sábado, 3 de maio de 2008

A contar no berço












Há umas semanas, escrevi um post sobre as capacidades muito precoces reveladas por bébés de apenas 6 meses, que distinguiram acções intencionais de não intencionais e entre seres autónomos e corpos inanimados. Volto a este assunto com mais algumas evidências das capacidades notáveis que os membros da nossa espécie conseguem evidenciar, em fases muito precoces do seu desenvolvimento cognitivo, e que suscitam muitas interrogações sobre como aprendemos uma parte do que sabemos acerca do mundo em em vivemos.

A questão interessa-me particularmente porque as capacidades são demasiado elaboradas para surgirem do nada e aparecem demasiado cedo para poderem ser ensinadas. Como se desenvolvem essas competências? Que papel teve a evolução na configuração destes processo de desenvolvimento?

Um considerável número de experiências realizadas ao longo das últimas décadas permitiu perceber que bébés com apenas alguns meses têm noções incríveis sobre a física do mundo que os rodeia. Percebem que o mundo é constituido por corpos sólidos coesos, que mantêm a forma quando imóveis ou quando se deslocam; que não se influenciam (não se empurram) à distância, tendo que contactar fisicamente; que um corpo geralmente desce um plano inclinado, mas não sobe sozinho; que se uma caixa chega à extremidade de uma mesa e continuar a ser empurrada cai, não fica a levitar; que os objectos continuam a existir mesmo quando não estão visíveis. E várias experiências sugerem a percepção do conceito de ‘força’ que, quando aplicada a um objecto, produz efeitos. Será uma espécie de ‘física popular’, mas que surge antes de a criança experimentar directamente. Se aprende, fá-lo muito rapidamente e a partir de uma observação penetrante e claramente dirigida.

Como é que se consegue experimentar tudo isto com bébés que não falam?

Graças a uma técnica fantástica, descoberta já há uns anos, que assenta na constatação de que um bébé presta muito mais tempo de atenção a algo novo, surpreendente ou inesperado que a algo que lhe seja familiar ou esperado. Assim, medindo o tempo de atenção quando lhes eram mostradas cenas num ecrã em que se empurrava um copo ao longo de uma mesa, foi possível verificar que os bébés ficavam surpreendidos e aumentavam consideravelmente a sua atenção se o copo continuasse para lá do tampo da mesa sem cair, ficando a ‘levitar’ sobre o chão.

Igualmente notável foi a constatação de que os bébés têm noções básicas de aritmética, através de experiências conduzidas por Karen Wynn e seus colaboradores. Numa situação (A) eram apresentados dois objectos que depois eram tapados por uma cortina. Em seguida um operador removia um dos objectos que se encontrava atrás da cortina. Quando a cortina descia, se estivessem dois objectos na mesma, o tempo de atenção aumentava imenso. Noutra situação (B), a 1 objecto inicialmente visível era adicionado outro, mas com a cortina presente. O observador também se revelava surpreendido se só aparecesse um objectos após remoção da cortina. Ou na situação em que eram colocados dois objectos, mas apareciam três quando a cortina desaparecia. Perante várias manipulações, se o resultado fosse diferente de uma aritmética correcta o observador revelava-se perplexo. E reparem que a situações referidas implicam capacidade de enumerar, não é uma mera questão de percepção. Quando olhamos para uma imagem contendo vários objectos e depois nos mostram outra semelhante e nos perguntam se falta algum, estamos a lidar com a percepção (e, claro, a memória visual). Mas, a criança sabe que 1 objecto mais 1 objecto = 2 objectos, embora não os tenha visto juntos antes. Sabe que a adição ou a subtracção resulta na alteração do número de objectos.

Como é possível saber tão cedo que 1 + 1 = 2? E sem tutor? Quando a complexidade da tarefa cognitiva é demasiado elevada para que o seu surgimento possa ocorrer por mera tentativa e erro, há poucas alternativas explicativas: ou o organismo já sabe, isto é, a informação está programada nos seus genes – como acontece com o código da dança das abelhas, ou as tarefas estereotipadas das vespas solitárias ao introduzirem um presa no seu ninho escavado no solo, como Baerends descreveu tão notavelmente – ou aprendem muito depressa e de forma muito dirigida, o que requer a intervenção de programas genéticos sobre o desenvolvimento cognitivo.

Será que as crianças já nascem com crenças sobre os objectos e as suas propriedades físicas, ou elas possuem um mecanismo que guia as sua aquisição de conhecimentos sobre os objectos? Em qualquer dos casos os genes estão em acção. A primeira possibilidade implica que nascemos já com algumas noções de aritmética. A segunda possibilidade implica a existência de mecanismos muito específicos que definem períodos sensíveis para o indivíduo aprender um determinado tipo de informação e não qualquer tipo de informação. Na fase sensível, as regiões do cérebro implicadas estão em formação ou estruturação e muito disponíveis para recolher esse tipo de informação. A aprendizagem é guiada por programas genéticos específicos destinados a garantir que o indivíduo adquire aquela informação. Porque desenhou a selecção natural um dispositivo destes para os nossos conhecimentos básicos de física e de aritmética? Isso é algo que não tem ainda resposta. Mas, há hipóteses. Estes conhecimentos podem ser fundamentais para que o indivíduo possa ter um conjunto básico de princípios que o ajudam a obter e estruturar informação que obtém subsequentemente. Ou podem ser conhecimentos essenciais para evitar acidentes em fases precoces da vida.

Em todo o caso, é evidente que não somos à partida uma pedra polida à espera de ser esculpida, ou um quadro de lousa (hoje em dia, de polímeros sintéticos) vazio à espera que os tutores nele escrevam. Cada um de nós, desde muito cedo constroi parte importante da sua própria aprendizagem, se é que não está já presente à nascença. E a propensão para aprender essas coisas é guiada pelos nossos genes.

10 comentários:

Marcela HJ disse...

Achei muito interessantes essas pesquisas...poderia por favor indicar as referências?

Paulo Gama Mota disse...

Wynn, 1992. Nature. 27 de Agosto.
Wynn, 1998. Trends in Cognitive Science. Vol 2 (8).
McCrink & Wynn. 2007. Psychological Science. Vol. 18 (8).

PGM

Vasco disse...

Já tinha lido sobre o assunto:

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u356184.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u351566.shtml

alf disse...

muito interessante. No meu blogue já defendi que a evolução necessariamente terá conduzido à criação de processos de evolução, ou seja, os seres vivos disporão de sistemas que geram evolução de forma muito mais eficiente do a ocorrencia de mutações ou cruzament por acaso

parece-me natural que qualquer processo mais sofisticado de gerar evolução recolha dados do exterior, ou seja, alimenta-se da aprendizagem do ser progenitor.

Eu sei que este tipo de ideias é muito contestado, com base num procedimento muito seguido pelos cientistas, que é o de considerar que o que se não sabe explicar não existe.

Eu não sei explicar como poderia funcionar tal sistema de geração de evolução, mas uma coisa eu sei: o ser vivo que disponha dele tem uma vantagem evolutiva sobre o que a não tem.

Utilizar o conhecimento que um ser adquire pelo menos nos primeiros tempos de vida na sua reprodução é uma vantagem evolutiva tão óbvia que me parece que defender que tal mecanismo não pode existir é que carece de justificação.

(claro que me refiro à transmissão apenas de experiencias extremamente marcantes)

Unknown disse...

Indo um pouco contra-corrente gostaria de chamar a atenção que, apesar da notoriedade deste tipo de investigação (a investigadora principal foi quase catapultada para a fama com os primeiros resultados, por exemplo esta experiência faz hoje parte de todos os livros de texto de Psicologia do Desenvolvimento nos EUA como um facto adquirido e inquestionável) existem outras perspectivas. Não é claro que estes bebés "sabem" que 1+1=2 nestas experiências, se bem que é claro que detectaram a diferença no estímulo, um resultado em si muito interessante porque nos diz algo sobre os mecanismos necessários ao desenvolvimento da aritmética elementar. A conclusão que os bébés nascem a saber matemática e física elementares é no entanto ir longe demais e escolher a explicação mais confortável que acaba por explicar muito pouco ou quase nada.

A ideia de um módulo de aritmética no cérebro, sob controlo de um programa genético é simplesmente demasiado simplista. Dos vários argumentos um é o de estarmos a ignorar processos epigenéticos e o seu papel. Ironicamente os mesmos investigadores que usaram este tipo de resultado para demonstrar que os bebés têm mais capacidades do que se assumia e muito mais cedo, sempre afirmaram que devido o facto de os bebés serem tão novos, não podiam ter aprendido nada de relevante para a tarefa, ignorando o desenvolvimento do bebé até esse momento. Porque de forma também igualmente pouco óbvia, a complexidade da experiência do mundo em bebés desta idade é considerável, e não podemos sequer excluir o que aconteceu durante o tempo de gestação. É com certeza um mundo muito diferente de um adulto, mas nada nestas competências apareceu do nada. Uma crítica muito contundente e lúcida foi feita por exemplo por Mark Blumberg:

Blumberg, M. S. Basic Instinct: The Genesis of Behavior. New York: Thunder’s Mouth Press, 2005.

No entanto esta discussão de inato ou adquirido (uma distinção que talvez se venha a provar inútil) pode ser colocada da forma ortogonal a processos evolutivos. Variação e selecção natural podem ocorrer em processos epigenéticos que por sua vez interagem com mecanismos puramente genéticos (assumindo que existe um nível genético completamente separável do nível celular). Muitos organismos herdam genes de forma clássica mas também informação que apenas se encontra no óvulo, flora bacterial da mãe, componentes do seu sistema imunitário por via materna, um meio ambiente físico normalmente previsível, um meio ambiente social normalmente previsível, etc, etc. Para quê, por exemplo, codificar tudo nos genes, um num programa inato que se desenrola de forma estereotipada (assumindo que tal possa ser possível) quando processos epigenéticos podem fazer uso de várias fontes de "informação" em simultâneo no desenvolvimento do que está subjacente a um comportamento complexo?

Um exemplo paradigmático desta perspectiva mais abrangente é o trabalho de várias décadas de Meredith West e Andrew King. Uma espécie de pássaros que parasita o ninho de outras espécies e cujo acasalamento depende criticamente da capacidade do macho para cantar às fêmeas seria o candidato ideal para estudar comportamentos complexos que são inatos. Ou talvez não ...

The case for developmental ecology. West, King, White. 2003. Animal Behaviour, 66, 617-622.

alf disse...

em relação ao interessante comentário do alfredo, gostaria de chamar a atenção de que o chamado "código genético", que define as caracteristicas físicas do ser, o tal que compõe o descodificado genoma humano, é apenas uma minuscula parte da toralidade da informação genética que possuimos. A restante tem sido apelidada de "lixo" genético, hipótese que me parece demasiado simplista e que não têm em suficiente conta a "inteligencia" da natureza.

Um cavalinho quando nasce sabe logo andar, não é verdade? Mas para isso é preciso saber imenso das propriedades físicas do universo! Muito mais do que saber que o copo cai no fim da mesa!

Claro que não é um saber consciente; mas esse saber já lá está, a única coisa que está em questão é saber até que ponto o consciente consegue aceder a ele.

Paulo Gama Mota disse...

Caro Alfredo,

Obrigado pelo seu interessante comentário. Eu não costumo comentar comentários. Abro uma excepção.

Eu não afirmei que havia uns genes para a aritmética. Disse que havia duas possibilidades para explicar o fenómeno, ambas envolvendo genes. E o interessante é que a questão está em aberto.

Processos epigenéticos são todos os que envolvem comportamento. Naturalmente que a dicotomia inato-adquirido está ultrapassada. Mas a expressão 'processo epigenético' é, em si, um princípio explanatório tão abrangente que acaba por não explicar nada. E. O. Wilson falava de regras epigenéticas no On human nature, referindo-se a programas que conduziam e condicionavam o quê e quando os indivíduos aprendiam. Os mecanismos específicos de que falo no meu post são equivalentes a essa regras epigenéticas.

O exemplo do 'imprinting' em patos serve bem aqui. Os patos têm um programa genético para aprenderem a identificar a mãe. Nas primeiras horas de vida tendem a fixar-se no primeiro objecto móvel com que interagem. Geralmente é a mãe. Mas, pode seu um de nós se incubarmos os ovos e estivermos em contacto com eles nas primeiras horas de vida. O que o programa define é o 'timing' da aprendizagem - os neurónios que vão guardar aquela informação estarão em estruturação na altura e depois já não são alteráveis - e o tipo de estímulo: visual, no caso. Mas, não traz a foto da mãe: essa o animal tem que a obter.
Este é um caso extremo de programação de aprendizagem. Há muitos outros menos extremos. Como o nosso programa para aprendermos a falar. Este fica para um post específico. Os trabalhos de West e King são do género que acabo de referir e chamam a atenção para a importância do estudo dos processos de desenvolvimento de forma a identificarmos as variáveis mais relevantes e os períodos sensíveis da aprendizagem, sendo que os há mais plásticos e mais invariantes.

Haddammann Verão disse...

É extraordinário constatar ao "compreender a Lógica Espacial" que o raciocínio é inerente ou decorrência do(a) próprio(a)estabelecimento (constituição) espacial. Princípios, leis, diretrizes; em conceitos que se versionam promovem a expressão das formas, que nomeamos Natureza. Os seres vivos sao ja uma expressao de raciocinio.

Haddammann Verão disse...

Acabam de alterar a configura;'ao do teclado, esse boicote est[a em tudo que estou fazendo.
Porque escrevo isto ...
A Psicologia da Escravidão

A coisa mais ridícula, estapafúrida, que se pode imaginar é esse negócio de SACRIFÍCIO imposto, aconselhado, pelas igrejas.
Imagine o absurdo:
Quando uma pessoa tem o direito de pegar uma vida como assassina, para DAR a um embuste presunçoso; para aplacar o gosto de sei lá o que? Ou, “agradar” sei lá o que com mortes?
Trazendo isso pra cá, pra hoje:
Como você vai “agradar” um sádico embuste, que requer prejuízo para você, pra enfeitar e gloriar uma estúpida fantasia de soberba?
Quando tiram de você, prejudicando-o pessoalmente , também prejudicam sua cidade, os seus filhos, a sua casa, o seu país.
MEUS CAROS;
Quando um filho nasce, você não pede nada a ele; o trabalho que lhe dá por viver, não faz você exigir sacrifício dele para recompensá-lo, com carinho, assistência, e suporte de todo tipo, como se você fosse um interesseiro, uma espécie de condicionamento de cachorro.

Um filho que faz o que queremos não é nosso filho, é nosso ESCRAVO; é nosso bibelô, é uma caricatura de nosso envaidecimento pessoal. Quando indicamos o que ele pode fazer, nós o educamos com opção; se um dano ocorrer por sua ação não o desgraçamos com desatenção; enquanto vivermos é altruísmo da humanidade, de nossa espécie, assistirmo-nos com princípios de Justiça entre nós; entre você e seu filho, entre os outros.

Haddammann Veron Sinn-Klyss

carolus augustus lusitanus disse...

De tanto quererem perceber os mecanismos disto e daquilo, qualquer dia ainda se esquecem que são seres humanos que habitam o planeta e não ratos/macacos de laboratório...

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...