Este é um livro de Filosofia da Ciência,
pelo que devo começar por dizer que as relações entre ciência e filosofia,
embora de alguma proximidade, nem sempre foram as melhores. O físico norte-americano
Richard Feynman, Prémio Nobel em 1965, nas suas lições clássicas sobre O que é uma Lei Física (Gradiva, 1989) deu algumas alfinetadas nos
filósofos. Por exemplo, “Os filósofos, que estão sempre de fora a
fazer comentários estúpidos, rodear-nos-ão, porque não poderemos afastá-los…”
Não podemos deixar de ver aqui um sinal claro da tensão, ainda mais clássica do
que o texto de Feynman, entre os físicos e os filósofos ou entre a Física e Filosofia.
No entanto, as duas disciplinas provêm do mesmo tronco, tendo vivido unidas desde
a Antiguidade até ao Iluminismo. Se a Física começou por ser denominada
“filosofia natural”, foi só com o alemão Immanuel Kant (que começou, em 1755,
por escrever um tratado de mecânica celeste, inteiramente baseado na doutrina
newtoniana, História Geral da Natureza e
Teoria dos Céus, antes de abalançar nas críticas da razão) que a Física e a
Filosofia seguiram caminhos divergentes. A separação nunca foi completa, uma
vez que a Filosofia da Ciência sempre assegurou uma ponte entre os dois
domínios do pensamento humano. São conhecidas as tricas que houve de vez em
quando entre as duas. Por vezes, como bem mostra o caso de Feynman, foram
cientistas profissionais que criticaram abertamente a postura dos filósofos.
Noutras vezes, viram-se filósofos a dar alfinetadas na ciência: o caso
modernamente mais conhecido foi o do austríaco Paul Feyerabend, que se
incompatibilizou com o seu mestre, também austríaco, Karl Popper para se tornar
num iconoclasta da razão, ao escrever Contra
o Método (Relógio d’Água, 1993) e Adeus
à Razão (Edições 70, 1991).
Nos dias de hoje, a maior parte
dos físicos adoptam, quanto à Filosofia, um ponto de vista um pouco autista. Sabem
que ela existe, alguns até gostam de se aproximar dessa disciplina, mas só
quanto baste. Não gostam de se aproximar demasiado. Os físicos sabem decerto que
há mais mundos para além da física e que a filosofia é um desses mundos, mas
ignoram-na convenientemente. Ou limitam-se a invocá-la por exemplo com umas
referências avulsas a Popper, que dão ares de erudição, ou umas críticas,
porventura justificadas, a Feyerabend. Devo dizer que essa atitude de
afastamento da Filosofia por parte dos físicos sempre me pareceu uma grande limitação
mais dos físicos do que da Física. Permito-me deixar, neste prefácio, uma nota
pessoal: no final dos estudos secundários, no antigo 7.º ano dos liceus, as
minhas melhores notas eram a Filosofia. Lembro-me de ter sido espevitado na
época para essa disciplina por um jovem professor que me receitou, de Paul
Foulquié, Le Problème de la Connaissance
(Les Éditions de l´École, 3.ª edição revista e aumentada, 1964), um livro que
ainda hoje conservo com alguns sublinhados. Contudo, inebriado pelos mistérios
do mundo físico, enveredei por um curso de Física em vez de um de Filosofia,
tornando-me diletante de Filosofia. Como físico aprendi que grandes físicos
foram inspiradores dos melhores filósofos, sendo legítimo por vezes considerá-los
mesmo filósofos. Foi decerto o caso do suíço nascido na Alemanha Albert
Einstein e do dinamarquês Niels Bohr, as duas mentes geniais que se envolveram numa das
maiores polémicas do século XX, a polémica associada à teoria quântica relativa
à relação entre o mundo e o observador.
Einstein era um realista, isto é,
acreditava que o mundo existia na realidade independentemente da nossa vontade
e das nossas capacidades, naturais ou instrumentais, de observação. As nossas
teorias físicas deveriam ser aproximações, cada vez melhores, a esse mundo. Bohr,
pelo contrário, era mais cauteloso ao dizer que, pelo menos no mundo microfísico,
objecto e observador tinham de ser considerados em conjunto por não serem
facilmente separáveis. No auge da contenda intelectual, Einstein perguntou um
dia a Bohr “Você acha que a Lua não está lá
se não olhar para ela?”. O certo é que só podemos ter a certeza que está lá
se olharmos para ela. Einstein, Bohr e todos os seres humanos, sejam físicos ou
não, têm boas razões para acreditar que a Lua está lá mesmo quando não se olha
para ela. No entanto, na escala microscópica, o problema é bem mais complicado.
Será que os electrões estão lá, ou dito doutra forma, será que os electrões são
reais? E será que conseguimos observar os electrões certificando-nos assim da
sua existência? De facto, não vemos os electrões da mesma maneira que vemos a
Lua. Eles são demasiado pequenos: muito menores do que nós e, evidentemente, que
a Lua. Contudo, os estudantes de Física ficam a saber que esses corpúsculos
existem, são partículas elementares constituintes dos átomos. Aqui entra em
jogo – quando entra, devia entrar mais – a Filosofia. Os electrões são, afinal,
conceitos da teoria física: na teoria quântica são corpúsculos, mas também são
ondas. E o acto de observação afecta-os. Como escreveu Feynman na referida
obra: “Os electrões são muito delicados.
Quando olhamos para uma bola de baseball, o facto de a iluminarmos não produz
qualquer mudança: a bola comporta-se da mesma maneira. Todavia quando iluminamos
um electrão – com uma luz forte, isso afecta-o o suficiente para que, em vez de
fazer uma coisa, faça outra.” Quer dizer, não só os electrões são entidades
estranhas, com propriedades paradoxais, como, no reino dos electrões, deixa de fazer
sentido a existência de uma realidade inteiramente separada do observador. Isto
é, o realismo mais ingénuo não pode deixar de ficar abalado.
A Física oferecia no tempo de Einstein e Bohr e
oferece-nos ainda hoje problemas complicados, demasiado complicados para os
físicos. Foi o matemático alemão David Hilbert, um contemporâneo de Einstein,
que afirmou: “A física é demasiado
difícil para os físicos”. Talvez com ainda maior propriedade essa afirmação
poderia vir da boca de um filósofo. Os físicos sabem que a Filosofia excede
largamente a Física e que um capítulo da Filosofia, precisamente a Epistemologia,
a área que trata do conhecimento, das suas possibilidades e das suas limitações,
tem de estar necessariamente informado sobre os avanços da ciência, mas vai muito
para além da ciência. Em todo o mundo e também em Portugal alguns dos actuais debates
filosóficos mais interessantes fazem-se em torno dos objectivos, dos métodos e
dos resultados da ciência. Tenho a maior das admirações por Feynman, mas, na
minha opinião, ele foi injusto para com os filósofos. No plano do conhecimento,
estes não são menos necessários que os físicos. Conceitos que os físicos dão
como auto-evidentes como por exemplo o tempo e o espaço, ou a matéria e a energia,
estão longe de o serem. Para além de serem noções de Física, são noções do domínio
da Filosofia. A insatisfação com a visão da Física é perfeitamente legítima. Além
da Física, há evidentemente a Metafísica. No Corpus aristotelicum os escritos de Física englobam os livros Do Céu e Mecânica e os escritos de Metafísica surgem só a seguir. De facto,
o grego Aristóteles usou o termo Física, que significa etimologicamente
Natureza, mas não o termo Metafísica. Com Aristóteles, a ordem cronológica entre
a Física e a Metafísica, foi semelhante à de Kant: primeiro a Física e só depois
a Metafísica. Metafísica significa não “para além da Física”, mas sim “depois
da Física”.
Mas,
depois desta incursão sobre as relações históricas (e também sentimentais) entre
a Física e a Filosofia, vamos à apresentação do livro que o leitor tem em mãos,
O Realismo Experimental e os seus
críticos, de João Ribeiro Mendes, professor de Filosofia da Universidade do
Minho. Se o autor me permite e antecipando o prazer da leitura, explicito já o
que é o “realismo experimental”. Significa uma versão da doutrina filosófica do
realismo, isto é, a doutrina que enfatiza a independência da realidade em
relação às nossas concepções e crenças. Aceitando o realismo, a verdade das
nossas concepções ou crenças terá a ver com a sua adequação ao mundo real. O
realismo experimental é uma proposta do filósofo canadiano contemporâneo Ian
Hacking, uma voz original vinda da filosofia analítica anglo-saxónica, segundo
a qual os conceitos científicas são bastante mais reais do que as teorias nas
quais eles se enquadram. E, acrescenta ele, a realidade dos conceitos tem
necessariamente de se alicerçar na experimentação: “O trabalho experimental fornece a evidência mais forte de realismo
científico” (in Representing and
Intervening: Introductory Topics in the Philosophy of Natural Science, Cambridge University Press, 1983) .
Concretizemos: serão os electrões
reais? Os electrões são conceitos físicos, cuja observação directa é difícil ou
mesmo impossível. E, quando ela se faz, provoca alterações. Mas podemos falar
da realidade dos electrões na medida em que nos servimos deles, designadamente
de correntes electrónicas num sem número de experiências. Já, por outro lado,
será arriscado falar de realidade da teoria quântica que os descreve, uma
construção mental, de base matemática, que poderá um dia dar lugar a outra que
descreva tão bem ou melhor a miríade de fenómenos físicos, na escala
microscópica, observados na Natureza ou no laboratório.
Se formos na peugada de Hacking,
o nosso realismo será mitigado: não se refere a teorias, mas sim a entidades,
sendo a chave de acesso à realidade precisamente a experimentação. Realismo
experimental é sinónimo de realismo instrumental, uma vez que utilizamos os
electrões como instrumentos ou ferramentas (como se costuma dizer, “se se prega um prego, então há um martelo”).
Ficou proverbial, estando aliás contada neste livro, a história de Hacking que
ocorreu, quando ele, confrontado com o borrifo (spray) de electrões numa esfera metálica supercondutora num laboratório
de Stanford, concluiu sem hesitar: “Se
podemos borrifar com eles, então são reais.” Ora aqui está um exemplo de
convívio íntimo entre físicos e filósofos, onde nenhum deles se sente
incomodado.
A primeira parte deste livro é uma excelente
introdução ao pensamento de Hacking, que, como foi professor em Stanford, é por
vezes apresentado como membro da escola filosófica de Stanford (esteve também e
depois disso na Universidade de Toronto e no Collège de France) juntamente com
nomes como Nancy Cartwright e Peter Galison. Esses autores, ao desvalorizarem
as teorias, não são propriamente paladinos da unidade das ciências. O rigor
filosófico, alicerçado no sólido conhecimento da obra de Hacking e dos seus
colegas da escola de Stanford, alia-se neste livro ao conhecimento
pormenorizado de várias questões de física moderna que são relevantes para a Filosofia.
Contudo, as críticas do realismo
experimental (REX, na curiosa sigla de Ribeiro Mendes) não têm sido poucas.
Este livro expõe os argumentos e contra-argumentos brandidos pelos realistas
experimentais e pelos anti-realistas experimentais. Para uns a noção de
realismo de Hacking é demasiado restritiva, enquanto para outros é demasiado
abrangente. Há todo um espectro de cambiantes na discussão filosófica que
surgem muito bem analisadas na segunda parte desta obra. O leitor menos
familiar com a Filosofia encontra aqui uma excelente oportunidade para ver a
moderna Filosofia em acção. A Filosofia, como de resto a Ciência, está viva, em
Portugal, e recomenda-se.
O autor é um especialista no
realismo experimental. A sua tese de doutoramento (defendida em 2012 na
Universidade de Santiago de Compostela) intitula-se Realismo e Racionalidade em Ciência: Uma crítica do Neoexperimentalismo.
O presente volume desenvolve algumas
ideias da tese, sendo capaz, bem para lá do círculo académico de especialistas,
de suscitar o interesse não só dos curiosos da Filosofia da Ciência, entre os
quais me incluo, como também dos simples curiosos pela ciência. Para
complemento da minha formação, pude, com Ribeiro Mendes, ir muito além do
Foulquié da minha juventude, que se ficava, na Filosofia da Ciência, pelo
francês Gaston Bachelard. Tal como a
Física, a Filosofia continua a progredir.
Mas vamos ao livro que se faz
tarde. Espero ter aberto o apetite ao leitor. Vem agora o prato principal.
Coimbra, 26 de Julho de 2015
Sem comentários:
Enviar um comentário