Ficha biográfica de um dos cientistas menos conhecidos mas ao mesmo tempo mais fascinante da história contemporânea da ciência:
Nicolaas
(Nicolau) Johannes Maria van Uden nasceu na cidade de Venlo, na Holanda, a 5 de
março de 1921, filho de Adrianus van Uden, oficial das forças armadas
holandesas, e de Cornelia Antonia Baaijens (OCHOA, 2011, pp. 197-200).
Depois
de terminar o liceu, com notas muito altas, na sua cidade natal, Nicolau
ingressou na Universidade de Viena, onde viria a concluir a licenciatura de medicina.
Durante este período, iniciou a prática de investigação científica num
laboratório de dermatologia, com base na qual publicou artigos sobre agentes
patogénicos humanos e animais, com especial ênfase no agente causador da
sífilis (OCHOA, 2011, pp. 197-200; PEINADO e LEÃO, 2012, pp. 556-557).
Foi na capital
austríaca que, em 1945, conheceu D. Maria Adelaide de Bragança, a infanta portuguesa
que era neta paterna de D.
Miguel I, que foi rei de Portugal de 1828 a 1834. Nicolau e D. Maria Adelaide conheceram-se num hospital
de campanha, onde ambos tratavam feridos no final da Segunda Guerra Mundial. Ele
ter-lhe-á perguntado o nome e ela terá respondido «Maria Adelaide. E o senhor
doutor, como se chama?». A resposta não se fez esperar: «Não me chame doutor,
que não sou médico, sou só estudante de medicina. Faltam-me algumas cadeiras
para terminar o curso. E chamo-me Nicolaas, Nicolaas van Uden». Posto isto, D.
Maria Adelaide, que tinha já concluído a sua primeira formação em Assistência
Social, terá acrescentado: «A mim falta-me uma cadeira para terminar o curso de
enfermagem» (OCHOA, 2011, p. 195). Ambos comungavam do desejo de irem para
África, com o intuito de prestar apoio social e médico às populações daquele
continente, em particular em Moçambique. Depois de perceberem que se tratava de
uma finalidade partilhada pelos dois, decidiram unir-se pelo casamento pela
Igreja. Depois de D. Maria Adelaide ter obtido a concordância do irmão, D.
Duarte de Bragança, então chefe da casa real portuguesa, e da irmã, D. Filipa, viriam
a casar-se, embora de forma clandestina, em meados do mesmo ano (OCHOA, 2011,
p. 199). Este primeiro enlace contou com
uma única testemunha, o padre jesuíta, amigo do irmão de D. Maria Adelaide,
que ceelbrou o enlace. Viriam a casar mais tarde pelo registo civil. Ainda
posteriormente, casaram-se oficialmente pela Igreja, tendo agora por testemunhas
não só o padre, mas também dois amigos (OCHOA, 2011, p. 200).
Quando
D. Maria Adelaide ficou grávida pela primeira vez, ainda em 1945, o casal achou
que estava na altura de sair da Áustria, mudando-se para a casa de D. Duarte,
na Suíça. Adriano, o primeiro filho do casal, nasceu a 9 de Abril de 1946.
Passado algum tempo, optaram por regressar a Viena, uma vez que van Uden tinha
ainda de terminar o curso de medicina. Foi aí que nasceu o segundo filho, Nuno,
a 2 de setembro de 1947 (OCHOA, 2011, pp. 200-204).
Quando a
Assembleia Nacional portuguesa verificou a ilegalidade da lei do exílio que
ditara a saída do país de D. Miguel I (motivo pelo qual D. Maria Adelaide se
encontrava em Viena), o casal começou a considerar a hipótese de se mudar para
o país da infanta. Assim que o governo português autorizou o regresso da
família, e depois de Nicolau van Uden ter concluído o curso de medicina, o casal
viajou, juntamente com os dois filhos, da ÁUSTRIA para a Holanda, reunindo-se
com a família do jovem médico. Em 1948, o casal resolveu, por fim, mudar-se
para Portugal (OCHOA, 2011, p. 204).
Os
primeiros tempos no nosso país não foram fáceis para a família Bragança-van
Uden. Quando chegaram, o casal e os dois filhos foram viver para uma casa em
Serpins, que Caetano Beirão, amigo da família de D. Maria Adelaide, emprestara
à irmã desta, D. Filipa. No ano seguinte, em 1949, a família Bragança van Uden
mudou-se para a Quinta do Carmo, em
Murfacém, freguesia da Trafaria, concelho de Almada, que lhe foi emprestada por
Francisco Quintela, que viria a ser padrinho do seu terceiro filho, Francisco,
nascido a 8 de setembro desse ano. Como permaneceram aqui até 1962, esta casa
serviu de lar também aos outros três filhos do casal: Filipa nasceu a 22 de
junho de 1951, Miguel a 31 de julho de 1953, e Maria Teresa a 24 de junho de
1956 (OCHOA, 2011, pp. 209-228).
Enquanto
D. Maria Adelaide trabalhava como assistente social em Almada, tornando-se
diretora da Fundação de Assistência D. Nuno Álvares Pereira, Nicolaas van Uden
tratava, de forma gratuita, as pessoas com tuberculose. Além disso, durante os
primeiros dois anos no nosso país, passou muito tempo com um dermatólogo do Instituto
Português de Oncologia. Duas vezes por semana, estava também com o Professor
Aldo Castellani, investigador num laboratório do Instituto de Higiene e
Medicina Tropical, onde Niculau van Uden tinha de manter a coleção de culturas
e ajudar nos isolamentos. Durante esste período, desenvolveu um estudo sobre as
pulgas em humanos (LOPES, 1998; OCHOA, 2011, p. 219).
Uma vez
que o diploma do curso de medicina que van Uden tinha concluído na Universidade
de Viena não era reconhecido em Portugal, o marido da infanta viu-se obrigado a
completar uma nova licenciatura. Com uma inteligência acima da média e senhor
de interesses vários, rapidamente passou a dominar a língua portuguesa,
tendo-se especializado primeiro em medicina tropical e mais tarde em
dermatologia (OCHOA, 2011, p. 211).
Em 1950,
foi convidado pelo micólogo Pinto Lopes para iniciar uma secção de micologia
médica como parte do Departamento de Micologia do Instituto de Botânica da Faculdade
de Ciências da Universidade de Lisboa. A investigação aqui produzida levou à identificação
de dezenas de novas espécies de leveduras e à publicação de vários artigos
científicos. Em 1952, van Uden iniciou a Coleção Portuguesa de Cultura de
Leveduras, hoje denominada Coleção Portuguesa de Cultura de Leveduras Nicolau
van Uden e Isabel Spencer Martins e conhecida internacionalmente por Portuguese
Yeast Culture Collection (PYCC) (LOPES, 1998; CALADO, 2007, p. 166).
Um marco
da história de Portugal que muito influenciou a vida de van Uden foi a criação
da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1956. Foi esta instituição que cofinanciou
uma sua viagem aos Estados Unidos, em 1959, a convite da Academia das Ciências
de Nova Iorque, e uma outra viagem a
Moçambique, onde permaneceu nove meses, dedicando-se ao levantamento de doenças
e à vacinação de pessoas. Em 1962, deslocou-se ao Canadá, a propósito do VIII
International Congress of Microbiology. Nos dois países norte-americanos,
contactou com várias técnicas de oceanografia biológica e limnologia. Por esta
altura, van Uden passou a ser conhecido como um especialista em três áreas:
taxonomia de leveduras, micologia médica e veterinária, e microbiologia marinha
(LOPES, 1998).
O Instituto
Gulbenkian de Ciência (IGC), fundado em 1961, e inaugurado em 1965 em Oeiras, criou
o Centro de Estudos Biológicos (mais tarde designado por Centro de Biologia), em 1962, que foi fisicamente integrado em
Oeiras entre 1964 e 1966, embora apenas tenha sido inaugurado em 1967. Este
centro era composto por quatro laboratórios: microbiologia, farmacologia, fisiologia
e biologia celular. Na época assistente do Flávio Resende, professor na
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, van Uden foi convidado para
diretor do primeiro destes laboratórios, o qual, aquando da reestruturação do
IGC, entre 1974 e 1975, se passou a designar por Grupo de Microbiologia (CALADO,
2007, pp. 148-165; LOPES, 1998).
Através
da investigação científica levada a cabo por si e pelos seus colaboradores, van
Uden foi um dos responsáveis pela emergência da biologia experimental moderna em
Portugal, que se deu em Oeiras. É também a ele que se deve a introdução da
genética e da biologia molecular no nosso país, uma vez que foi ele quem
convidou o biólogo e padre jesuíta Luís Archer para dar um curso de
pós-graduação nestas áreas, em 1968, no IGC.
Em 1969,
van Uden iniciou um programa internacional de cursos monográficos intensivos de
pós-graduação, que sempre dirigiu, e que viria a influenciar o rumo da ciência
e do ensino no nosso país: os Estudos Avançados de Oeiras (EAO). Em cada verão,
eram ministrados entre quatro a seis cursos (por vezes até oito), em várias
áreas da biologia moderna, cada um com a duração média de três a seis semanas (LOPES,
1998; CALADO, 2007, p. 164; OCHOA, 2011, p. 232); PEINADO e LEÃO, 2012, pp.
556-558).
Para a sua
lecionação eram convidados não só cientistas nacionais como também, e
sobretudo, estrangeiros (principalmente do Reino Unido, dos Estados Unidos e da
Holanda), reconhecidos internacionalmente como especialistas nas áreas científicas
dos cursos. Os alunos que frequentavam estes cursos eram já licenciados, muitos
dos quais jovens professores em várias universidades, nacionais e estrangeiras
(sobretudo de Espanha, Brasil e Arménia). Foi assim que novos métodos de
investigação científica e de ensino foram sendo introduzidos, na área das
ciências da vida, em várias instituições de ensino superior do nosso e de
outros países (CALADO, 2007. P. 165).
No final
de 1974, van Uden defendeu a sua tese de doutoramento na Universidade de
Coimbra, em genética molecular. Depois disso, obteve a nacionalidade portuguesa
e chegou a professor agregado em microbiologia da Universidade Nova de Lisboa.
Em 1979, tornou-se o primeiro professor catedrático em microbiologia nessa
instituição. Na década de 1980, foi criado o Departamento de Ensino do IGC, que
foi sempre dirigido por ele, e sob a alçada do qual estavam os EAO, o Mestrado
em Biotecnologia (em colaboração com instituições de ensino superior) e os
cursos da UNESCO (intitulados Long-Term Postgraduate Training Courses in Basic
Science for Biotechnology) (CALADO, 2007, p. 167; OCHOA, 2011, p. 244; PEINADO
e LEÃO, 2012, p. 556).
Nicolau
van Uden, conhecido como Nico entre os seus muitos amigos e tratado por
“doutor” pelos seus tantos discípulos mesmo antes de o ser formalmente,
suicidou-se, no seu laboratório, a 5 de fevereiro de 1991, poucos dias antes
de completar 70 anos, quando se deveria jubilar.
Ao longo da sua vida, caracterizada pela sua constante
disciplina e exigência, editou um livro, escreveu 21 revisões e capítulos de
livros, publicou mais de 120 artigos científicos, pertenceu aos quadros
editoriais de várias revistas científicas, e representou Portugal nos concílios
e painéis da NATO, União Europeia, Federação Europeia de Biotecnologia, União
Internacional de Sociedades Microbiológicas, e Academias de Ciência dos Estados
Unidos (CALADO, 2007, p. 167; OCHOA, 2011, pp. 232-249; PEINADO e LEÃO, 2012,
pp. 556-559).
Doutor
Honoris Causa pela Universidade do Estado Livre de Orange, na África do Sul,
van Uden era sócio honorário da Sociedade Portuguesa de Bioquímica e das
Sociedades Espanholas de Microbiologia e Bioquímica. Em 1992, a Universidade de
Coimbra, por iniciativa de Arsélio Pato de Carvalho, um dos primeiros
professores dos EAO, instituiu as
Conferências van Uden, entretanto descontinuadas. No ano seguinte, a Sociedade
Portuguesa de Microbiologia criou, em homenagem ao cientista luso-holandês, as
Jornadas de Biologia de Leveduras Prof. Nicolau van Uden. Em 2011, esta mesma
sociedade instituiu o Prémio Professor Nicolau van Uden (OCHOA, 2011, p. 232;
PEINADO e LEÃO, 2012, pp. 556-559).
A viúva de van Uden, Maria Adelaide
de Bragança, sobreviveu longos anos ao seu marido. Faleceu em Almada em 2012, com
a bonita idade de cem anos.
Richard Marques e Carlos Fiolhais
Referências
bibliográficas
CALADO, Jorge, “Ciência”, in
BARRETO, António, (coord.), Fundação
Calouste Gulbenkian: Cinquenta anos: 1956-2006, vol. II, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2007, pp. 99-203.
LOPES, Amândio Madeira, “Van
Uden por ele próprio”, 1998.
OCHOA, Raquel, A Infanta Rebelde,
4.ª ed., Lisboa, Oficina do Livro, 2011.
PEINADO, José Martínez, e LEÃO,
Cecília, “Nicolau van Uden, a Life with Yeasts (1921-1991)”, in Revista IBBMB Life, vol. 64, n.º 4, 2012, pp.
556-560.
1 comentário:
Maravilhoso relato de uma vida dedicada a microbiologia, um cientista nato
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