Meu capítulo publicado no recente livro de homenagem a Manuel Sérgio (Afrontamento),
Pensar à Frente - Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania
Estudos sobre Manuel Sérgio
de José Eduardo Franco e Miguel Real
:
No ano de 2005, foi publicado por uma nova editora de Coimbra, a Ariadne, uma empresa que estava então em incubação no Instituto Pedro Nunes, mas que infelizmente não conseguiu sobreviver por muito tempo, um pequeno livro de Manuel Sérgio (n. 1933): Para um Novo Paradigma do Saber e.… do Ser. Era apenas mais uma adição à sua já então longa lista da produção bibliográfica, que desde então não tem cessado de aumentar. Sérgio já antes tinha publicado títulos como Para uma Epistemologia da motricidade humana: Prolegómenos a uma Ciência do Homem (1988), a sua tese de doutoramento na Universidade de Aveiro e um texto seminal entre nós da nova ciência da motricidade humana, que se procurava diferenciar da Educação Física e Desporto pelos seus maiores âmbito e complexidade, Motricidade Humana – Contribuições para um Paradigma Emergente (1994), Um Corte Epistemológico: da Educação Física à Motricidade Humana (1999) (referências bibliográficas mais completas encontram-se no final). Como revelam todos esses títulos, o autor procurava empreender uma uptura relativamente ao pensamento até então dominante sobre Educação Física e Desporto.
Tive a honra de ser convidado por Manuel
Sérgio para escrever um prefácio para aquela obra. Como minha homenagem a Manuel
Sérgio, não posso deixar de reflectir aqui, quinze anos depois, sobre o seu tão
fértil pensamento. Recupero em parte esse meu prefácio, ampliando-o no que
respeita à apresentação das ciências da complexidade, as quais, embora continuando
a tradição da ciência que vem da Revolução Científica, constituem hoje uma
aproximação ao mundo que é em larga medida inovadora. O presente texto não é
mais do que o olhar de um físico e divulgador de ciência sobre os fundamentos conceptuais
de um notável filósofo do desporto português.
Uma das contribuições mais relevante de Descartes para o pensamento moderno foi o chamado “dualismo mente-corpo”, que separa claramente a mente (res cogitans, ou coisa pensante) do corpo (res extensa, coisa extensa). Esse dualismo transparece claramente do seu livro Meditações sobre Filosofia Primeira (1641), que é uma extensão do Discurso do Método. De acordo com essa separação, os fenómenos mentais não são físicos. O ponto de contacto entre espírito e corpo seria minúsculo: a glândula pineal, existente no cérebro não apenas no homem, mas de todos os vertebrados. Se essa distinção tinha a vantagem de separar a questão de Deus da questão do mundo natural, permitindo estudar este último como se Deus não existisse (existia obviamente para Descartes, mas num outro domínio superior), ela impede, por outro lado, o estudo da mente por parte daa ciências naturais. A teses de Descartes é abertamente criticada hoje, em boa parte devido aos avanços das ciências. O livro mais famoso de Damásio intitula-se significativamente O Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano (1994) (ver no final outros livros do autor): Damásio explicou que as emoções que influenciam o pensamento estão ligadas ao corpo. O cérebro foi, na história natural, criado a partir do corpo, tendo sempre crescido com ele. O filósofo contemporâneo norte-americano John Searle declarou de um modo muito incisivo (https://blogs.loc.gov/kluge/2015/03/conversation-with-john-searle/ ): “Há um certo número de desastres famosos na filosofia, e Descartes foi um dos maiores. (…) A sua maior catástrofe foi o dualismo, a ideia de que a realidade se divide em dois tipos de de substâncias, a matéria e o espírito. (…) Vivemos num mundo, não em dois ou três ou mais, e o que consideramos consciência e mente é uma característica biológica de certos tipos de organismos. Descartes foi incapaz de ver isso, porque ele achava que a consciência só poderia existir numa alma, e a alma não era uma parte do mundo físico.”
Hoje, na senda
de Galileu (e também, embora só em parte, de Descartes) a Física continua a ser
a ciência geral da matéria, da energia e do movimento, que não pode deixar de
informar a nova ciência do movimento do nosso corpo, a ciência da “Motricidade Humana”
cunhada por Manuel Sérgio. Mas hoje sabemos que a mente ou espírito resultam da
acção do cérebro e que o cérebro não passa de uma gigantesca rede de neurónios,
nos quais ocorrem fenómenos físico-químicos extremamente complexos. Não admira,
por isso, que, atento aos avanços da ciência, Sérgio tenha querido substituir a
“antiga” ciência da Educação Física e Desporto, que ele reputa de “cartesiana”,
pela “nova” ciência, informada pela complexidade, a da Motricidade Humana.
Um dos grandes avanços da Física no século XX revelou um entrave à ideia determinista: a de que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Associamos o determinismo a Descartes: sara ele, o mundo teria sido criado por Deus, mas ele tinha vindo a funcionar sozinho, deterministicamente, desde então): Os trabalhos do físico e matemático norte-americano Edward Lorenz (1917-2008), realizados nos anos 60, que consistiram em modelar de forma simples um sistema meteorológico e em explorar esse modelo num computador conduziram à ideia de que pequeníssimas diferenças nas condições iniciais podem conduzir, em sistemas como aquele que ele estudou (sistemas ditos “não-lineares”) a descomunais diferenças nas condições finais. O determinismo ficou então fortemente abalado e com ele as nossas possibilidades de previsão. Mas mais: apesar dessa enorme variabilidade, expressa na expressão “efeito borboleta” (uma borboleta que bate as asas no Brasil pode provocar um furacão do outro lado do globo), nos sistemas não-lineares é possível reconhecer padrões matemáticos, chamados “atractores estranhos,” que ostentam uma certa ordem, emergente da desordem. Havia, portanto, alguma possibilidade de previsão, embora limitada, nos sistemas desse tipo. O estudo do caos – falamos de “caos” sempre que há extrema sensibilidade às condições iniciais - tivesse precedentes (como, por exemplo, a investigação do matemático francês Henri Poincaré, no início do século XX, sobre movimentos celestes) teve então o seu início. A chamada “teoria do caos” encontrou curiosamente amplas aplicações na mecânica celeste, que parecia ser o protótipo acabado de determinismo. Os céus não eram o sítio de fácil previsão que se supunha. O próprio sistema solar, sujeito à força não-linear da gravidade, é, a longo prazo, caótico.
Neste contexto,
o pensamento de Manuel Sérgio revela-se claramente influenciado, para não dizer
seduzido, pelas propostas de Ilya Prigogine, Prêmio Nobel da Química em 1977
por seu trabalho pioneiro nas “estruturas dissipativas”. Prigogine discutiu, na
ciência, a irreversibilidade do tempo que advém nessas situações e, na filosofia,
a reconfiguração das ciências que surge quando ela é valorizada. Se Lorenz
olhou para sistemas meteorológicos, que são claramente instáveis, Prigogine
olhou para certas reacções químicas fora do equilíbrio, que não o são menos. “Estruturas dissipativas” (o termo é do próprio
Prigogine) são sistemas dinâmicos longe do equilíbrio, mas que podem atingir estados
de certo modo estacionários. Na sua palestra Nobel, Prigogine explicou como tais
sistemas podem ter um comportamento completamente diferente do dos sistemas
próximos do equilíbrio, mas, mesmo assim, revelarem uma ordem peculiar. Nestes
sistemas, tal como nos de Lorenz, havia “atractores estranhos”, até porque as equações
subjacentes são semelhantes.
A palavra-chave no
pensamento de Prigogine é “complexidade”, uma palavra de resto muito querida so
sociólogo francês Edgar Morin (n. 1921, outro pensador longevo), autor de Introdução
ao Pensamento Complexo (1995), entre muitos outros livros (ver no final uma
breve selecção bibliográfica). O corpo é
um sistema complexo. A mente é um sistema complexo. O complexo corpo-mente é
eminentemente complexo. O movimento do corpo comandado pela mente só pode ser compreendido
no quadro das chamadas “ciências da complexidade”, isto é, o estudo dos
sistemas que são formados por muitas partes com interacção não-lineares entre
elas Estes sistemas têm uma comportamento interessante em situações muito afastadas
do equilíbrio, nas quais um constante fluxo de energia mantém a organização dos
sistemas. Têm uma história (historicidade e irreversibilidade são praticamente
sinónimos) e são o palco de fenómenos de emergência. Fala-se, em particular, de
sistemas complexos adaptativos, isto é, sistemas que evoluem ao longo do tempo,
adaptando-se a novas situações, em particular conformando-se a estímulos provenientes
do exterior. Falamos então de auto-organização.
O domínio das ciências da complexidade é manifestamente interdisciplinar: foram dados exemplos da meteorologia, da química, da biomedicina. Em 1984 foi fundada nem Santa Fé, no estado do Texas, dos Estados Unidos, um Instituto de Estudos de Sistemas Complexos, onde matemáticos, físicos, químicos e biólogos trabalham ao lado de engenheiros, electrotécnicos, informáticos e outros, e também psicólogos, sociólogos, filósofos, etc. Trabalharam lá os físicos Murray Gell-Mann (1929-2019) e Philip Anderson (1923-2020), os dois laureados com o Prémio Nobel da Física, assim como o economista Kenneth Arrow (1921-2017), laureado com o Nobel da Economia. Em Santa Fé são investigadas a teoria do caos, os algoritmos genéticos, a economia da complexidade, a econofísica, as redes complexas, a biologia teórica, a vida artificial, a linguística, etc. Tal como a luneta astronómica e o plano inclinado foram os jnstrumentos de Galileu, o computador é um instrumento dos cientistas da complexidade. Os investigadores da complexidade procuram realizar simulações computacionais, em que modelos reproduzam pelo menos algumas das características dos intrincados sistemas naturais. No final indicam-se algumas obras em português que permitem ao autor exterior ao tema da complexidade entrar nele ou aprofundá-lo.
Só o reconhecimento prévio da complexidade pode permitir o sucesso de trabalhos de investigação na área do corpo e da mente, em geral, e do movimento voluntário do corpo, em particular. A complexidade coloca-nos, porém, um problema maior: a tradição reducionista que os físicos conservam desde o tempo de Galileu e Descartes poderá não ser a melhor chave para abrir portas nos edifícios onde eles hoje pretendem em entrar. Há que conseguir e prosseguir um pensamento global, sistémico, que se preocupe mais com o todo do que com as partes. E esse é o pensamento que vem dessa velha ciência que é a Termodinâmica, que evoluiu a partir do estudo do rendimento de máquinas, para fazer brotar essa sua justificação microscópica, que é a Física Estatística. A Termodinâmica sempre foi uma ciência de sistemas, uma ciência do macroscópico.
Na obra de Sérgio – amplamente discutida neste volume - o leitor ficará a saber que a motricidade humana possui a marca inegável da complexidade. Retirará também a mensagem de que o diálogo interdisciplinar, o diálogo entre a Física, a Medicina, a Psicologia, a Filosofia, etc., é hoje fonte indispensável de novos saberes. Ficará impressionado com o pensamento claro e vigoroso do professor jubilado da Universidade de Lisboa, que é também poeta e que foi também político.
Termino com uma citação do livro de Manuel Sérgio que referi logo no início (na p. 57, no final do cap. I
“A motricidade humana significa que um novo paradigma do saber e do ser porque todos os paradigmas clássicas, simplificadores e fragmentados, deverão transformar-se em complexos e dialogantes; porque só se é, verdadeiramente, no movimento intencional de transcendência, ou seja, mesmo que não acaudatado por ninguém, na motricidade de novos possíveis.
Carlos Fiolhais
BIBLIOGRAFIA
De Manuel Sérgio:
- Para uma epistemologia da motricidade humana: Prolegómenos a uma ciência do homem. Lisboa: Vega, 1988. (4.ª edição, Lisboa: Nova Vega, 2018, com prefácio de Augusto Baganha
- Motricidade Humana – contribuições para um paradigma emergente. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
- Um Corte Epistemológico: da educação
física à motricidade humana.
Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
- Para um Novo Paradigma do Saber e.… do Ser, Coimbra: Ariadne, 2005
De António Damásio:
- O Erro de Descartes: Emoção, razão e cérebro humano, Mem Martins: Europa-América, 1995 (edição revista e actualizada, 2.ª edição. Lisboa: Temas e Debates, 201
- O Livro da Consciência, Lisboa: Temas e Debates, 2010.
- O Sentimento de Si. Lisboa: Temas e Debates 2013
De Ilya Prigogine:
- A Nova Aliança. Metamorfose da Ciência. Lisboa: Gradiva, 198
- Entre o Tempo e a Eternidade, Lisboa: Gradiva, 1990.
- O Fim das Certezas. o Tempo, o Caos e as Leis das Natureza, Lisboa: Gradiva, 1996.
- O Nascimento do Tempo, Lisboa: Edições 70, 1999.
De Edgar Mori
- Introdução ao Pensamento Complexo, Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
- O Problema Epistemológico da Complexidade, (debate realizado em Lisboa, em 1983, com José Mariano Gago, entre outros), Mem Martins: Europa América, 1996.
-A Complexidade, Vertigens e Promessas. 18 Histórias de Ciência em Entrevistas com Edgar Morin, Michel Serres, Ilya Prigogine e Outros, Piaget, Réda Benkirane (coord.), Lisboa: Instituto Piaget, 2004.
- Inteligência da complexidade Epistemologia e pragmática (com Jean-Louis le Moigne), 2009, Lisboa: Instituto Piaget, 2009.
De outros (em português sobre as ciências da complexidade):
- James Gleick, Caos: a construção de uma nova ciência. Lisboa: Gradiva, 198
- Heinz Pagels, Os Sonhos da Razão. O computador e a ascensão das ciências da complexidade, Lisboa: Gradiva, 1990.
- Benoit Mandelbrot, Objectos fractais: forma, acaso e dimensão; seguido de Panorama da linguagem fractal. Lisboa: Gradiva, 1991.
- Ian Stewart, Deus joga aos dados?: a matemática do caos. Lisboa : Gradiva, 1991
- John Holland. A Ordem Oculta. Como a adaptação gere a complexidade, Lisboa: Gradiva, 1997.
- Murray Gell-Mann.
O Quark e o Jaguar: Aventuras no Simples e no Complexo, Lisboa: Gradiva,
1997.
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