sábado, 21 de novembro de 2015

Prefácio a "O Realismo Experimental e os seus Críticos" de João Ribeiro Mendes (Húmus, 2015)

Prefácio a um livro de filosofia de ciência da autoria de um filósofo da Universidade do Minho, que acaba de sair:

Este é um livro de Filosofia da Ciência, pelo que devo começar por dizer que as relações entre ciência e filosofia, embora de alguma proximidade, nem sempre foram as melhores. O físico norte-americano Richard Feynman, Prémio Nobel em 1965, nas suas lições clássicas sobre O que é uma Lei Física  (Gradiva, 1989) deu algumas alfinetadas nos filósofos.  Por exemplo, “Os filósofos, que estão sempre de fora a fazer comentários estúpidos, rodear-nos-ão, porque não poderemos afastá-los…” Não podemos deixar de ver aqui um sinal claro da tensão, ainda mais clássica do que o texto de Feynman, entre os físicos e os filósofos ou entre a Física e Filosofia. No entanto, as duas disciplinas provêm do mesmo tronco, tendo vivido unidas desde a Antiguidade até ao Iluminismo. Se a Física começou por ser denominada “filosofia natural”, foi só com o alemão Immanuel Kant (que começou, em 1755, por escrever um tratado de mecânica celeste, inteiramente baseado na doutrina newtoniana, História Geral da Natureza e Teoria dos Céus, antes de abalançar nas críticas da razão) que a Física e a Filosofia seguiram caminhos divergentes. A separação nunca foi completa, uma vez que a Filosofia da Ciência sempre assegurou uma ponte entre os dois domínios do pensamento humano. São conhecidas as tricas que houve de vez em quando entre as duas. Por vezes, como bem mostra o caso de Feynman, foram cientistas profissionais que criticaram abertamente a postura dos filósofos. Noutras vezes, viram-se filósofos a dar alfinetadas na ciência: o caso modernamente mais conhecido foi o do austríaco Paul Feyerabend, que se incompatibilizou com o seu mestre, também austríaco, Karl Popper para se tornar num iconoclasta da razão, ao escrever Contra o Método (Relógio d’Água, 1993) e Adeus à Razão (Edições 70, 1991).

Nos dias de hoje, a maior parte dos físicos adoptam, quanto à Filosofia, um ponto de vista um pouco autista. Sabem que ela existe, alguns até gostam de se aproximar dessa disciplina, mas só quanto baste. Não gostam de se aproximar demasiado. Os físicos sabem decerto que há mais mundos para além da física e que a filosofia é um desses mundos, mas ignoram-na convenientemente. Ou limitam-se a invocá-la por exemplo com umas referências avulsas a Popper, que dão ares de erudição, ou umas críticas, porventura justificadas, a Feyerabend. Devo dizer que essa atitude de afastamento da Filosofia por parte dos físicos sempre me pareceu uma grande limitação mais dos físicos do que da Física. Permito-me deixar, neste prefácio, uma nota pessoal: no final dos estudos secundários, no antigo 7.º ano dos liceus, as minhas melhores notas eram a Filosofia. Lembro-me de ter sido espevitado na época para essa disciplina por um jovem professor que me receitou, de Paul Foulquié, Le Problème de la Connaissance (Les Éditions de l´École, 3.ª edição revista e aumentada, 1964), um livro que ainda hoje conservo com alguns sublinhados. Contudo, inebriado pelos mistérios do mundo físico, enveredei por um curso de Física em vez de um de Filosofia, tornando-me diletante de Filosofia. Como físico aprendi que grandes físicos foram inspiradores dos melhores filósofos, sendo legítimo por vezes considerá-los mesmo filósofos. Foi decerto o caso do suíço nascido na Alemanha Albert Einstein e do dinamarquês Niels Bohr, as duas  mentes geniais que se envolveram numa das maiores polémicas do século XX, a polémica associada à teoria quântica relativa à relação entre o mundo e o observador.

Einstein era um realista, isto é, acreditava que o mundo existia na realidade independentemente da nossa vontade e das nossas capacidades, naturais ou instrumentais, de observação. As nossas teorias físicas deveriam ser aproximações, cada vez melhores, a esse mundo. Bohr, pelo contrário, era mais cauteloso ao dizer que, pelo menos no mundo microfísico, objecto e observador tinham de ser considerados em conjunto por não serem facilmente separáveis. No auge da contenda intelectual, Einstein perguntou um dia a Bohr “Você acha que a Lua não está lá se não olhar para ela?”. O certo é que só podemos ter a certeza que está lá se olharmos para ela. Einstein, Bohr e todos os seres humanos, sejam físicos ou não, têm boas razões para acreditar que a Lua está lá mesmo quando não se olha para ela. No entanto, na escala microscópica, o problema é bem mais complicado. Será que os electrões estão lá, ou dito doutra forma, será que os electrões são reais? E será que conseguimos observar os electrões certificando-nos assim da sua existência? De facto, não vemos os electrões da mesma maneira que vemos a Lua. Eles são demasiado pequenos: muito menores do que nós e, evidentemente, que a Lua. Contudo, os estudantes de Física ficam a saber que esses corpúsculos existem, são partículas elementares constituintes dos átomos. Aqui entra em jogo – quando entra, devia entrar mais – a Filosofia. Os electrões são, afinal, conceitos da teoria física: na teoria quântica são corpúsculos, mas também são ondas. E o acto de observação afecta-os. Como escreveu Feynman na referida obra: “Os electrões são muito delicados. Quando olhamos para uma bola de baseball, o facto de a iluminarmos não produz qualquer mudança: a bola comporta-se da mesma maneira. Todavia quando iluminamos um electrão – com uma luz forte, isso afecta-o o suficiente para que, em vez de fazer uma coisa, faça outra.” Quer dizer, não só os electrões são entidades estranhas, com propriedades paradoxais, como, no reino dos electrões, deixa de fazer sentido a existência de uma realidade inteiramente separada do observador. Isto é, o realismo mais ingénuo não pode deixar de ficar abalado.

 A Física oferecia no tempo de Einstein e Bohr e oferece-nos ainda hoje problemas complicados, demasiado complicados para os físicos. Foi o matemático alemão David Hilbert, um contemporâneo de Einstein, que afirmou: “A física é demasiado difícil para os físicos”. Talvez com ainda maior propriedade essa afirmação poderia vir da boca de um filósofo. Os físicos sabem que a Filosofia excede largamente a Física e que um capítulo da Filosofia, precisamente a Epistemologia, a área que trata do conhecimento, das suas possibilidades e das suas limitações, tem de estar necessariamente informado sobre os avanços da ciência, mas vai muito para além da ciência. Em todo o mundo e também em Portugal alguns dos actuais debates filosóficos mais interessantes fazem-se em torno dos objectivos, dos métodos e dos resultados da ciência. Tenho a maior das admirações por Feynman, mas, na minha opinião, ele foi injusto para com os filósofos. No plano do conhecimento, estes não são menos necessários que os físicos. Conceitos que os físicos dão como auto-evidentes como por exemplo o tempo e o espaço, ou a matéria e a energia, estão longe de o serem. Para além de serem noções de Física, são noções do domínio da Filosofia. A insatisfação com a visão da Física é perfeitamente legítima. Além da Física, há evidentemente a Metafísica. No Corpus aristotelicum os escritos de Física englobam os livros Do Céu e Mecânica e os escritos de Metafísica surgem só a seguir. De facto, o grego Aristóteles usou o termo Física, que significa etimologicamente Natureza, mas não o termo Metafísica. Com Aristóteles, a ordem cronológica entre a Física e a Metafísica, foi semelhante à de Kant: primeiro a Física e só depois a Metafísica. Metafísica significa não “para além da Física”, mas sim “depois da Física”.

Mas, depois desta incursão sobre as relações históricas (e também sentimentais) entre a Física e a Filosofia, vamos à apresentação do livro que o leitor tem em mãos, O Realismo Experimental e os seus críticos, de João Ribeiro Mendes, professor de Filosofia da Universidade do Minho. Se o autor me permite e antecipando o prazer da leitura, explicito já o que é o “realismo experimental”. Significa uma versão da doutrina filosófica do realismo, isto é, a doutrina que enfatiza a independência da realidade em relação às nossas concepções e crenças. Aceitando o realismo, a verdade das nossas concepções ou crenças terá a ver com a sua adequação ao mundo real. O realismo experimental é uma proposta do filósofo canadiano contemporâneo Ian Hacking, uma voz original vinda da filosofia analítica anglo-saxónica, segundo a qual os conceitos científicas são bastante mais reais do que as teorias nas quais eles se enquadram. E, acrescenta ele, a realidade dos conceitos tem necessariamente de se alicerçar na experimentação: “O trabalho experimental fornece a evidência mais forte de realismo científico” (in Representing and Intervening: Introductory Topics in the Philosophy of Natural Science,  Cambridge University Press, 1983) .

Concretizemos: serão os electrões reais? Os electrões são conceitos físicos, cuja observação directa é difícil ou mesmo impossível. E, quando ela se faz, provoca alterações. Mas podemos falar da realidade dos electrões na medida em que nos servimos deles, designadamente de correntes electrónicas num sem número de experiências. Já, por outro lado, será arriscado falar de realidade da teoria quântica que os descreve, uma construção mental, de base matemática, que poderá um dia dar lugar a outra que descreva tão bem ou melhor a miríade de fenómenos físicos, na escala microscópica, observados na Natureza ou no laboratório.  

Se formos na peugada de Hacking, o nosso realismo será mitigado: não se refere a teorias, mas sim a entidades, sendo a chave de acesso à realidade precisamente a experimentação. Realismo experimental é sinónimo de realismo instrumental, uma vez que utilizamos os electrões como instrumentos ou ferramentas (como se costuma dizer, “se se prega um prego, então há um martelo”). Ficou proverbial, estando aliás contada neste livro, a história de Hacking que ocorreu, quando ele, confrontado com o borrifo (spray) de electrões numa esfera metálica supercondutora num laboratório de Stanford, concluiu sem hesitar: “Se podemos borrifar com eles, então são reais.” Ora aqui está um exemplo de convívio íntimo entre físicos e filósofos, onde nenhum deles se sente incomodado.

 A primeira parte deste livro é uma excelente introdução ao pensamento de Hacking, que, como foi professor em Stanford, é por vezes apresentado como membro da escola filosófica de Stanford (esteve também e depois disso na Universidade de Toronto e no Collège de France) juntamente com nomes como Nancy Cartwright e Peter Galison. Esses autores, ao desvalorizarem as teorias, não são propriamente paladinos da unidade das ciências. O rigor filosófico, alicerçado no sólido conhecimento da obra de Hacking e dos seus colegas da escola de Stanford, alia-se neste livro ao conhecimento pormenorizado de várias questões de física moderna que são relevantes para a Filosofia.

Contudo, as críticas do realismo experimental (REX, na curiosa sigla de Ribeiro Mendes) não têm sido poucas. Este livro expõe os argumentos e contra-argumentos brandidos pelos realistas experimentais e pelos anti-realistas experimentais. Para uns a noção de realismo de Hacking é demasiado restritiva, enquanto para outros é demasiado abrangente. Há todo um espectro de cambiantes na discussão filosófica que surgem muito bem analisadas na segunda parte desta obra. O leitor menos familiar com a Filosofia encontra aqui uma excelente oportunidade para ver a moderna Filosofia em acção. A Filosofia, como de resto a Ciência, está viva, em Portugal, e recomenda-se.

O autor é um especialista no realismo experimental. A sua tese de doutoramento (defendida em 2012 na Universidade de Santiago de Compostela) intitula-se Realismo e Racionalidade em Ciência: Uma crítica do Neoexperimentalismo.  O presente volume desenvolve algumas ideias da tese, sendo capaz, bem para lá do círculo académico de especialistas, de suscitar o interesse não só dos curiosos da Filosofia da Ciência, entre os quais me incluo, como também dos simples curiosos pela ciência. Para complemento da minha formação, pude, com Ribeiro Mendes, ir muito além do Foulquié da minha juventude, que se ficava, na Filosofia da Ciência, pelo francês Gaston Bachelard.  Tal como a Física, a Filosofia continua a progredir.

Mas vamos ao livro que se faz tarde. Espero ter aberto o apetite ao leitor. Vem agora o prato principal.

Coimbra, 26 de Julho de 2015


Sem comentários:

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...