Na entrevista que o Miguel refere, o Gilberto Gil, actual ministro da cultura do Brasil, não compreende uma coisa óbvia: que os ajustes na língua são naturalmente feitos por quem a usa sem precisar de supervisão política. Isso acontece com a língua inglesa, que é muitíssimo mais importante do que a portuguesa no plano das ciências, da cultura, das artes, da tecnologia e da política.
O ministro é obviamente vítima da mentalidade antidemocrática, segundo a qual precisamos de comissões de sábios para supervisionar a língua, armados do Diário da República. Não precisamos disso. Precisamos apenas de implantar hábitos de discussão pública. De fazer como faz o Miguel no seu blog; de criar sites como o Ciberdúvidas; ou sites como a secção de linguística do Público.
Precisamos de cuidar todos da língua, mas não cuidaremos dela se o fizermos ditatorialmente, através de comissões de sábios, de Diário da República em punho. Pois se o fizermos, estaremos a matar o natural dinamismo da língua, a matar a sua democraticidade intrínseca; estaremos a imobilizar a língua e a dar a algumas pessoas um poder inusitado de impor a todas as outras pela força da lei as suas idiossincrasias.
Num processo genuinamente livre e democrático, manda na língua quem a usa, e não quem calha a estar armado do Diário da República.
Às vezes tenho a sensação de que não consigo realmente explicar esta diferença para mim óbvia. Vejamos: num país genuinamente democrático, como acontecem as coisas? As pessoas escrevem, discutem, pensam, articulam argumentos, procuram etimologias, etc.; algumas das opções serão mais adoptadas do que outras, acabando umas por ser consagradas em alguns dicionários, outras noutros. Isso fará subsistir por vezes alternativas, como “coisa” e “cousa” há uns anos ou, ainda hoje, “oiro” e “ouro”. Caso certos usos acabem por se impor, os dicionários acabarão por reflectir isso mesmo, passando a grafar certas ortografias como arcaicas. E é tudo mais orgânico, mais simples, mais democrático. E provavelmente melhor, dado que o processo de decisão foi gradual e resulta da própria prática das pessoas.
Caso este tipo de atitude existisse, poderíamos ter-nos livrado já do “p” de “óptimo”, que aparentemente faz imensa comichão aos autores do Acordo Ortográfico. Mas assim, com o Diário da República, tem o efeito oposto, porque já não estamos no tempo da outra senhora, em que apenas uma pequeníssima minoria da população usava a língua escrita.
quarta-feira, 25 de junho de 2008
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2 comentários:
Caro Desidério,
É um prazer discutir consigo, mas a sua predileção pela acracia (ausência de coerção) no domínio da língua é apenas uma ideia simpática. Não preciso de acrscentar grande coisa ao que lhe disse João Viegas nos comentários ao seu artigo de 24 de Junho ("Fatos e Leis" no "Público" e também neste blogue). Se seguissemos a sua amável utopia ácrata, a língua portuguesa seria a única área do saber a escapar à transmissão de normas. Bem sei que há muitas modas pedagógicas desde os anos 60 a tentarem eliminar qualquer tipo de normalização, mas acontecerá (já está a acontecer) a esse radicalismo aquilo que acontece a todos: passará de moda.
Não, Miguel. As normas existem em muitas áreas, e não são legisladas. Mesmo no caso da linguagem, não há normas gramaticais legisladas, mas não deixa de haver normas por causa disso. Em filosofia ou física ou engenharia ou medicina há imensas normas, mas não são legisladas e não precisamos que sejam legisladas e se forem legisladas é sinal de que não sabemos o que é viver num país livre e democrático. Como já disse ao João, é quem defende a legislação ortográfica que tem de apresentar argumentos muito claros a seu favor. Eu não tenho de “provar” que não se deve legislar; o ónus da prova é quem acha que é preciso legislar. Já li os seus argumentos no seu blog, mas já os refutei. Mas talvez os tenha entendido mal. Corrigir-me-á se for esse o caso.
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