terça-feira, 12 de maio de 2020

SÓ O REGISTO ESCRITO DA HISTÓRIA RESISTE ÀS GARRAS DEVORADORAS DO TEMPO



Enviada pelo autor, publico uma versão alargada da última crónica de Guilherme Valente no Sol (onde ele tem uma coluna em que tem falado, com grande conhecimento de causa, da China e dos chineses):


"Bebemos a água, mas não nos esquecemos de quem abriu o poço"

A China tem os arquivos historiográficos mais vastos do mundo, os mais antigos e rigorosos, recorrentemente verificados. Registavam o passado para influírem no futuro, para encontrarem a “propensão”, na concepção chinesa da História o “instante” certo para intervir na ordem humana sem perturbar a ordem cósmica do mundo.

Sem se perceber que a História está sempre presente na China, sem a inteligência desse outro sentido do tempo que marca a realidade e o espírito chinês, não se compreenderá nada da civilização, nada da política chinesa hoje.

O passado na China é um passado de palavras e não de monumentos... porque nenhum resiste às garras devoradoras do tempo (por isso construíram em madeira, para reconstruírem sempre, as excepções foram os túmulos e as fortificações). “O passado que continua surpreendentemente a animar a vida chinesa é um passado que habita os homens, é ao mesmo tempo espiritualmente activo e fisicamente invisível.” (F. W. Mote, A Millennium of Chinese Urban History.)

Em vários momentos da História em que para a lógica ocidental seria «natural» a China retomar a administração do território de Macau isso não aconteceu. Aconteceria muito mais tarde em circunstâncias de cujo significado a generalidade dos Portugueses não se terá apercebido - em Novembro de 1999, um ano depois da transição da Administração de Hong Kong.

O último desses momentos, digamos, normais - e eu estava lá - foi no tempo da Revolução Cultural quando na sequência de uma situação delicada para as duas comunidades a segurança na cidade e a protecção de pessoas e bens foram assumidos num breve período pelas associações cívicas chinesas cujos dirigentes então também ameaçados eram amigos e aliados dos portugueses no governo de Macau. E ninguém foi molestado, como jamais esquecerei!

O momento anterior foi quando o Exército de Libertação Popular, comandado por Lin Piao (o general que nunca perdeu uma batalha), depois de expulsar o exército de Chiang Kai-Chek do Sul da China, parou às portas de Macau. Fala-se mesmo de uma mensagem de Mao a ordenar que não entrasse na cidade. Não chegara ainda a “propensão”, o instante na concepção chinesa da História, para a intervenção humana na ordem do mundo sem perturbar a ordem do cosmos.

Curiosamente, anos antes, na Segunda Guerra Mundial, também o exército japonês que tinha tomado Hong Kong cercara Macau mas não entraria na cidade, só aparentemente protegida pela neutralidade de Portugal. Um período terrível em que se manifestou uma solidariedade exemplar dos portugueses com os chineses, um milhão de refugiados!* História que continua a ser ignorada em Portugal mas que a China não esquece.

Na diversidade de peripécias históricas vivida por portugueses e chineses nesses longos 500 anos, a dimensão de poder dos dois Estados, o jogo do interesse mútuo, regional ou imperial, os modos de ser dos dois povos,** foram factores que determinaram a continuidade, aparentemente milagrosa, da experiência singular que foi e continua a ser Macau. Ligada à relação do povo chinês com a História e o tempo, como acima sugeri, e a dois conceitos-chave do pensamento chinês: o entendimento e a harmonia.

Em Novembro de 1793, uma impressionante embaixada inglesa foi enviada à corte de Quianlong com o objectivo de propor o intercâmbio do “maior império do Ocidente com o maior império do Oriente” (palavras do embaixador)***. Os britânicos preparavam-se para seguir para Cantão rumo ao desejado encontro, que o Imperador fora evitando, na residência de verão no sul da China. Entretanto desenrolara-se através do correio imperial um diálogo entre os dois pontos extremos da China. De Pequim, Qianlong dirigira no dia 21 de Outubro um edito ao governador militar de Cantão, bem como a todos os governadores das províncias costeiras: informava-os dos «pedidos inconvenientes» dos bárbaros para obterem uma pequena ilha onde pudessem residir permanentemente», ou no Zhoushan, ou perto de Cantão. Guo Shixun respondeu no dia 1 de Novembro e apenas doze dias mais tarde Qianlong sublinhava a tinta vermelha a sua resposta.

Eis o diálogo que selaria o malogro da embaixada de Macartney, a última oportunidade que a China teria para se abrir ao Ocidente antes da tragédia da decadência, da invasão das potências ocidentais e do Japão.

Guo Shixun: “Os ingleses, quando chegam a Macau, têm de arrendar as suas habitações aos portugueses. A sua situação é a de convidados perante um anfitrião. Foi por isso que o enviado [britânico] pediu lhe fosse concedido um lugar onde pudessem colocar as suas mercadorias, que seria o equivalente ao que Macau é para os portugueses”.

Qianlong: “Absolutamente impossível”.

Guo Shixun: “A instalação dos portugueses remonta aos Ming, há mais de duzentos anos. Esses bárbaros acabaram por amar aquelas terras e mergulharam na influência benéfica do imperador. Não se diferenciam do resto do Império.“

Qianlong: “Precisamente”

Guo Shixun: “É necessário, de acordo com as vossas santas instruções, que a defesa costeira seja rigorosa. Os bárbaros ingleses não deverão poder instalar-se na menor parcela do território do Império.”

Qianlong: “Execução imediata. Isso deve ser inteiramente contrariado”.

Aconteceu que esses "bárbaros" viriam a instalar-se na China pela força e infligiriam a violência e humilhação mais ignóbeis a um povo e uma civilização com 4 000 anos de História, que fora a mais brilhante do Planeta. Crueldade que a China todavia nunca retaliaria, mas nunca esquecerá.

Na véspera do meu regresso a Portugal, num final de tarde tranquilo, visitou-me na pequena sala que eu ocupava no palácio do Governo de Santa Sancha, obra admirável de um grande arquitecto português de Macau (em que tudo está hoje como o último Governador deixou) um jovem engenheiro chinês, doutorado numa das grandes universidades da América, filho do mais respeitado representante da comunidade chinesa que era deputado na Assembleia Legislativa da cidade e membro da...Assembleia Nacional Popular da RPC:

“Sabe, se o tempo [a “propensão”... ] de resolver a situação de Hong Kong não tivesse chegado, Portugal continuaria a administrar Macau.”

Mas os portugueses continuaram e continuam a ir viver para essa cidade mítica. Só anos depois percebi a mensagem na despedida que aquele Amigo chinês me levara. Um entendimento e um destino que a História preserva das garras devoradoras do tempo.

Guilherme Valente

*José Rodrigues do Santos, A Amante do Governador, Gradiva, 2018.
**Benjamim Videira Pires (S.J.), Os Extremos Conciliam-se, Instituto Cultural de Macau.
*** Alain Peyrefitte, O Império Imóvel ou o Choque dos Mundos, Gradiva, 1995.

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