terça-feira, 3 de novembro de 2015

TODO O MUNDO É COMPOSTO DE MUDANÇA


No passado sábado participei com o autor, actor e realizador Gonçalo Waddington sobre o tempo. Eis aqui um resumo de algumas das coisas que disse:

As leis físicas escrevem-se, na maior parte, na forma de equações matemáticas, de igualdades. Mas algumas escrevem-se na forma de inequações, de desigualdades. A desigualdade mais importante da Física é, sem dúvida, a que está expressa pela Segunda Lei da Termodinâmica, obtida a meio do século XIX por físicos como Clausius e Kelvin, que afirma o não-decréscimo de uma grandeza, a entropia, num certo tipo de sistemas, os sistemas macroscópicos isolados, existe uma grandeza física (quer dizer mensurável), que aumenta nos processos irreversíveis e se mantém nos processos reversíveis. A entropia funciona, portanto, como uma “seta do tempo”. Quando o tempo não pode voltar para trás, dizemos que a entropia aumentou. Nos casos ideais em que o tempo não avança, quer dizer parece não avançar, a entropia mantém-se. A entropia é a grandeza física que nos permite distinguir passado do futuro. Trata-se de um neologismo introduzido no século XIX, usando uma raiz grega e construído à semelhança da palavra energia. Entropia significa literalmente “capacidade de mudança”.

A nós humanos parece-nos extremamente simples a distinção entre passado e futuro: lembramo-nos do passado mas não nos lembramos do futuro, fizemos coisas no passado que já não podemos emendar no presente, nascemos e acabaremos por morrer. Tal como nós, o mundo onde vivemos, exibe bem essa diferença. Todo o Universo teve um início no Big Bang, há 13,8 mil milhões de anos, e, embora em larga escala pareça ter um grande futuro à sua frente, tem um fim nos buracos negros. A vida, que não passa afinal de uma sucessão de fenómenos físico-químicos, teve um início, não se sabe ainda bem como e onde, há pelo menos 3,6 mil milhões de anos, cresceu e multiplicou-se e o seu fim não está à vista, embora naturalmente cada indivíduo pereça e cada espécie possa eventualmente perecer. Setas do tempo estão presentes tanto no grande Universo como na vida, que, pelo menos por enquanto, apenas conhecemos no nosso planeta.

Não é, porém, fácil aplicar a Segunda Lei da Termodinâmica ao cosmos, o “sistema de todos os sistemas”, e aos sistemas vivos, o primeiro porque não pode ser considerado isolado (isolado de quê?)  e o segundo porque os seres vivos, para o serem, não podem estar isolados, têm de estar sujeitos a um fluxo de energia vinda do exterior.

De qualquer modo, para sistemas físico-químicos mais comezinhos, como um gás, o problema da origem da seta do tempo, já se coloca. Assistimos à passagem do tempo, mas ainda não percebemos bem do ponto de vista físico-matemático de onde vem a diferença entre o passsado e o futuro. A Segunda Lei da Termodinâmica é empírica (em todos os casos já vistos, um gás que seja aprisionado em metade de um recipiente ocupará todo o recipiente se se efectuar uma abertura no tabique), mas a Física Estatística fornece-lhe iluminação, ao dizer que num processo irreversível aumenta a falta de informação (a falta de informação sobre a localização das partículas de gás aumenta necessariamente se for maior o espaço onde elas se podem mover). Medir a entropia é de algum modo medir a informação, o que se consegue usando a noção de probabilidade: há uma fórmula para a entropia com base na chamada teoria da informação, a fórmula de Shannon, que a exprime com base apenas em probabilidades.  Essa iluminação  não basta porque subsiste o problema de explicar como é que partículas, como as de um gás, que seguem cada uma trajectórias reversíveis determinadas pela Física Clássica (onde a diferença entre passado e futuro não existe uma vez que a Segunda Lei  de Newton é invariante para a inversão no tempo), acabam no seu conjunto por protagonizar fenómenos irreversíveis no tempo. O tempo da mudança, em oposição ao tempo da repetição medido trivialmente pelos relógios, parece surgir como uma propriedade emergente, isto é, diz respeito a um conjunto de partículas e não a uma só partícula

Poder-se-á pensar que a mecânica quântica, que descreve o mundo microscópico, poderia resolver o problema. Mas não resolve, porque a equação da dinâmica quântica – a equação de Schroedinger dependente do tempo – é, tal como na Segunda Lei de Newton, perfeitamente reversível no tempo. Apesar de as probabilidades serem necessárias para interpretar fisicamente o estado do sistema, essas probabilidades não são probabilidades que na Física Estatística, devidas à complexidade de um sistema macroscópico, mas são, ou pelo menos parecem ser, fundamentais. A Física Quântica em certo sentido já é estatística, mas pode-se formular uma Física Estatística Quântica, colocando probabilidades “por cima” de probabilidades. Isto é, numa linguagem mais física, em Física Estatística Quântica considera-se um “estado de mistura”, no qual incorporamos o nosso desconhecimento termodinâmico, mas cada um dos estados misturados já tem incorporado um desconhecimento quântico (“Deus joga aos dados”). De qualquer modo, há uma irreversibilidade intrínseca que já está presente nos postulados na mecânica quântica: quando um observador mede uma certa grandeza observável, dá-se uma alteração radical no estado do sistema, que se chama colapso da função de onda. Há um antes e um depois da medida, mas poderemos sempre dizer que houve um certo tipo de intervenção exterior e não foi um acto espontâneo do sistema. A moderna teoria da “decoerência” parece indicar que este colapso da função de onda é um caso particular da Segunda lei da Termodinâmica e não se está a bem a ver como é que um caso particular pode ser uma explicação geral.

Várias têm sido as teorias para modificar quer a Mecânica Clássica quer a Mecânica Quântica para fazer aparecer a Segunda Lei da Termodinâmica de uma maneira mais natural a partir de equações fundamentais. Mas elas não têm sido tão bem sucedidas como os seus autores pretendiam. Uma tentativa particular foi a do Nobel da Química Ilya Prigogine, que tentou modificar a equação de Schroedinger dependente do tempo de modo a fazer aparecer a irreversibilidade. Não se pode dizer que a sua solução tenha alcançado consenso na comunidade científica. Sobre o seu pensamento, eivado de filosofia, vale a pena ler “A Nova Aliança”, um livro escrito a meias com a filósofa e historiadora de ciência Isabelle Stengers, que foi um dos primeiros volumes da colecção “Ciência Aberta” da Gradiva.

Mais modernamente, há quem tente relacionar as setas de tempo cosmológica (o tempo cósmico) e biológica (o tempo da evolução) com a seta do tempo da Segunda Lei da Termodinâmica. Por exemplo, e entre outras tentativas, generaliza-se a termodinâmica para o caso de sistemas gravitacionais (há uma entropia dos buracos negros e, portanto, também dos buracos brancos) e procuram-se leis para sistemas abertos e dissipativos, que possam dar conta de diminuição de entropia.

O tempo é, portanto, um problema difícil. Continua a desafiar a imaginação dos cientistas. Foi talvez ao pensar na dificuldade do problema da seta do tempo, que Albert Einstein escreveu um dia à viúva do seu amigo Michele Besso, falecido há pouco, que o “tempo é uma ilusão”. O tempo da mudança não é uma ilusão no sentido em que vemos constantes mudanças no nosso dia a dia e nós próprios somos objectos mutáveis. Razão tinha Luís de Camões quando escreveu num seu soneto:

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”
 
Nestes versos retrata-se uma outra seta do tempo, a seta do tempo do indivíduo (o tempo psicológico, o tempo percepcionado pela consciência), que está relacionado com o tempo da sociedade (o tempo sociológico, o tempo da história humana). Os tempos percepcionados são subjectivos, ao contrário do tempo físico, medido pelos relógios e, no caso de haver mudança, pela variação de entropia. Estes tempos psicológico e sociológico são aqueles que a arte, neste caso a literatura, descreve bem melhor do que a ciência. É muito claro hoje que nem tudo pode ser visto pelo prisma da ciência. Mas, usando o prisma da ciência, muito ainda pode ser visto.

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