriam na mesma grandes escritores se fossem castelhanos.

Discordo.
Como sei que gosta de citar Orwell, pense um pouco no exemplo do Newspeak: quando ele estivesse totalmente implantado seria possível a alguém sequer ter pensamentos lúcidos ou com um mínimo de razão?
Estou em crer que a linguagem modificada o pensamento. Penso em Português e não em Inglês. Se o fizesse o meu pensamento não seria o mesmo.

Veja-se o exemplo dos amnésicos: perdem memórias de conhecimentos mas não da língua. Porque será?

Penso que o ponto fulcral do seu texto é este.

joão viegas disse...

Caro Desidério,

E claro que a lingua não é um mero "instrumento de comunicação". Se o fosse, ha muito tempo que teriamos uma lingua unica. A lingua é muito mais do que isso : trata-se de uma realidade complexa, espontânea, que carrega consigo a vivência de um povo e a sua maneira propria de compreender e de se projectar no mundo.

Se pensar isso é ser nacionalista, então tens razão eu sou assumidamente nacionalista. Eu e Dante, Machiavel, Hobbes ou Descartes, quando decidiram escrever as suas obras nas suas linguas nacionais, ou verter para as suas linguas nacionais obras que haviam escrito em latim.

Mas ainda que a lingua fosse um mero instrumento de comunicação, perfeitamente neutro, e que fosse completamente indiferente uma pessoa exprimir-se na lingua que aprendeu quando nasceu e com a qual cresceu, ou noutra lingua qualquer aprendida mais tarde, a tua posição não deixaria de ser insustentavel. Com efeito, mesmo nessa hipotese seria normal uma universidade preocupar-se em fazer com que os seus trabalhos sejam acessiveis às pessoas da sua comunidade. Ou seja teria sempre que se preocupar em saber qual é a lingua falada pelas pessoas que estão à volta dela.

O teu texto é tipico do que eu procuro justamente criticar. Fazes como se as linguas nacionais fossem meros traços de folclore, perfeitamente irrelevantes, e se fosse tão importante saber qual é a lingua materna de um cientista (ou de um filosofo) como saber se ele gosta de cerveja com tremoços.

Isto é partir do principio que a Ciência (ou a Filosofia) constituem uma realidade superior radicalmente cortada das pessoas. Isto é assumir que a lingua da Ciência, da Filosofia e da Cultura é por essência diferente da lingua quotidiana. E vê-se que este traço corresponde ao que pensas quando afirmas (o que é um erro historico) que as linguas nacionais nasceram de meros caprichos politicos e que so se tornaram interessantes quando os académicos começaram a pratica-las. O subentendido é que a lingua que fala o povo é mais pobre, ou menos apta às nobres elaborações da ciência e da cultura.

Isto esta errado : o Inglês não foi feito por Shakespeare, nem o latim por Cicero, estes apenas o levaram a um nivel superior de expressividade e beleza, mas fizeram-no porque souberam captar a sua riqueza intrinseca, fruto da sua evolução popular.

E acho que traduz uma atitude errada que, infelizmente, foi muitas vezes dominante em Portugal : fazer ciência (ou filosofia) como se se tratasse de uma matéria nobre radicalmente inacessivel aos labregos ca do burgo. E de facto, a nossa pobreza intelectual é feita dessas glorias que olham para Harvard, Oxford, Paris, ou Roma e que não vêm que fariam um trabalho muito mais util, e se calhar um trabalho muito mais valioso do ponto de vista cientifico, se começassem por procurar resolver os problemas do tio Manel...

E para terminar, uma pergunta : como é que achas que o Inglês se tornou a lingua dominante que tu hoje reverencias ? Precisamente porque houve pessoas que, nos séculos XVI e XVII, resolveram preferi-lo ao latim. E não foram so politicos...

Anónimo disse...

Todo o nacionalismo é tendencialmente nocivo à saúde mental, mas o nacionalismo linguístico é particularmente pernicioso.

Afirmações estúpidas como a do Nobel português ao dizer que a língua portuguesa é a mais bela do mundo revela como um artista da palavra pode ser ao mesmo tempo um opinador preconceituoso. Como pode ele afirmar tal quando necessariamente desconhece os milhares de línguas que (ainda) existem no planeta?

Nenhuma língua é por inerência a língua da ciência. Mas a ciência só tem vantagens em dispor de uma língua universalizante que permita a intercomunicação de quem pensa, seja ele chinês ou o que quer que for. Foi assim que a ciência avançou, no mundo antigo com o grego e o latim, é assim que a ciência (e tb a contraciência) se dissemina no mundo atual com o inglês. O inglês permite o acesso ao pensamento do outro venha de onde vier.

Em algumas áreas da ciência até bastarão em tese alguns poucos operadores para estabelecer um diálogo de horas a fio. Penso por ex. na matemática/lógica onde será possível "conversar" com a simples ajuda de SE LOGO E OU e uns tantos mais.

Mas talvez já esteja na hora de deixar em paz a língua dos outros e passar a mostrar trabalho na língua própria ou na alheia.

Vitor Guerreiro disse...

A ideia de que a língua seria única caso fosse apenas um instrumento de comunicação é falsa, porque pressupõe a premissa inestabelecida de que a única causa de as línguas derivarem é o facto de servirem mais do que para comunicar. Pela mesma ordem de raciocínio, todos os pássaros teriam um canto igual se o canto só servisse basicamente para eles acasalarem. Isto é evidentemente falso.

"A lingua é muito mais do que isso : trata-se de uma realidade complexa, espontânea, que carrega consigo a vivência de um povo e a sua maneira propria de compreender e de se projectar no mundo."

Páre para pensar e compreende que isto é retórica fascista de cara lavada, ou então são meras frases feitas ao sabor da música. Sempre a mania do "projectar no mundo" - mas por que raios é o mundo obrigado a apanhar connosco? Porque temos uma missão civilizadora? O que é isso de uma maneira "própria" de "um povo" se sentir? Significa que eu não sou "genuíno" quando não tenho orgasmos a ouvir fado e a exultar com o porto ou o benfica? Isto ou é coerente, e é fascista, ou então é tão poeticamente vago que dá para tudo - e de facto dá: esta cantiga é popular em todos os quadrantes da política que têm alguma utilidade para a demagogia.

Anónimo disse...

Caro João Viegas,

Há muitas definições do que seja uma língua, só aparentemente excludentes. Quando vc diz que a língua é "uma realidade complexa, espontânea, que carrega consigo a vivência de um povo e a sua maneira propria de compreender e de se projectar no mundo" está a pressupor que existe um povo português com características específicas e homogéneas, coisa que não é de todo líquida. Mas concedendo alguma validade à sua tese, e carregando a língua como vc diz uma certa vivência do mundo própria de um determinado povo, como resolver o problema da língua portuguesa no Brasil, por ex.? Existirá na sua ótica um povo brasileiro? E a existir, como resolver a contradição com uma língua que carrega a vivência do povo português e não a do outro povo que a adotou? Ou será que lá não se trata mais de língua portuguesa?

Acho que vc confunde tb a língua enquanto língua materna que essencialmente não precisa de ser aprendida na escola, e língua segunda como instrumento cultural de intercomunicação. É verdade que o Dante escreveu a sua poética em florentino, mas quando quis tratar do problema da língua italiana escreveu a sua tese em latim. Duas línguas na mesma pessoa mas para diferentes funções. Não se pede, pois, aos ficcionistas portugueses que passem a escrever em inglês (coitados, o que seria deles!), mas sugere-se que os cientistas portugueses ao divulgarem os seus trabalhos urbi et orbe o façam em inglês. São coisas totalmente diferentes.

Ah! as universidades e os labregos! Quando os labregos entenderem o que falam os cientistas, deixarão ipso facto de ser labregos. Creio que vc confunde a ciência com as respetivas aplicações, as quais poderão ou não resolver os problemas do ti Manel, sem que o tiozinho necessariamente entenda a ciência que está na base.

O inglês está na berra pq, primeiro a Inglaterra, depois os States, se tornaram as maiores potências mundiais e por arrastamento levaram todos os outros a quererem comunicar-se com eles. E daí? O Japão e a Alemanha, dois gigantes mundiais a nível económico e cultural, tampouco desdenham comunicar-se em inglês por meio dos seus congressos e das suas revistas científicas. A França, malgré tout, tb começa a enveredar pelo mesmo caminho. Não será a adoção generalizada do inglês em contextos semelhantes que impedirá Portugal de se desenvolver economica e culturalmente, pelo contrário. As resistências que surgem aqui e ali, por respeitáveis que sejam, são geralmente de cariz acentuadamente ideológico, reacionárias ou utópicas à la Agostinho da Silva.

Anónimo disse...

a prova provada de que a lingua portuguesa está apta pra tudo é a propria existencia deste blogue.Claro que o blogue teria maior audiencia se fosse publicado em ingles, beneficiando talvez igualmente de uma mais informada discussao, mas certamente afastando tb alguns dos leitores atuais.

Aires Almeida disse...

"A língua não é um mero instrumento de comunicação", diz João Viegas.

Infelizmente, tem razão. Há muitas pessoas que, como o João Viegas, têm crenças místicas sobre as línguas e que, empurradas por essas crenças, acabam por utilizar a língua como instrumento político e ideológico. Daí que seja verdade que a língua não tenha sido apenas um instrumento de comunicação.

Analogamente, poderíamos também dizer que um pénis não é apenas um órgão sexual; que pode também ser um instrumento de trabalho, dado que há actores pornográficos. Bom, com este tipo de raciocínios tudo acaba por ser quase tudo.

Que se tem utilizado as línguas como arma política (quase sempre ao serviço de nacionalismos histéricos) é fácil de provar. Basta ir ao País Basco e à Catalunha. É ridículo o que se passa em algumas universidades catalãs, por exemplo, onde há quem chegue a escrever artigos científicos em catalão, por uma questão de brio nacionalista, mas que depois ninguém discute. Ao mesmo tempo outros escrevem em espanhol (ok, castelhano) e outros ainda em inglês. Tudo na mesma comunidade académica. Claro que os que escrevem em catalão não estão muito interessados em ver discutidos os seus artigos pelos seus pares do mundo inteiro. Estão só a fazer política e a trabalhar para uma ideologia.

O latim morreu principalmente por razões deste tipo (questões políticas como a afirmação dos povos, etc.). O que se passou com o latim ainda hoje se passa em tantos casos. Veja-se a título de exemplo o caso da cidade natal de Kant, que pertencia naquele tempo à Alemanha e se chamava Königsberg. Passou para a Rússia depois da 2ª Guerra Mundial e todas as marcas da língua e cultura alemãs foram apagadas da cidade (só mesmo Kant se salvou), incluindo o nome, que agora é Kaliningrado. A língua alemã foi simplesmente proibida na cidade. Porquê? Porque o povo de Kaliningrado passou a sentir, a pensar e a amar em russo de um dia para o outro?

Assim, o que importa saber não é tanto o que se tem feito com as línguas, mas o que as línguas são essencialmente. E a resposta é mesmo essa: são essencialmente instrumentos de comunicação.

Diz ainda o João Viegas que "o subentendido é que a lingua que fala o povo é mais pobre, ou menos apta às nobres elaborações da ciência e da cultura"

Não é nada esse o subentendido! Isso é distorcer o que foi dito. Aliás, o próprio JV começou por identificar correctamente o que está realmente em causa: que uma língua é essencialmente um instrumento de comunicação. Por muito sofisticada que seja a língua falada pelo povo português, ela não dá para internacionalizar a discussão do que os cientistas portugueses fazem e escrevem, caso escrevam na língua portuguesa. E, sem, isso a ciência não se desenvolve (não há ciência portuguesa nem francesa; há ciência simplesmente).

Outra confusão subjacente a alguns comentários é pensar que defender o uso do inglês equivale a proibir o português ou, pelo menos, a não fazer seja o que for para melhorar o português que falamos. É perfeitamente compatível apelar ao uso do inglês e melhorar a qualidade do português.

joão viegas disse...

Caros,

Vocês continuam apegados à ideia de uma ciência abstrata, feita por e para uma "comunidade" que vive virada para si mesma, e cujos beneficios se resumem à sua propria existência, independentemente da qualquer outra consideração.

Se a lingua fosse um simples instrumento de comunicação, deveriamos favorecer a substituição de todas as linguas nacionais por uma lingua unica, uma vez que a comunicação entre os povos é indiscutivelmente benéfica para todos os povos e que este beneficio vale claramente mais do que a subsistência de traços de folclore arcaico...

Porque sera que isto não sucede ? Unicamente por existirem politicos egoistas que têm interesse em manter os povos separados ?

Não vêem que esta ideia fantasiada não corresponde à realidade ? Que nem as pessoas se resumem a maquinas de abstração sem espessura, nem a ciência a uma matematica seca cortada de qualquer realidade social ?

De um ponto de vista objectivo e "cientifico", é puramente falso defender-se que as linguas nacionais so subsistem por causa de preconceitos fascizantes. Alias, duvido que consigam encontrar uma unica universidade séria no mundo que aceite esta tese (mesmo se fôr redigida em Inglês).

Enquanto houver Portugueses (e Brasilieros) a falar Português, favorecer os cientistas de Portugal (e do Brasil) a fazerem ciência noutra lingua (Inglês ou Latim) é apenas acentuar o divorcio entre os outros Portugueses (Brasileiros) e a ciência...

E esta verdade aplica-se a qualquer outra lingua nacional viva, incluindo a inglesa.

Isto é bastante simples mas pelos vistos vocês so acreditarão quando o virem escrito em Inglês por um autor da moda.

Triste...

joão viegas disse...

Aires Almeida,


Porque é que ideias politicas seriam mais "misticas" do que ideias "puramente cientificas" ?

O que é mais mistico, tomar em consideração esta realidade social indiscutivel que é existirem linguas diversas que se desenvolveram historicamente no seio de diversas comunidades (sociais, politicas, economicas), ou acreditar que a razão so pode exprimir-se numa lingua ideal clara, universal, perfeitamente transparente e apta a tornar-se na lingua unica do progresso ?

O que é mais mistico, exigir do cientista que integre na sua reflexão a questão da utilidade social do seu trabalho, ou educa-lo na ideia que ele trabalha para uma comunidade angélica ?

Vitor Guerreiro disse...

Neste momento, os filósofos portugueses, por exemplo, se escrevessem artigos em inglês e participassem em revistas de filosofia de projecção internacional, significa que estariam a prestar um excelente serviço aos seus conterrâneos (com os quais temos tantos laços quantos podemos ter com ingleses ou com marroquinos), porquê? Porque não há publicações destas em portugal e as que há nao têm os critérios de exigência das revistas internacionais. Quem trabalhasse para cumprir este critério seria obrigado a aumentar a fasquia de qualidade do seu trabalho. O que temos é uma merda: até eu quando era licenciando publiquei um artigo merdoso numa revista só porque me dava bem com o professor. Hoje tenho vergonha de olhar para o artigo porque está cheio de erros, parvoíces e generalidades que soam bem. Mas como foi possível isto publicar-se? É a "alma portuguesa".

No ponto em que as coisas estão, já é pedir muito aos Sr. Professores que escrevam dois artigos ou um por ano. Há coisas melhores para fazer, depreende-se. Quanto mais divulgar e traduzir boa divulgação.

Isto é uma questão de bom senso. As pessoas devem investigar e escrever nas línguas que lhes apeteça. Se o fizerem na língua franca que por acaso o seja - latim, ingles ou o raio que parta - isso é bom pelos motivos que indiquei. Nada disto é incompatível com fazer ao mesmo tempo boa divulgação em portugues e traduzir textos essenciais para português. Eu defendo essa prática porque até é a minha profissão. Passo os dias a traduzir obras para português, infelizmente nem sempre da minha área de formação, filosofia. Gosto de o fazer. Acho que é necessário fazê-lo. Dá-me prazer fazê-lo.

Só que fazer isto: participar em publicações internacionais e fazer divulgação na própria língua, dá trabalho e não dá azo para cerimónias com medalhas entre mandatários do governo e Malucas Casteleiras, com chazinhos sociais à mistura e uns quantos subsídios pelo meio, para fazer dicionários mal feitos e obrigar os outros a pensar como os senhores doutores lá gostam.

O problema do mercado português por exemplo, nos livros de filosofia, um deles, é que não temos público suficientemente formado para ler com proveito obras avançadas. Por isso precisamos urgentemente de obras de divulgação. A sociedade portuguesa tem um défice de formação científica, filosófica e de tudo o mais, que é precisamente o problema que as pessoas, se estão realmente preocupadas com a cultura no seu país (digo NO e não DO seu país - a cultura é a cultura, não é uma porcaria mística étnica), estariam a atacar, tratar, resolver... Mas isto não dá espectáculo.

Fazer livros de filosofia avançada em português de nada adianta ao público em geral. Porque nenhum bom filósofo trabalha isolado ou faz bons livros sozinhos: os bons livros nascem da discussão entre pares. Se muito poucos filósofos de jeito lêem português, para que fazer filosofia avançada em português? Para discutir com o colega que tem medo de dizer o que pensa para não estragar a amizade ou parecer agressivo? Para cair a pedra no charco sem fazer sequer uma onda?

Bolas: é EVIDENTE que aquilo que há a fazer é filosofia avançada em inglês, de preferência, não por ser o inglês, mas por ser neste momento a língua franca (que se lixe as superioridades políticas, isso é uma tanga de merda) e AO MESMO TEMPO fazer divulgação e tradução de divulgaçõa para português.

Mas este tipo de coisa trabalhosa e pouco verbosa não interessa a políticos e a Malucas Casteleiras.

enquanto isto for assim, continuaremos a ter dicionários que registam "bué" mas não "functor" e "mereológico", que não distinguem "ilusão" de "delusão", que registam "dóxico" em vez do etimologicamente correcto "doxástico", que definem "mula" como "fêmea do burro", que dizem que "fasquia" tem origem obscura (até um miúdo do 10ºano vê a relaçõa com o latim "fascia"), etc.

E continuaremos a ter muitas águias renascidas e panfletos nacionalistas e poetas do Ser e muita muita FILOSOFIA DE MERDA, e continuaremos a dar doutoramentos a palhaços quem nem identificar uma falácia sabem.

Porque... viva Pórtgal e prontos coiso! É assim, é a vida.

Aires Almeida disse...

Caro João Viegas,

Insiste em fazer interpretações que nada têm que ver com o que foi dito. Veja-se:


«O que é mais mistico, tomar em consideração esta realidade social indiscutivel que é existirem linguas diversas que se desenvolveram historicamente no seio de diversas comunidades (sociais, politicas, economicas), ou acreditar que a razão so pode exprimir-se numa lingua ideal clara, universal, perfeitamente transparente e apta a tornar-se na lingua unica do progresso ?»

Para que fique claro, não há línguas ideais, perfeitas e transparentes. Nem o inglês nem qualquer outra língua o é. A questão não é o inglês ser mais perfeito do que outras línguas; é antes o ser entendida por muito mais pessoas e chegar muito mais longe por isso. E as ideias científicas precisam de chegar aos outros para serem discutidas e testadas.


«O que é mais mistico, exigir do cientista que integre na sua reflexão a questão da utilidade social do seu trabalho, ou educa-lo na ideia que ele trabalha para uma comunidade angélica ?»

Comunidade angélica? Isto é uma falácia do homem de palha.

É claro que quando uma língua é falada por um maior número de pessoas, sobretudo de pessoas que procuram exprimir-se cientificamente através dela, melhor ela acaba por ser.

De resto, as pessoas de um país não ficam cientificamente mais cultas se os seus cientistas se limitarem a fazer ciência para pessoas cientificamente ignorantes. Há que discutir as ideias científicas entre pares.

João Silva disse...

Desidério Murcho fala e vêm os capangas proteger!

O que estava em causa e o que disse o João Viegas não era o publicar-se coisas em Inglês. Tudo bem, dessa forma abrange-se mais gente.

O que está em causa, e como o João Viegas disse muito bem, é o facto de, para o Desidério Murcho, as línguas serem todas iguais.
Se todos falássemos a mesma língua melhor, pois todos nos compreenderíamos.

Reafirmo o que disse, discordo! A língua condiciona o pensamento. E muito. Se eu não souber gramática não vou conseguir estruturar correctamente o pensamento, por exemplo. Pensar em Inglês não é o mesmo que pensar em Português, ou em Russo ou em Ucraniano.



Quanto a histórias do estilo "Ai, a filosofia em Portugal é má e tal..." acho que os leitores já estão fartos.
Tudo bem, ela até pode ser má. Mas não estejam SEMPRE a falar nisso!

João Silva disse...

O que eu estou a dizer é que há línguas que valem mais do que outras. Por exemplo, por terem maior volcabulário. E dessa forma, condicionam o pensamento de quem as usa.

Como já referi, o exemplo do Newspeak é flagrante disso mesmo. Entre as línguas actuais as diferenças até podem nem ser acentuadas e se calhar o problema nem se põe. Mas, em termos teóricos, não é bem assim.

Sim, as línguas são meios de comunicação. Mas há uns melhores do que outros.

O post original nega isto. E este é o seu aspecto verdadeiramente original.

Quanto ao resto, um conjunto de banalidades! Essa treta do Inglês, multiculturalismo e Português já levo eu na escola!

Vitor Guerreiro disse...

Se a língua condiciona o pensamento, essa seria mais uma razão para não ficar restrito à produção cultural monolinguistica. Ao exercitar uma língua onde há mais produção cultural do que noutras, estamos a fazer o melhor que se pode fazer para combater o condicionamento ou a provincianização do pensamento, por assim dizer.

Desidério Murcho disse...

Olá, João Pedro

Concordo contigo, mas isso nada quer dizer, pois as línguas alargam-se, mudam, adaptam-se consoante as nossas necessidades. Claro, também podem ser uadas para manipular. Mas de nenhum destes dois aspectos se segue a superioridade ou inferioridade do português. As línguas não são superiores nem inferiores umas às outras. Têm é mais ou menos acervo científico, filosófico, artístico ou cultural originalmente escrito nessa língua.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...