Meu prefácio ao último livro de António Piedade, que acaba de sair em edição de autor (pedidos ao próprio):
António Piedade, bioquímico e
divulgador de ciência autor de Íris
Científica (Mar da Palavra, 2005) e de Caminhos
de Ciência (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011) para além de algumas
edições de autor que são tesouros da divulgação pouco conhecidos que o leitor
será feliz se encontrar (como o livro infantil Silêncio prodigioso, 2012, e Íris
Científica 2, 2014), brinda-nos com mais um volume, Diálogos com Ciência. Tem-se distinguido pelas suas crónicas
dominicais no Diário de Coimbra, pela
coordenação do projecto “Ciência na Imprensa Regional”, promovido pela Ciência
Viva – Agência Nacional para a promoção da Ciência e da Tecnologia e pelo apoio
à dinamização de actividades de divulgação de ciência no Rómulo – Centro
Ciência Viva da Universidade de Coimbra.
Há em António Piedade uma
perseverança notável desde o seu primeiro livro saído há dez anos. O seu
objecto de escrita continua a ser a ciência, e não apenas a ciência bioquímica
que ele domina mas também outras ciências como a matemática, a astronomia, a
física e a química, e o estilo continua a ser a junção de pequenas peças numa
prosa de laivos poéticos, que remete quase sempre para conversas do quotidiano.
O tamanho dos seus textos tem a ver com o facto de eles terem vindo a lume na
imprensa, competindo no espaço com as notícias e com a opinião. Por sua vez, a
sua oficina literária bebe decerto inspiração em Rómulo de Carvalho, o professor
de Física e Química que praticou tanto a pedagogia, a história e a divulgação
como a poesia e o teatro (disfarçado sob o nome de António Gedeão). Num país
onde a cultura científica ainda escasseia e onde nem sempre são devidamente
premiados os esforços para a espalhar, António Piedade tem vindo, ao longo dos
anos, a afirmar-se como uma voz tão distinta como segura, tanto nos livros como
na imprensa como ainda na Web (destaco a sua participação de há anos no blogue
de ciência e cultura científica De Rerum
Natura). A sua persistência na comunicação de ciência ao grande público,
adulto ou infanto-juvenil, por uma variedade de meios, merece encómios.
O diálogo é um género literário
com grande tradição na história da ciência. Foi sob essa forma que o físico
italiano Galileu Galilei escreveu diversos dos livros que trouxeram, no século
XVII, a ciência moderna: nos Diálogos
sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo (1632) Salviati, Simplício e
Sagredo discutem a mecânica e os mesmos três personagens reaparecem na sua obra
final Discursos e Demonstrações
Matemáticas sobre Duas Novas Ciências (1638). Os dois livros são escritos
em italiano para que a nova ciência pudesse extravasar dos estritos círculos
dos letrados. No século anterior, mais precisamente em 1563, já o português
Garcia da Orta tinha tentado romper o confinamento da ciência aos sábios ao
escrever, na forma de diálogo e em bom português, os seus Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia. Os
personagens que trocam opiniões são o próprio Orta e o Doutor Ruano, um colega
fictício que o visita. Tanto os livros de Galileu como o de Orta foram
pioneiras na história das ciências que versam.
Na moderna divulgação de ciência,
o diálogo tem ainda a propriedade de seduzir pela fluência das perguntas e
respostas. O segredo do autor de divulgação será sempre o de colocar na boca
dos seus personagens as perguntas e as respostas que o leitor presumivelmente
terá a respeito do mundo, em particular das partes do mundo que mais o encantam.
As respostas da ciência têm de ser interiorizadas pelos seres humanos que formulam
as questões. E, para isso, nada funciona melhor do que a sua ligação dessas
respostas à vida dos personagens.
Piedade começa por um diálogo
sobre um aniversário entre uma menina de doze anos e o seu avô, no qual um jogo
de números serve para mostrar a intemporalidade das proposições matemáticas. No
texto seguinte, uma mãe que, inquirida pela filha sobre o aparecimento dos peixinhos
num lago, lhe explica a semelhança entre a sua história pessoal e a dos peixes
que está a ver: “Na alvorada do teu quarto dia chegaste ao interior do meu
útero, e, na partitura do teu desenvolvimento, já estavas no estado de blastocisto.
Ou seja, tu eras um conjunto de mais de 64 células.”. No texto seguinte, assistimos
à conversa entre Joana e o seu irmão mais velho sobre a sucessão das estações
do ano na Terra... ou em Marte (“Há Primavera em Marte?”). Depois, é outra
menina que resolve, no Dia Mundial da Música, ir escutar os sons da Natureza. No
texto seguinte, “Cores do Outono”, não há diálogo mas o leitor pode deliciar-se
com uma descrição poético-científica da queda das folhas. Sente-se a presença
de Gedeão, o autor de “Lágrima de Preta” em “O que tem a tua lágrima?”, um
diálogo entre Rui e o seu tio. Depois, Patrícia interroga-se sobre os elementos
químicos dentro de si: ela tem 33 quilogramas de moléculas de água, combinações
de hidrogénio e oxigénio. A invocação de Gedeão volta em “O tio Antão”, uma
conversa entre tio e sobrinho, no qual o primeiro transmite a ideia de movimento,
por exemplo de um berlinde. Em “Um relógio que flui dentro de ti!”, Henrique
observa ao microscópio uma gota de sangue, motivado por um artigo da Nature. Os dois textos que se seguem
referem-se aos prémios Nobel de 2010 e 2011, apresentados sob a forma de metáforas
ferroviárias. Na sequência surge Helena com uma flor na mão, um “bem-me-quer”, que
é surpreendida por um amigo. No texto seguinte aparece o único personagem de
fantasia, Etolas, o “arquitecto de minérios”. Na continuação dá-se um regresso
à matemática, com um “Diálogo de zeros”, literalmente uma conversa entre zeros,
e os “Doze Anos”, onde Ana conta pelos dedos. Para terminar, o avô Jaime e os
seus dois netos gémeos celebram os 60 anos ao mesmo tempo do avô e da estrutura
do ADN, já que Jaime nasceu no ano em que Watson e Crick identificaram a famosa
dupla hélice.
Eis um passeio muito
diversificado pela ciência: aniversários, peixes, estações do ano, sons,
folhas, lágrimas, água, berlindes, sangue, comboios, números e código genético.
Convido os leitores, jovens ou menos jovens, a lerem estas mini-histórias.
Ficarão decerto seduzidos pela ciência que está omnipresente no livro, reflectindo
a ciência que está por todo o lado, tanto à nossa volta como dentro de nós.
Somos parte do mundo e somos também, tanto quanto sabemos, a única parte do
mundo que se encanta e se interroga sobre ele. O encanto e o questionamento vão
em paralelo, como bem mostra António Piedade.
(Nota do António Piedade: Quem estiver interessado num exemplar envie um email para apiedade@ci.uc.pt)
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