Intervenção de António Barreto a 12 de Setembro de 2017 na Fundação Gulbenkian na apresentação das "Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa", Coordenação geral de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, Círculo de Leitores, 30 volumes
Quase me apetece dizer que “hoje, é dia de festa”! Festa do espírito, pois claro, que é melhor e a mais difícil. O lançamento desta colecção de “Obras Pioneiras” é um acontecimento cultural inesquecível! Bela maneira de comemorar antecipadamente o Ano Europeu do Património, a comemorar em 2018.
Fala-se tanto de património, ou antes, fala-se tanto, mas faz-se tão pouco, mas quando se fala, a primeira coisa que vem à cabeça é o património construído, monumentos, castelos, fortalezas, edifícios e templos. Também é verdade que a pintura, a ourivesaria, a escultura, o mobiliário vêm quase logo a seguir. Com frequência, esquecemos que outras culturas, outras artes e outras letras também são patrimoniais. A edição é de certeza! Por isso, estamos hoje no primeiro dia da vida de uma colecção patrimonial de livros importantes e fundamentais para a história de Portugal. Com a certeza de que a maior parte deles não está sequer disponível em alfarrabista, quanto mais em livraria!
Esta colecção, “Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa”, inicia-se hoje com dois volumes.
O Primeiro volume “Primeiros textos em português”: uma antologia de cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer, bem como uma selecção de prosa literária e os primeiros exemplos documentados do uso do português em textos não literários.
E o Segundo volume, que na realidade é o vigésimo nono, primeiro tratado de Física, “Recreação filosófica”, de Teodoro de Almeida: em forma de diálogo, o livro é um compêndio de física, mas também um livro de divulgação, com apreço e circulação alargada.
Entre dezenas de patrocínios, mecenas associações ou parcerias, distinguem-se o Presidente da República, a Universidade de Coimbra, a Universidade Aberta, a Biblioteca Nacional, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Quase duas centenas de investigadores e especialistas, além de umas poucas dezenas de coordenadores de cada obra e cada disciplina. É verdadeiramente impressionante o conjunto de académicos, estudiosos e especialistas que, a título de coordenadores ou consultores e conselheiros, colaborou nesta obra.
São obras pioneiras ou obras primeiras, em cada género ou cada disciplina e em português. Não é necessariamente a mais importante, nem a mais completa, é a primeira, no que já é um critério importante. Acontece que algumas obras pioneiras são também de grande importância, com o “Os Lusíadas”, a “Menina e moça”, a “Carta sobre o achamento do Brasil”, a “Trilogia das Barcas”, a “Castro” ou a “Peregrinação”… São especialmente felizes estes casos de coincidência entre o pioneiro e a importância. São obras de génios…
São os primeiros livros em cada área do conhecimento ou da literatura: na história, na física, na botânica, na filosofia, na gramática… Textos que vão do século XII ao século XIX. Livros que, nalguns casos, demoraram quatro séculos a ser editados! Como o “Leal Conselheiro” do rei D Duarte, só publicado em meados de século XIX. Livros nunca antes editados, como o “Livro das antiguidades e coisas notáveis entre Douro e Minho”, de João de Barros. Livros cujas primeiras edições ou manuscritos originais se encontram em Paris, Roma, Londres ou Nova Iorque.
Livros que desapareceram por obra e graça de alguns dos nossos inimigos: a Inquisição, o Terramoto de 1755, as Invasões francesas, os Piratas de várias épocas e diversas nacionalidades, a deslocalização da Corte para o Brasil com armas e bagagens, sendo que muitas bagagens de livros por lá ficaram, as compras por estrangeiros ilustres (designadamente ingleses…), as vendas por portugueses menos ilustres em vários períodos de perseguição ou de rupturas políticas, a censura e as várias polícias.
Mas também livros que foram desaparecendo dos nossos horizontes por razões bem mais comezinhas: porque o número de letrados e alfabetos sempre foi reduzido; porque os editores também eram poucos e nem sempre muito letrados; porque os poderosos se interessaram por outras áreas mais vistosas ou mais lucrativas. Para haver livros, é necessário haver leitores e editores, cientistas e gente culta que escreva e leia. E entidades públicas ou mecenas privados realmente interessados pelo património e pela cultura.
Há livros que não são reeditados há 300, 400 ou 500 anos! Não é que tudo deva estar sempre a ser reeditado, nem que seja obrigatório reeditar. E é verdade que não havendo leitores não há livros. Ou quase… Mas um país deve preocupar-se com ao seu património escrito e editado! E tudo ou quase tudo o que é importante deve estar sempre disponível para leitura, releitura, consulta e divulgação.
Creio que devemos ou podemos saudar com entusiasmo esta iniciativa de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, do Circulo de Leitores, das Universidades de Coimbra e Aberta, das Fundações Gulbenkian e da Ciência e Tecnologia e de muitos outros patrocinadores, mecenas e associados.
Saudar com entusiasmo porque é raro ver hoje iniciativas destas, não é frequente assistir a que se faça obra longa e lenta, rigorosa e minuciosa, em prole da cultura, da memória, do patrimónios e da história, sem outros objectivos que não sejam esses: cultura, memória, património e história.
Quero confessar, para que não haja dúvidas: não li a maior parte destas oitenta obras! Por ignorância minha ou preguiça; por estarem longe das minhas áreas de interesse ou por serem de difícil compreensão por amadores, por estarem esgotadas ou por não estarem disponíveis, deus sabe porquê… Não li a maior parte e a culpa é minha!
Mas, pelos nomes elencados, reconheço o essencial da história cultural portuguesa, aquela que se aprende e transmite pelos livros, aquela que me foi trazida em primeira mão, além da família, por António José Saraiva e Óscar Lopes, naquela que é talvez a mais profunda e interessante “História da Literatura Portuguesa”. Quem sabe se a mais divulgada.
Dos Trovadores ao Renascimento, das Luzes ao Romantismo, todos os que puderam ter contribuído com livros pioneiros, livros que foram os primeiros no seu género, estão por aqui, neste formidável repositório da história e da cultura de um povo.
Como referem oportunamente os seus coordenadores, a história da língua portuguesa acompanha a história do povo, do Estado e da nação. A língua, em Portugal, não precedeu a criação do país. O nosso país afirmou-se quando se afirmou culturalmente. E a obra escrita é o mais evidente instrumento de afirmação de uma língua e de uma cultura. As obras de arte, a música, a escultura, a pintura e a arquitectura também são obras de cultura e ficam no tempo a marcar a história. Mas nenhuma obra cultural em particular revela a versatilidade e a flexibilidade da obra escrita, do livro. Evolui, desenvolve-se, corrige-se, viaja, divulga-se, desloca-se, esconde-se, exibe-se, ensina-se, aprende-se, traduz-se… Até hoje, não há melhor nem mais importante! A palavra escrita pode dispensar a imagem, o som, o volume ou o movimento, pode bastar-se a si própria. Mas todas as outras artes não dispensam ou quase não dispensam a palavra escrita. As artes, a cultura e as ciências não dispensam a palavra. Nem as religiões que, aliás, têm todas os seus livros santos!
Nesta colecção de “Obras pioneiras”, parecem ser objectivos essenciais: encontrar as origens, redescobrir a história, recuperar o original e voltar ao princípio. E quase sempre voltar ao original significa procurar a palavra. Não é por acaso que um texto famoso começa com “No princípio era o verbo…”!
Vivemos tempos de obsessão com o futuro, a perspectiva, a ficção, a invenção… Muito bem. Nada tenho a negar ou contrariar. Nem desejo combater tão ilustres desejos. Mas é nosso direito e nosso dever fazer tudo para que isso não desvalorize a história, o património, o passado, as origens, a erudição, o conhecimento e o adquirido. Conhecer o património vale por si. Não necessita de adjectivos nem justificações, “para preparar o futuro” ou “para melhor conhecer o que fazer”… Não. Não vale a pena. Conhecer o passado, as origens, a história, o verbo inicial e o princípio de tudo… Isso vale por si. Não precisa de desculpas.
Entre as obsessões actuais, contam-se: o futuro, o optimismo, a inovação e o lucro… Lamento dizer: esta iniciativa não respeita nenhuma destas obsessões. É por assim dizer esplendorosamente clássica: história, conhecimento, passado e património! É por isso mesmo que a iniciativa é genial e deve ser louvada e acarinhada! Estes livros têm ainda a grande vantagem de contrariar os critérios actuais e as tendências actuais que tão mal fazem ao conhecimento, à erudição e à cultura: simples, rápido, curto, barato, superficial, que dá lucro, que dá audiências, que se esquece…
Estes livros valem pelo que são: esplêndidos testemunhos do passado, excelentes marcos patrimoniais da nossa história, sinais dos seus tempos, chaves para perceber como se cresce, como éramos e como fomos…
Mais uma vez, isso basta. Não necessitamos descobrir pretextos para o saber, nem de justificações para o que se gasta em tempo, paciência e dinheiro com o conhecimento. Não precisamos de legitimar a sabedoria com o que vamos investir ou ganhar. Não tenho a certeza de que ler a “Peregrinação” ou a “Ropicapnefma” me habilite a competir com os americanos ou os chineses no fabrico de automóveis ou sapatos! Nem que a leitura do “Menina e Moça” me ajude a imaginar uma administração pública ou um sistema eleitoral… Mas tenho a certeza que essas leituras fazem de nós homens e mulheres mais cultos e talvez mais livres.
Estas obras pioneiras, de datas muito diferentes (do século XII ao século XIX) e de todas as áreas do conhecimento e da criação, são as que nos fizeram, as que fizeram o país, a nacionalidade, a identidade… E não se pense que estas obras apenas resultam da circunstância ou são mero espelho da realidade. Algumas deles tiveram real influência na realidade, nos espíritos e na vida. Estes livros, muitos destes livros, são o resultado do que são os povos, os Estados, as nações e respectivas ciências e culturas, mas são também, em sentido inverso, influências decisivas na maneira de ser e viver. Alguém duvida de que Os Lusíadas criaram identidade?
Em seu tempo, cada uma destas obras, cada um destes livros, representou uma viragem na cultura da nossa comunidade nacional, uma viragem neste sentido que fixou um cânone, estabeleceu um marco e definiu uma baliza. Ora, é impensável que a maior parte destes livros não estivessem disponíveis a quem os quiser estudar, possuir, consultar. É impensável, mas estavam. Alguns originais, incluindo manuscritos, nem sequer foram guardados em Portugal. Manuscritos do Rei D. Duarte, por exemplo, encontram-se em Paris. Primeiras edições únicas estão hoje em Londres ou em Nova Iorque. Não faço profissão de fé nacionalista, onde quer que estejam, esses textos, desde que preservados, copiados e editados, estão bem. Mas não estarem cá, terem sido destruídos ou levados para o estrangeiro, vendidos ou roubados, deixa-nos sempre gosto amargo!
Mais do que de pobreza material, a inexistência destas obras em livraria, disponíveis, nas Universidades e nas bibliotecas, era sinal de pobreza cultural e moral.
Dezenas de obras desapareceram das livrarias, das escolas e das casas das famílias… Mas muitas ao menos ainda foram uma vez editadas… Mas as Obras completas de António Vieira só este século e só há três anos estão disponíveis… Nunca existiram antes! Várias obras deste elenco agora iniciado nunca tinham sido editadas antes ou apenas uma vez há séculos ou vários séculos depois de terem sido escritas (como as do Rei D. Duarte, por exemplo).
Já vivemos tempos em que fomos adiantados… O sentimento de atraso, iniciado em Portugal desde o século XVIII e tão forte nos séculos seguintes, tem mesmo essa origem: no facto de já termos sido pioneiros, adiantados. Ou antes, de termos estado entre os pioneiros. De termos estado entra as nações abertas. Hoje, dir-se-ia, numa expressão nada menos que estúpida, que “estivemos na linha da frente”…
Talvez tenhamos estado na vanguarda do progresso durante quatro ou cinco séculos. Ou Portugal encontrava-se entre os primeiros ou havia Portugueses entre os primeiros. Depois, o atraso estabeleceu-se como regra. E como consciência de tantos que nunca se esqueceram de se queixar do atraso diante das nações modernas e europeias. Desde o século XVIII que esse atraso, com ou sem razão, faz parte da nossa existência e da nossa história. Desde essa altura que o atraso se construiu. Talvez Portugal seja a primeira nação em que o atraso tenha sido consciente e assumido. E sofrido!
A leitura deste formidável catálogo sugere várias observações. A maior parte destas obras resulta de autores que estiveram ligados a instituições públicas, da Corte às Universidades e aos conventos e mosteiros. Quase todos tiveram relações intensas com o estrangeiro, desde visitas a aprendizagens, residência ou mesmo profissão exercida noutros países, noutras universidades. Os centros de estudo em Portugal onde muitas destas obras se iniciaram ou escreveram têm todos relações estreitas com as instituições europeias, recebem visitantes e professores, têm até actividades em comum. Um grande número destes autores teve dificuldades e aborrecimentos políticos: emigração forçada, exílio temporário ou definitivo, prisão por delito de pensamento, perseguição politica ou religiosa, “desfavor” real e político, ostracismo ou saneamento. Quantos destes livros não tiveram um período mais ou menos longo de proibição ou de censura? Ou então de ignorância e esquecimento?
A observação deste breve inventário, em paralelo com a recordação de outros nomes aqui em falta e de outros períodos da história, sugere uma especulação: a de que o avanço das letras, das artes, das ciências e das humanidades, em Portugal, foi função do incentivo público, por um lado, e sobretudo da liberdade, por outro. Os atrasos, ao invés, ficaram a dever-se a perseguições, despotismo e censuras que, de modo recorrente, caracterizaram longos períodos da nossa história. Valerá a pena lembrar que em Portugal se perseguiram, calaram, censuraram, aprisionaram, baniram ou proibiram sucessivamente os Muçulmanos, os Judeus, os Protestantes, os Jesuítas, as Ordens religiosas, os republicanos, os sacerdotes, os democratas, os comunistas, os socialistas e os capitalistas… É difícil, nestas condições, assegurar e garantir as liberdades de criação, de investigação e de expressão, tão necessárias ao desenvolvimento da ciência e da cultura. Esta colecção contraria esta tendência para a ocultação e o esquecimento. Por isso é bem vinda!
Lisboa 12 de Setembro de 2017
António Barreto
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1 comentário:
Que cheiro a mofo...
MR
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