terça-feira, 21 de dezembro de 2021

DICIONÁRIO DE IDEIAS FEITAS – 1ª PARTE

 Novo texto de Eugénio Lisboa:

 Flaubert, que odiava a estupidez quase tanto quanto odiava a burguesia, sonhou durante largo tempo com a publicação de um sottisier, a que deu o título de DICTIONNAIRE DES IDÉES REÇUES (DICIONÀRIO DE IDEIAS FEITAS), ou seja uma colecção de “clichés”, que seria provavelmente publicada em anexo ao romance BOUVARD ET PÉCUCHET, no qual trabalhou longos anos mas que só viria a ser publicado postumamente, em 1881. Os “clichés” do DICTIONNAIRE só viriam a ser publicados em 1913. Eles seriam a sua almejada vingança contra a imbecilidade, muito embora afirmasse que os “clichés” por si elaborados seriam totalmente objectivos e não acusariam qualquer interferência sua, que insinuasse um comentário entrelinhas. A verdade porém é que há, por todo o lado uma ironia ferina, subjacente, escondida, mas potente.

 No século XX, Jean Dutourd, autor do inesquecível romance AU BON BEURRE (1952), fez também o gostinho ao dedo, publicando uma ferina versão moderna do dicionário de Flaubert. Eu, já por várias vezes, em épocas muito afastadas umas das outras, ensaiei construir a minha colecção de “clichés” em vigor no nosso mundo lusíada. Como Flaubert, procuro não ser eu a falar, mas somente a dar voz ao que por aí se pensa. Terei, porventura, aqui ou ali, inflectido ligeiramente o discurso. A tentação é muito grande. Espero, contudo, ter sido o mais objectivo possível. Resumindo, para evitar confusões: não se trata de opiniões minhas, mas de “clichés” que circulam por todo o lado. 

 Ofereço ao leitor do De Rerum Natura esta nova colecção de ideias feitas. 

 ANTÓNIO LOBO ANTUNES – As crónicas são muito boas, mas os romances são ilegíveis. Acha que Saramago lhe roubou o Prémio Nobel, embora se console com ir ser incluído na famosa Bibliothèque de la Pléiade, bem melhor do que o Nobel. 

 AGUSTINA BESSA LUÍS – Um génio da ficção e do pensamento. Nem Pessoa lhe chega aos calcanhares. Mas teria talvez sido bom que não escrevesse tanto: escrevia mais depressa do que qualquer pessoa conseguia ler. Em relação à Agustina, toda a gente andava atrasada, na leitura dos seus livros. A Sophia bem a avisou. Havia outro problema: não só escrevia muito depressa, como ia atirando as folhas escritas para o chão; o marido, carinhoso e zeloso, ia-as apanhando, mas não necessariamente pela ordem por que ela as tinha escrito. De aí, algumas dificuldades ulteriores de leitura. 

 Às vezes, escrevia coisas das quais se não podia dizer que eram verdadeiras ou falsas, mas nisso é que está o seu encanto e, mesmo, o seu génio. 

 BIBLIOTHÈQUE DE LA PLÉIADE – Para efeitos de imortalidade, convém ser lá publicado. Garante-a mais do que o Prémio Nobel. O Lobo Antunes já tem a promessa de ir para lá viver. O Saramago ainda não. Mas não há nada que a Pilar não consiga. 

 CATARINA MARTINS É a simpática coordenadora do Bloco de Esquerda. Quer sempre a Lua, mas nunca pergunta qual é o preço. Gosta de chatear o Costa, embora o faça sempre com um ar de lhe não querer mal. 

 COMENTADORES POLÍTICOS – Dizem, por palavras suas, aquilo que tínhamos acabado de ouvir aos políticos, dito por palavras deles. 

 EDUARDO LOURENÇO – O maior pensador português do século XX. Ensinou-nos o que é ser português, o que é ser Fernando Pessoa e o que é ter saudades. Antes dele, não se sabia.

 EDUARDO PRADO COELHO – Era muito amigo do Eduardo Lourenço e elogiavam-se muito um ao outro e o outro ao um. Dizia-se que tinha lido muitos livros, embora só pela rama, mas isso intimidava os potenciais críticos, que tinham muito medo de ser arrasados por uma frase que o Eduardo tivesse encontrado no último livro acabado de chegar de Paris. Sobretudo conhecido por mudar constantemente de opinião, de partido e de mulher, o que demonstrava a espantosa flexibilidade intelectual e temperamental deste “clerc”.Tinha tendência a desconfiar muito dos poetas com uma grande oficina poética, por ser evidente que, para se ser um grande compositor de música, convém não saber rigorosamente nada de composição. Gostava de tornar bem patente que nada lhe era alheio, desde a “lingerie” até à Física Teórica (atribui-se-lhe a criação de uma nova grandeza eléctrica: o kW/hora).

 ENSINO PRIVADO – É muito bom. Deve ser financiado pelo Estado, para poder ser ainda melhor. Merece ser classificado como património mundial.

 ENSINO PÚBLICO – Não tem hipóteses, mas serve para quem é pelintra. A Iniciativa Liberal gostaria que o dinheiro que o Estado esbanja com o Ensino Público fosse mais bem gasto no Privado.

 ESCRITA OBSCURA – Confere muito prestígio a quem assim escreve, ninguém se atreve a escrutiná-la, para não parecer pouco inteligente, obtém prémios aparatosos e é muito festejada. Ninguém a lê, mas isso é um pormenor. Como praticamente não se vende, a não ser que tenha uma boa máquina de promoção, encontra-se muito rapidamente nos tabuleiros de rua, a preços muito acessíveis. 

 EUGÉNIO LISBOA – Está sempre contra. Não admira quase nunca o que a maioria admira. Dá cabo da autoestima dos portugueses. E, afinal, é português ou moçambicano? Como é que, sendo engenheiro, se dedicou à literatura? Por que é que não se ficou pelas electricidades e pelos petróleos? 

 GABRIELA LLANSOL – Não se percebe nada do que escreve, mas deve sempre dizer-se que é muito profunda. O saudoso Eduardo Prado Coelho classificá-la-ia como “deslumbrante”.

 GASTÃO CRUZ – Anda, há cinquenta anos a proclamar o evangelho da poesia intransitiva, isto é, o poema não “diz” nem quer “dizer” nada: é só linguagem. Partindo desta interessante premissa, a poesia de Gastão até faz algum sentido, embora ele o rejeite. É muito teimoso. É pouco visível, mas é muito influente. Cuidado! 

 GONÇALO M. TAVARES – Diz coisas muito originais, mas muito difíceis de decifrar. Deve ser muito profundo e muito bom, mas não se consegue prová-lo. Não deve ter de esperar muito pelo Nobel, o que vai deixar excessivamente nervoso o Lobo Antunes, se ainda por cá andar.

 GOUVEIA E MELO – Grande espírito de organizador. Presidiu admiravelmente à vacinação nacional, sem fazer favores a ninguém. Poderá muito bem vir a ser o nosso próximo Presidente da República, mas deve acautelar-se com Paulo Portas, que é muito ambicioso e muito dado a rasteiras. 

 HERBERTO HÉLDER – O nosso maior poeta, depois de Camões e Pessoa. Não vai aparecer nenhum deste tamanho no século XXI. E, depois, há de ver-se. 

 JOÃO RENDEIRO – Malandro mas esperto. Baratinou a justiça portuguesa. Não há nada como não ter vergonha. Vivia numa quinta de “sheik”, em Cascais, onde arrotava postas de arte, de que nada percebia, mas lhe davam estatuto. A entrada na aristocracia, quando se vem de baixo, tem o seu preço. Além disso, em caso de fuga, vendem-se as pratas da casa. 

 JORGE AMADO – Começou por ser comunista mas depois meteu o comunismo na gaveta e virou pícaro, com estórias cheias de malandragem e baldes de sexo. Aos amigos a quem mostrava os manuscritos, pedia-lhes que dissessem com franqueza se achavam que o livro tinha pouco sexo, porque, se assim fosse, ele botava mais. O Nobel, dado ao Saramago, deveria ter sido dividido com ele, segundo combinação feita, mas infelizmente, quando Saramago foi contemplado, o Jorge já estava morto e enterrado. De modo que, embora arrasado de tristeza, o autor do MEMORIAL DO CONVENTO teve de ficar com o dinheiro todo. Bom contador de estórias, o Jorge, embora um bocado coxo em gramática, o que o fazia confundir uma preposição com um advérbio. Coisa pouca. 

 JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS – Está há quinhentos anos na RTP, onde é conhecido por piscar o olho aos espectadores, no final dos noticiários. A certa altura, lembrou-se que nada o impedia de ganhar mais dinheiro do que o muito que já ganhava na televisão, se escrevesse romances enormes, a imitar aquela literatura de aeroporto, mas em pior. E assim foi. Tem um grande sucesso de vendas, ao qual atribui a inveja dos escritores portugueses que vendem menos do que ele e que são quase todos. Escrevendo, mesmo quando vai à retrete, toma banho e dorme, consegue o prodígio de escrever um avantajado volume por ano. Depois de ter conseguido o êxito de vendas, começou a ficar justamente chateado por os críticos (palavra que pronuncia com acento escarninho) o ignorarem. Inveja, está mais que visto. Quase todas as universidades o ignoram. Mas foi a uma dizer que aquilo de que as pessoas gostam é de ler uma história bem contada, como as que ele conta. Aconselha-se a reservar o seu exemplar com antecedência, porque aquilo vende-se como biscoitos. 

 (Este modesto dicionário de ideias feitas continua, neste mesmo local, num dos próximos dias, caso o seu autor não tenha sido assassinado. Já o grande George Bernard Shaw dizia que o assassinato é a forma extrema da censura.)

Eugénio Lisboa

1 comentário:

João Boavida disse...

Eugénio Lisboa é refrescante porque diz o que muitos pensam mas não dizem, ou porque não têm onde, ou porque não têm voz, ou porque pensar que não vale a pena.
Além disso é corajoso, porque não se importa de ir contra as dominâncias intelectuais que abundam nas televisões e em certos jornais que tais.
Tem informação literária para dar e vender, o que é muito raro e deve causar muitas invejas.´
Nem sempre terá razão a apreciar alguns, mas, como isto também é uma opinião, o que resulta de positivo é imenso e só espero que continue.

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