No passado sábado participei com o autor, actor e realizador Gonçalo Waddington sobre o tempo. Eis aqui um resumo de algumas das coisas que disse:
As leis físicas escrevem-se, na maior parte, na forma de
equações matemáticas, de igualdades. Mas algumas escrevem-se na forma de
inequações, de desigualdades. A desigualdade mais importante da Física é, sem
dúvida, a que está expressa pela Segunda Lei da Termodinâmica, obtida a meio do
século XIX por físicos como Clausius e Kelvin, que afirma o não-decréscimo de
uma grandeza, a entropia, num certo tipo de sistemas, os sistemas macroscópicos
isolados, existe uma grandeza física (quer dizer mensurável), que aumenta nos
processos irreversíveis e se mantém nos processos reversíveis. A entropia
funciona, portanto, como uma “seta do tempo”. Quando o tempo não pode voltar
para trás, dizemos que a entropia aumentou. Nos casos ideais em que o tempo não
avança, quer dizer parece não avançar, a entropia mantém-se. A entropia é a
grandeza física que nos permite distinguir passado do futuro. Trata-se de um
neologismo introduzido no século XIX, usando uma raiz grega e construído à
semelhança da palavra energia. Entropia significa literalmente “capacidade de
mudança”.
A nós humanos parece-nos extremamente simples a distinção
entre passado e futuro: lembramo-nos do passado mas não nos lembramos do
futuro, fizemos coisas no passado que já não podemos emendar no presente,
nascemos e acabaremos por morrer. Tal como nós, o mundo onde vivemos, exibe bem
essa diferença. Todo o Universo teve um início no Big Bang, há 13,8 mil milhões
de anos, e, embora em larga escala pareça ter um grande futuro à sua frente,
tem um fim nos buracos negros. A vida, que não passa afinal de uma sucessão de
fenómenos físico-químicos, teve um início, não se sabe ainda bem como e onde,
há pelo menos 3,6 mil milhões de anos, cresceu e multiplicou-se e o seu fim não
está à vista, embora naturalmente cada indivíduo pereça e cada espécie possa eventualmente
perecer. Setas do tempo estão presentes tanto no grande Universo como na vida,
que, pelo menos por enquanto, apenas conhecemos no nosso planeta.
Não é, porém, fácil aplicar a Segunda Lei da Termodinâmica
ao cosmos, o “sistema de todos os sistemas”, e aos sistemas vivos, o primeiro
porque não pode ser considerado isolado (isolado de quê?) e o segundo porque os seres vivos, para o
serem, não podem estar isolados, têm de estar sujeitos a um fluxo de energia
vinda do exterior.
De qualquer modo, para sistemas físico-químicos mais
comezinhos, como um gás, o problema da origem da seta do tempo, já se coloca.
Assistimos à passagem do tempo, mas ainda não percebemos bem do ponto de vista
físico-matemático de onde vem a diferença entre o passsado e o futuro. A Segunda
Lei da Termodinâmica é empírica (em todos os casos já vistos, um gás que seja
aprisionado em metade de um recipiente ocupará todo o recipiente se se efectuar
uma abertura no tabique), mas a Física Estatística fornece-lhe iluminação, ao
dizer que num processo irreversível aumenta a falta de informação (a falta de
informação sobre a localização das partículas de gás aumenta necessariamente se
for maior o espaço onde elas se podem mover). Medir a entropia é de algum modo
medir a informação, o que se consegue usando a noção de probabilidade: há uma
fórmula para a entropia com base na chamada teoria da informação, a fórmula de
Shannon, que a exprime com base apenas em probabilidades. Essa iluminação não basta porque subsiste o problema de
explicar como é que partículas, como as de um gás, que seguem cada uma
trajectórias reversíveis determinadas pela Física Clássica (onde a diferença
entre passado e futuro não existe uma vez que a Segunda Lei de Newton é invariante para a inversão no
tempo), acabam no seu conjunto por protagonizar fenómenos irreversíveis no
tempo. O tempo da mudança, em oposição ao tempo da repetição medido
trivialmente pelos relógios, parece surgir como uma propriedade emergente, isto
é, diz respeito a um conjunto de partículas e não a uma só partícula
Poder-se-á pensar que a mecânica quântica, que descreve o
mundo microscópico, poderia resolver o problema. Mas não resolve, porque a equação
da dinâmica quântica – a equação de Schroedinger dependente do tempo – é, tal
como na Segunda Lei de Newton, perfeitamente reversível no tempo. Apesar de as
probabilidades serem necessárias para interpretar fisicamente o estado do
sistema, essas probabilidades não são probabilidades que na Física Estatística,
devidas à complexidade de um sistema macroscópico, mas são, ou pelo menos
parecem ser, fundamentais. A Física Quântica em certo sentido já é estatística,
mas pode-se formular uma Física Estatística Quântica, colocando probabilidades
“por cima” de probabilidades. Isto é, numa linguagem mais física, em Física Estatística
Quântica considera-se um “estado de mistura”, no qual
incorporamos o nosso desconhecimento termodinâmico, mas cada um dos estados
misturados já tem incorporado um desconhecimento quântico (“Deus joga aos
dados”). De qualquer modo, há uma irreversibilidade intrínseca que já está
presente nos postulados na mecânica quântica: quando um observador mede uma certa
grandeza observável, dá-se uma alteração radical no estado do sistema, que se
chama colapso da função de onda. Há um antes e um depois da medida, mas poderemos sempre dizer que houve um certo tipo de intervenção exterior e não foi
um acto espontâneo do sistema. A moderna teoria da “decoerência” parece indicar
que este colapso da função de onda é um caso particular da Segunda lei da
Termodinâmica e não se está a bem a ver como é que um caso particular pode ser uma
explicação geral.
Várias têm sido as teorias para modificar quer a Mecânica
Clássica quer a Mecânica Quântica para fazer aparecer a Segunda Lei da
Termodinâmica de uma maneira mais natural a partir de equações fundamentais.
Mas elas não têm sido tão bem sucedidas como os seus autores pretendiam. Uma
tentativa particular foi a do Nobel da Química Ilya Prigogine, que tentou
modificar a equação de Schroedinger dependente do tempo de modo a fazer
aparecer a irreversibilidade. Não se pode dizer que a sua solução tenha
alcançado consenso na comunidade científica. Sobre o seu pensamento, eivado de
filosofia, vale a pena ler “A Nova Aliança”, um livro escrito a meias com a
filósofa e historiadora de ciência Isabelle Stengers, que foi um dos primeiros
volumes da colecção “Ciência Aberta” da Gradiva.
Mais modernamente, há quem tente relacionar as setas de
tempo cosmológica (o tempo cósmico) e biológica (o tempo da evolução) com a
seta do tempo da Segunda Lei da Termodinâmica. Por exemplo, e entre outras
tentativas, generaliza-se a termodinâmica para o caso de sistemas
gravitacionais (há uma entropia dos buracos negros e, portanto, também dos
buracos brancos) e procuram-se leis para sistemas abertos e dissipativos, que
possam dar conta de diminuição de entropia.
O tempo é, portanto, um problema difícil. Continua a
desafiar a imaginação dos cientistas. Foi talvez ao pensar na dificuldade do
problema da seta do tempo, que Albert Einstein escreveu um dia à viúva do seu
amigo Michele Besso, falecido há pouco, que o “tempo é uma ilusão”. O tempo da
mudança não é uma ilusão no sentido em que vemos constantes mudanças no nosso
dia a dia e nós próprios somos objectos mutáveis. Razão tinha Luís de Camões
quando escreveu num seu soneto:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”
Nestes versos retrata-se uma outra seta do tempo, a seta do tempo do indivíduo (o tempo psicológico, o tempo percepcionado pela consciência), que está relacionado com o tempo da sociedade (o tempo sociológico, o tempo da história humana). Os tempos percepcionados são subjectivos, ao contrário do tempo físico, medido pelos relógios e, no caso de haver mudança, pela variação de entropia. Estes tempos psicológico e sociológico são aqueles que a arte, neste caso a literatura, descreve bem melhor do que a ciência. É muito claro hoje que nem tudo pode ser visto pelo prisma da ciência. Mas, usando o prisma da ciência, muito ainda pode ser visto.
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