sexta-feira, 20 de novembro de 2015

PREFÁCIO A “DIÁLOGOS COM CIÊNCIA” DE ANTÓNIO PIEDADE

Meu prefácio ao último livro de António Piedade, que acaba de sair em edição de autor (pedidos ao próprio):



António Piedade, bioquímico e divulgador de ciência autor de Íris Científica (Mar da Palavra, 2005) e de Caminhos de Ciência (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011) para além de algumas edições de autor que são tesouros da divulgação pouco conhecidos que o leitor será feliz se encontrar (como o livro infantil Silêncio prodigioso, 2012, e Íris Científica 2, 2014), brinda-nos com mais um volume, Diálogos com Ciência. Tem-se distinguido pelas suas crónicas dominicais no Diário de Coimbra, pela coordenação do projecto “Ciência na Imprensa Regional”, promovido pela Ciência Viva – Agência Nacional para a promoção da Ciência e da Tecnologia e pelo apoio à dinamização de actividades de divulgação de ciência no Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra.
Há em António Piedade uma perseverança notável desde o seu primeiro livro saído há dez anos. O seu objecto de escrita continua a ser a ciência, e não apenas a ciência bioquímica que ele domina mas também outras ciências como a matemática, a astronomia, a física e a química, e o estilo continua a ser a junção de pequenas peças numa prosa de laivos poéticos, que remete quase sempre para conversas do quotidiano. O tamanho dos seus textos tem a ver com o facto de eles terem vindo a lume na imprensa, competindo no espaço com as notícias e com a opinião. Por sua vez, a sua oficina literária bebe decerto inspiração em Rómulo de Carvalho, o professor de Física e Química que praticou tanto a pedagogia, a história e a divulgação como a poesia e o teatro (disfarçado sob o nome de António Gedeão). Num país onde a cultura científica ainda escasseia e onde nem sempre são devidamente premiados os esforços para a espalhar, António Piedade tem vindo, ao longo dos anos, a afirmar-se como uma voz tão distinta como segura, tanto nos livros como na imprensa como ainda na Web (destaco a sua participação de há anos no blogue de ciência e cultura científica De Rerum Natura). A sua persistência na comunicação de ciência ao grande público, adulto ou infanto-juvenil, por uma variedade de meios, merece encómios.

O diálogo é um género literário com grande tradição na história da ciência. Foi sob essa forma que o físico italiano Galileu Galilei escreveu diversos dos livros que trouxeram, no século XVII, a ciência moderna: nos Diálogos sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo (1632) Salviati, Simplício e Sagredo discutem a mecânica e os mesmos três personagens reaparecem na sua obra final Discursos e Demonstrações Matemáticas sobre Duas Novas Ciências (1638). Os dois livros são escritos em italiano para que a nova ciência pudesse extravasar dos estritos círculos dos letrados. No século anterior, mais precisamente em 1563, já o português Garcia da Orta tinha tentado romper o confinamento da ciência aos sábios ao escrever, na forma de diálogo e em bom português, os seus Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia. Os personagens que trocam opiniões são o próprio Orta e o Doutor Ruano, um colega fictício que o visita. Tanto os livros de Galileu como o de Orta foram pioneiras na história das ciências que versam.

Na moderna divulgação de ciência, o diálogo tem ainda a propriedade de seduzir pela fluência das perguntas e respostas. O segredo do autor de divulgação será sempre o de colocar na boca dos seus personagens as perguntas e as respostas que o leitor presumivelmente terá a respeito do mundo, em particular das partes do mundo que mais o encantam. As respostas da ciência têm de ser interiorizadas pelos seres humanos que formulam as questões. E, para isso, nada funciona melhor do que a sua ligação dessas respostas à vida dos personagens.

Piedade começa por um diálogo sobre um aniversário entre uma menina de doze anos e o seu avô, no qual um jogo de números serve para mostrar a intemporalidade das proposições matemáticas. No texto seguinte, uma mãe que, inquirida pela filha sobre o aparecimento dos peixinhos num lago, lhe explica a semelhança entre a sua história pessoal e a dos peixes que está a ver: “Na alvorada do teu quarto dia chegaste ao interior do meu útero, e, na partitura do teu desenvolvimento, já estavas no estado de blastocisto. Ou seja, tu eras um conjunto de mais de 64 células.”. No texto seguinte, assistimos à conversa entre Joana e o seu irmão mais velho sobre a sucessão das estações do ano na Terra... ou em Marte (“Há Primavera em Marte?”). Depois, é outra menina que resolve, no Dia Mundial da Música, ir escutar os sons da Natureza. No texto seguinte, “Cores do Outono”, não há diálogo mas o leitor pode deliciar-se com uma descrição poético-científica da queda das folhas. Sente-se a presença de Gedeão, o autor de “Lágrima de Preta” em “O que tem a tua lágrima?”, um diálogo entre Rui e o seu tio. Depois, Patrícia interroga-se sobre os elementos químicos dentro de si: ela tem 33 quilogramas de moléculas de água, combinações de hidrogénio e oxigénio. A invocação de Gedeão volta em “O tio Antão”, uma conversa entre tio e sobrinho, no qual o primeiro transmite a ideia de movimento, por exemplo de um berlinde. Em “Um relógio que flui dentro de ti!”, Henrique observa ao microscópio uma gota de sangue, motivado por um artigo da Nature. Os dois textos que se seguem referem-se aos prémios Nobel de 2010 e 2011, apresentados sob a forma de metáforas ferroviárias. Na sequência surge Helena com uma flor na mão, um “bem-me-quer”, que é surpreendida por um amigo. No texto seguinte aparece o único personagem de fantasia, Etolas, o “arquitecto de minérios”. Na continuação dá-se um regresso à matemática, com um “Diálogo de zeros”, literalmente uma conversa entre zeros, e os “Doze Anos”, onde Ana conta pelos dedos. Para terminar, o avô Jaime e os seus dois netos gémeos celebram os 60 anos ao mesmo tempo do avô e da estrutura do ADN, já que Jaime nasceu no ano em que Watson e Crick identificaram a famosa dupla hélice.

Eis um passeio muito diversificado pela ciência: aniversários, peixes, estações do ano, sons, folhas, lágrimas, água, berlindes, sangue, comboios, números e código genético. Convido os leitores, jovens ou menos jovens, a lerem estas mini-histórias. Ficarão decerto seduzidos pela ciência que está omnipresente no livro, reflectindo a ciência que está por todo o lado, tanto à nossa volta como dentro de nós. Somos parte do mundo e somos também, tanto quanto sabemos, a única parte do mundo que se encanta e se interroga sobre ele. O encanto e o questionamento vão em paralelo, como bem mostra António Piedade.

(Nota do António Piedade: Quem estiver interessado num exemplar envie um email para apiedade@ci.uc.pt)

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