Meu artigo saído na revista Fátima XXI, sobre o "milagre do Sol" em Fátima em 12/10/1917:
Na linguagem da teologia, milagre é “um evento extraordinário, perceptível pelos sentidos, produzido por Deus num contexto religioso como sinal do sobrenatural” [1]. Extraordinário significa evento muito improvável ou mesmo impossível do ponto de vista do nosso conhecimento do mundo. Para a Igreja Católica a ênfase deve ser colocada no contexto religioso, o qual tem de conduzir à conclusão de que se tratou de um “sinal de Deus”. É claro que, para os crentes, muitos poderão ser esses sinais, ao passo que, para os não crentes, eles não existem.
Sabemos hoje que o mundo é regulado por leis naturais, por exemplo a 2.ª Lei do Movimento e a Lei de Gravitação Universal, as duas de Newton, que descrevem a queda de um corpo para a Terra ou o movimento da Terra em torno do Sol. Julgo que é hoje consensual a ideia de que não existem milagres no sentido de interrupção local e temporária das leis naturais. A teologia moderna evita colocar Deus, ou a Virgem Maria, no papel de um mago que faz uns passes de mágica de tempos a tempos em certos sítios da Terra, contrariando as leis científicas, por exemplo desligando a gravidade. Em vez disso, entende por “milagre” uma interpretação de sinais incomuns que podem servir ao crente para o fortalecimento da sua fé (ou, porventura, para converter o não crente). Newton, o autor da ideia do mundo como uma “máquina mecânica” (uma ideia que em muitos aspectos está hoje ultrapassada), acreditava num Deus Criador capaz de realizar milagres. Assim, Newton, que considerava que Deus intervinha de vez em quando no mundo, por exemplo para prevenir choques astronómicos. Esta ideia de um “Deus diligente” que emenda a Sua obra foi contrariada por Leibniz, dando azo a uma grande polémica científico-teológica de sempre (ciência e teologia estavam nessa época sobrepostas) [2]. Para Leibniz Deus era perfeito, não podendo por isso contrariar a Sua obra. Contudo, esta concepção de um “Deus preguiçoso”, indiferente ao que se passava no mundo, não estava isenta de críticas, pois conduzia à ideia, para alguns herética, de um mundo sem Deus.
A ideia de um Deus “tapa-buracos”, i.e., a ideia de que, sempre que se desconhecia a causa de algum fenómeno natural, este era considerado sobrenatural, foi dominante ao longo da história da Cristandade. No entanto, à medida que a ciência foi avançando, foram-se descobrindo causas naturais para uma grande variedade de fenómenos. Os “actos de Deus”, como se dizia nas antigas apólices de seguros, passaram a ter explicações naturais: os relâmpagos são descargas eléctricas entre nuvens, podendo saber-se com elevada probabilidade onde e quando vão ocorrer trovoadas. Os terramotos devem-se a tensões em placas tectónicas, embora ainda não possam ser previstos com precisão.
A ciência tem o seu domínio de aplicação, para a qual desenvolveu um método próprio, baseado na observação, na experiência e na razão, e a religião tem um outro domínio e outro método, assente sobretudo na fé. A sua coexistência é viável se não competirem no mesmo território. Na expressão do biólogo Stephen Jay Gould ciência e religião são dois “magistérios que se não sobrepõem” [3]. A ciência reconhece a sua ignorância a respeito de um certo número de fenómenos. No entanto, acredita que vai saber mais. Certos fenómenos são hoje inexplicáveis à luz da ciência, mas isso não significa necessariamente falhas nas leis físicas. Pode acontecer que haja factores desconhecidos.
Os físicos gostam de fenómenos estranhos porque sabem que eles poderão propiciar ou confirmar teorias mais abrangentes. O critério de validação de uma teoria será sempre a sua concordância com as observações ou experiências. Por exemplo, o eclipse do Sol que teve lugar em 27/5/1919 na ilha do Príncipe levou à mudança do paradigma newtoniano da gravitação universal com base numa força exercida num espaço geometricamente rígido em favor da teoria da relatividade geral de Einstein, segundo a qual a força de gravidade é uma distorção da geometria do espaço-tempo causada pela presença da matéria e energia. Os raios de luz de estrelas por detrás do Sol eram encurvados pela presença deste. A teoria de Einstein, que mantém a de Newton num certo limite, superou-a por ter passado a descrever factos novos. A ciência é cumulativa.
A discussão sobre milagres é um clássico na tensão histórica entre ciência e religião. Existe um enorme manancial de literatura sobre o assunto. Duas discussões recentes em português com intenção pedagógica encontram-se em [4] e [5]. O primeiro tem um capítulo sobre as aparições de Fátima, no qual os autores, um jesuíta e um químico, lembram que elas não são um dogma da fé católica, i.e., que se pode ser católico sem acreditar nessas aparições. Sobre os milagres em geral, diz que, “como acontecimentos extraordinários e inexplicáveis que excitam a curiosidade dos fieis, não constituem uma parte fundamental do cristianismo”. No segundo, um diálogo entre dois físicos, um jesuíta e um ateu, o jesuíta, interpelado sobre o tema dos milagres, defende que existem eventos sobrenaturais, que a fé leva a aceitar, embora reconheça ser perigosa a ideia de um “Deus tapa-buracos”.
Presidindo o Sol à vida humana é natural que esse astro tenha sido, ao longo da história da Igreja, associado a milagres. Um dos mais conhecidos é o milagre de Josué, no qual Josué pede a Deus para parar o Sol no meio de uma luta do povo judeu contra os seus inimigos (Josué 10: 12-13). A teologia reconhece hoje que a Bíblia não deve ser interpretada à letra, e ninguém acredita que se trate de um relato real, i.e., que o Sol tenha parado o seu movimento aparente, consequência do movimento da Terra em volta do Sol (o que sabemos desde Copérnico, que era católico). É curioso referir que o matemático Pedro Nunes, que discutiu mas não aceitou a tese de Copérnico, trabalhou num problema que é o retrocesso da sombra de um gnomo em certos lugares e tempos. Por muito estranho que pareça, este fenómeno (o “milagre de Acaz”, Isaías 38) verifica-se mesmo e, segundo Henrique Leitão, trata-se de uma das primeiras previsões astronómicas bem sucedidas [6]. Um fenómeno que parecia anti-natural era afinal natural.
É bem conhecida a defesa que Galileu fez de Copérnico e os problemas que isso lhe trouxe com a Inquisição. O caso culminou com a condenação do sábio, uma sentença que foi revogada pela decisão tomada em 1992 pelo papa João Paulo II ao reconhecer erros no processo. Repare-se que a imobilidade do Sol defendida por Galileu corresponde num certo sentido à vulgarização do milagre de Josué: pois se o Sol estar parado tinha sido um milagre, o Sol continuamente parado era um milagre permanente. Longe vão os tempos em que ciência e religião se digladiavam. Hoje são consideradas duas dimensões diferentes mas compatíveis do ser humano. Não obstante existem ainda situações nas quais existe ou parece existir um confronto. Os milagres são exemplos desse tipo de situações. Analisarei aqui à luz da ciência o “milagre do Sol”, testemunhado por numerosas pessoas na Cova de Iria em 13/10/1917, deixando de lado interpretações teológicas, históricas, sociais, etc. do evento (ver e.g. [7]). Embora relacionadas com o “milagre” não vou discutir as aparições aos pastorinhos. ´
Um dos testemunhos mais relevantes e sugestivos, que costuma ser citado nesta contexto, é o do jornalista Avelino Almeida (1873-1932), que esteve em Fátima em 13/10/2017 e que escreveu, primeiro n’O Século e depois na Ilustração Portuguesa, dois artigos relatando o que viu [8, pp. 72 e 113]. Como Almeida não era crente, o seu relato foi valorizado pelos crentes. Uma outra fonte credível é o advogado José Maria de Almeida Garrett (1882-1957), [8, p. 149], este crente. Ele é muitas vezes confundido com o seu pai, Gonçalo de Almeida Garrett (1841-1925), professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Acresce que o pai se pronunciou várias vezes sobre os “milagres do Sol”, embora tudo indique que ele não assistiu ao “milagre do Sol”, limitando-ae a aceitar como bons os relatos do filho e da esposa, que lá estiveram.
Depois de sumariar estes dois testemunhos, discutirei o “milagre do Sol”, um momento culminante das aparições de Fátima. A pastorinha Lúcia dos Santos, então com dez anos, tinha pedido um milagre a Nossa Senhora numa aparição anterior como garantia da autenticidade da presença sobrenatural e, em Julho, anunciou que esse pedido tinha sido atendido: haveria um “sinal” a 13/10, embora não tenha indicado de que se trataria. A esperança num milagre é um fenómeno da fé. Não penso que a ciência tenha alguma coisa a dizer sobre fé, uma vez que desde Galileu que ciência e fé estão separadas, embora possam coexistir no mesmo indivíduo. Para Galileu o ser humano que era capaz de ter uma atitude científica sobre o mundo era o mesmo que podia acreditar em Deus. Escreveu [9]: “Eu não me sinto obrigado a acreditar que o mesmo Deus que nos dotou com os sentidos, a razão e o intelecto, pretenda que renunciemos à sua utilização para nos dar por outros meios conhecimento que podemos alcançar por eles.” Usemos “os sentidos, a razão e o intelecto”. Há duas posições em forte contraste. A dos crentes, que não têm em geral dúvidas sobre a autenticidade dos milagres, e a dos descrentes, que têm dificuldades em aceitar excepções locais e temporárias às leis naturais. Mas esta divisão não é nítida, pois há pessoas com fé que também não acreditam em milagres na acepção indicada. O primeiro sector realça os depoimentos de descrentes ou de cientistas (são grupos diferentes, pois há inúmeros descrentes que não são cientistas assim como há cientistas que são crentes). De facto, alguns crentes com formação científica, designadamente em Física, discutiram o milagre de Fátima. Destacou-se padre beneditino Stanley Jaki (1924-2009), doutorado em Física e Teologia e professor da Universidade de Seton Hall, nos EUA, que, depois de ter estudado o milagre, concluiu que tudo o que se passou naquele dia em Fátima tem causas naturais. Acrescentou, porém, que era inexplicável e, portanto, milagrosa a previsão feita por Lúcia de que ia ocorrer um milagre [10]. Por outro lado, os não crentes concordam com o P. Jaki que não ocorreu nada de verdadeiramente extraordinário em Fátima, mas não valorizam a previsão, tomando-a como fortuitas. O que se passou então em Fátima a 13/10/1917? Meteorologicamente uma conjugação particular, com o Sol a aparecer no fim de uma chuvada, estando muita gente a olhar fixamente para o Sol, na esperança de avistar algo estranho. Essa situação conduz a impressões da retina, diversas conforme os indivíduos, que podem ser consideradas percepções alteradas da realidade. Auguste Meessen, professor de Física da Universidade Católica de Lovaina, enfatiza estas alterações da visão, tendo ele próprio realizado experiências de observação de objectos brilhantes [11]. Vejamos primeiro os depoimentos mais esclarecidos da época e depois as discussões mais recentes de base científica, para finalmente expor conclusões. O que se passou em Fátima a 13/10/1917?
Até porque existem numerosos testemunhos, é fácil fazer um relato do “milagre do Sol”. Reuniu-se na Cova de Iria um grupo entre 30 a 70.000 pessoas, a grande maioria populares atraídas pelo anúncio de uma nova aparição e de um milagre. A manifestação divina era esperada para o meio-dia. Pouco depois do meio-dia solar parou a chuva intensa que tinha empapado as pessoas e o terreno. Então o Sol apareceu a muitos como um disco opaco com um aspecto prateado para o qual se podia olhar sem dificuldade, tendo à sua volta um anel circular, tal como num eclipse anular. Depois pareceu a um grande número de pessoas que olhavam o Sol que este se tornou mais brilhante do que o normal rodando, segundo alguns, como numa roda de “fogo de artifício”, fenómeno que foi acompanhado pelo aparecimento de várias cores (que diferiam conforme os espectadores), reflectidas na paisagem e nas pessoas. O Sol pareceu a certa altura aproximar-se da Terra para logo depois recuar. Na linguagem dos aldeões “bailou”. O fenómeno que teve algumas pausas terá durado o máximo de dez minutos. Perante a suposta aproximação do Sol, muita gente teve medo, pensando tratar-se do fim do mundo. Puseram-se de joelhos a rezar, pedindo perdão dos pecados. O evento, cuja notícia logo circulou pelo país intensificando a fama de Fátima, foi oficialmente aceite como um milagre pela Igreja Católica em 13/10/1930.
Entre os testemunhos mais credíveis, figura o de Avelino de Almeida, que publicou n’O Século a 15/10 com destaque de primeira página uma peça, com fotos de Judah Ruah [8, p.72]. Destaco um excerto:
“A manifestação miraculosa, o sinal visível anunciado está prestes a produzir-se – asseguram muitos romeiros… E assiste-se então a um espectáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele. Do cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se conservam muitas centenas de pessoas, a quem escasseou valor para se meter à terra barrenta, vê-se toda a imensa multidão voltar-se para o sol, que se mostra liberto de nuvens, no zénite. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se realizando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar: – Milagre, milagre! Maravilha, maravilha! Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o Sol tremeu, o Sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas – o Sol «bailou», segundo a típica expressão dos camponeses.”
Como se vê, não há aqui observação própria do Sol, mas tão só a observação da reacção da multidão. Contudo, na Ilustração Portuguesa de 29/10 [8, p. 113], o mesmo autor já reclama a visão do milagre:
“E, quando já não imaginava que via alguma coisa mais impressionante do que essa rumorosa mas pacífica multidão animada pela mesma obsessiva ideia e movida pelo mesmo poderoso anseio, que vi eu ainda de verdadeiramente estranho na charneca de Fátima? A chuva, à hora pré-anunciada, deixa de cair; a densa massa de nuvens romper-se e o astro-rei – disco de prata fosca – em pleno zénite aparecer e começar dançando num bailado violento e convulso, que grande número de pessoas imaginava ser uma dança serpentina, tão belas e rutilantes cores revestiu sucessivamente a superfície solar... Milagre, como gritava o povo; fenómeno natural, como dizem sábios? Não curo agora sabê-lo, mas apenas de te afirmar o que vi... O resto é com a Ciência e com a Igreja...”
Este depoimento impressiona. Fica, porém, a dúvida por que razão da segunda ele vez foi mais categórico quanto à sua observação do que a da primeira. Eu esperaria que a primeira reacção fosse a mais forte.
Outro depoimento importante, igualmente abonatório do “milagre”, foi o de José Maria de Almeida Garrett, então um jovem formado em Direito na Universidade de Coimbra [8, p. 149]:
“A abóbada celeste esneviada de cirros, tendo frestas de azul aqui e acolá, mas o sol algumas vezes se destacou em rasgões de céu limpo. As nuvens que corriam ligeiras de poente para oriente não empanavam a luz (que não feria) do Sol dando a impressão facilmente compreensível e explicável de passar por detrás, mas, por vezes, esses flocos, que vinham brancos, pareciam tomar, deslizando ante o sol, uma tonalidade rosa ou azul diáfana. Maravilhoso é que, durante longo tempo, se pudesse fixar o astro, labareda de luz e brasa de calor, sem uma dor nos olhos e sem um deslumbramento na retina, que cegasse. Este fenómeno com duas breves interrupções em que o sol bravio arremessou os seus raios mais coruscantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos. Este disco nacarado tinha a vertigem do movimento. Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada. De repente ouve-se um clamor como que um grito de angústia de todo aquele povo. O Sol, conservando a celeridade da sua rotação, destaca-se do firmamento e sanguíneo avança sobre a terra ameaçando esmagar-nos com o peso da sua ígnea e ingente mó. São segundos de impressão terrífica. Durante o acidente solar, que detalhadamente tenho vindo a descrever, houve na atmosfera coloridos cambiantes.”xxxx O pai, o Professor Gonçalo de Almeida Garrett, sobrinho do escritor Almeida Garrett, também escreveu sobre o fenómeno. Começou por responder ao P. Manuel Formigão (1883-1958), que investigava os eventos de Fátima e tinha colocado à Sr.ª Almeida Garrett questões sobre o que ela tinha visto em Fátima com o filho (pode-se hoje estranhar que fosse o marido a responder, mas nesse tempo o papel da mulher era bem diferente) [8, p. 146]. O professor não deve ter estado em Fátima, uma vez que enumera os acontecimentos de um modo neutro pedindo no fim ao destinatário, que lá esteve, para os confirmar. Não dá um relato pessoal, o que seria de esperar de um professor de Astronomia. Preocupava-o sobretudo não tanto com o Sol e a meteorologia mas mais uma coluna de fumo perto dos pastorinhos, pedindo para tal ser investigado. O lente escreve:
“O Sol é incomparavelmente maior do que a Terra, o qual tem um movimento próprio de rotação demorado, e não é feito em poucos momentos ou minutos por 3 vezes. Respondendo a V. Ex.ª direi que não considero os fenómenos vistos e observados no sol, como astronómicos do sol propriamente dito, mas sim meteorológicos da atmosfera da Terra sobre a imagem solar, quanto à cor e aspecto do brilho semelhante à Lua, e também quanto à vista da rotação. É muitíssimo para reter à hora do meio dia, perto do zénite, na qual os fenómenos meteorológicos têm menos intensidade sobre o sol. (...) Considero miraculosas também manifestações extraordinárias do Sol no dia 13 ao meio dia. Mas convém arranjar testemunhas oculares que mostrem ou digam as diferenças grandes das manifestações de 13 e as tais que todos agora querem ver e não viam até agora.”Portanto, para o cientista, tratava-se de um evento meteorológico invulgar que podia ser considerado milagroso. Foi ele que sugeriu que fosse recolhido o depoimento do seu filho.
Uma aspecto importante é a inexistência de fotografias do Sol, que podiam ter sido feitas por grandes fotógrafos como Judah e Benoliel, que estiveram presentes. As suas fotos mostram a multidão a olhar fixamente para o céu. Mas não há fotos do Sol. Teria sido fácil para qualquer um dos fotógrafos ter obtido imagens do Sol. Existe uma imagem do “milagre do Sol” na Internet [12], mas não é verídica, uma vez que mostra o Sol no horizonte e não no zénite, ou meio dia solar. Esta falta prejudica as tentativas de interpretação do fenómeno. A teóloga americana, professora do Brooklyn College de Nova Iorque, Lisa Schwebel também observa que não há uma foto autêntica do fenómeno solar, "apesar da presença de centenas de repórteres e fotógrafos no campo" [13].
Um outro aspecto é que não há a certeza sobre a sua visibilidade noutros sítios, que tem sido referida. Um dos relatos é de uma criança de dez anos, mais tarde padre, na localidade vizinha de Alburitel, e outra é do escritor, residente em S. Pedro de Muel, Afonso Lopes Vieira (1878-1946), que é dado como convertido após ter avistado o “milagre do Sol” de sua casa [14]. De facto, o testemunho dele é indirecto, sendo estranho que um escritor que se tenha convertido devido a um “milagre” não tenha escrito sobre a sua experiência.
Almeida Garrett pai tem razão quanto à impossibilidade de um evento astronómico. Nenhum observatório astronómico dos muitos existentes em Portugal e no mundo registou qualquer acontecimento anómalo nesse dia. Mais: nenhum habitante da Terra longe de Fátima testemunhou algo de semelhante nesse dia. Isso exclui qualquer falha das leis de Newton que regulam o movimento da Terra em volta do Sol. O mais provável é ter havido um fenómeno meteorológico: por exemplo, efeito de lente de nuvens ou efeito de refracção em cristais de gelo nas nuvens (cirros, notou Almeida Garrett filho). Mas, uma vez que muitas pessoas olharam fixamente e durante minutos para o Sol, é certo que houve visões necessariamente com uma componente subjectiva. É muito provável que tenham ocorrido em simultâneo as duas circunstâncias; condições meteorológicas particulares e formação de imagens após fixação do Sol, num quadro que era de grande ansiedade perante a realização de um milagre por parte de uma multidão esmagadoramente crédula.
Não há por isso qualquer prova de violação das leis naturais, seja da astronomia, seja da meteorologia, seja da óptica. De acordo com Schwebel as pretensões do milagre enfrentam uma série de dificuldades. Afirma: "não só todos os presentes não viram o fenómeno, mas também há inconsistências consideráveis entre as testemunhas quanto ao que viram" [13]. Houve pessoas que não viram nada de especial como o padre Formigão.
Segundo alguns autores, em Fátima teria havido um fenómeno OVNI [15]. Em minha opinião, nada há em defesa desta hipótese assim como pouco há em defesa da visita à Terra de extraterrestres. Lembro as palavras do físico Richard Feynman em O Que é Uma Lei Física [16]: "A partir do meu conhecimento do mundo à minha volta, penso que é muito mais provável que os relatos de discos voadores sejam o resultado de características irracionais própria da inteligência terrestre do que de esforços racionais desconhecidos de inteligências extraterrestres."
A voz dos cépticos
(...)
Referências:
[1] http://www.encyclopedia.com/religion/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/miracles-theology
[2] A.
Koyré, Do mundo fechado ao universo
infinito, Lisboa: Gradiva, 2001.
[3] S. J. Gould, Rocks of Ages: Science and Religion
in the Fullness of Life, New York: Ballantine Books, 1999.
[4] A. Dinis e J. Paiva, Educação, Ciência e Religião, Lisboa:
Gradiva, 2010.
[5] B. Nobre e P. Lind, Dois
dedos de conversa sobre o dentro das coisas : um crente, um ateu e a verdade
como provocação. Braga: Frente e Verso, 2013.
[6] H.
Leitão, “Pedro Nunes e a Matemática do século XVI”, in C. Fiolhais, C. Simões e D. Martins (orgs.), História da Ciência Luso-Brasileira,
Coimbra: Imprensa da Universidade, 2013, p. 19.
[7] J. S. Bennett, Quando o Sol dançou. Fátima e Portugal, Mito e milagre e modernidade no
inívio do século XX, Lisboa, Guerra e Paz, 2017.
[8] Documentação Crítica de Fátima : Seleção de
Documentos (1917-1930), edição do Santuário de Fátima, www.fatima.pt/files/upload/fontes/F001_DCF_selecao.pdf
[9] G.
Galilei, Ciência e Fé, S. Paulo: Editora UNESP, 1998, 2.ª ed., 2009.
[10]
S. L. Jaki, A Mind’s Matter: An
intelectual Autobiography. Cambridge UK, William B. Ferdmans Publishing
Co., 2002, Cap. 13.
[11] A. Meessen, “Aparições
Marianas e ‘milagres do Sol’ ”, in F. Fernandes, J. Fernandes e R. Berenguel
(orgs.), Fátima e Ciência. Investigação Multidisciplinar
Experiências religiosas”, Lisboa: Ésquilo, 2003, p. 25-50.
[13]
L. J.
Schwebel. Apparitions, Healings, and Weeping Madonnas: Christianity and the
Paranormal, Mahwah NJ: Paulist Press, 2014.
[14] Costa Brochado, (1952) As Aparições de Fátima, Lisboa:
Portugália, 1952.
[15] F. d’Armada, O que se passou em Fátima
em 1917, Amadora: Bertrand, 1980; F. d’Armada e J. Fernandes. Intervenção
Extraterrestre em Fátima – as aparições e o fenómeno OVNI, idem, 1982.
[16] R.
Feynman, O que é uma Lei Fisica,
Lisboa: Gradiva, 2000.
(...)
3 comentários:
Se usarmos a cronologia própria de uma história da filosofia ocidental o milagre do Sol foi um fenómeno anacrónico. Ele deveria ter ocorrido na baixa Idade Média, mas, com o povo e a igreja católica desesperados e oprimidos pelos jacobinos do Partido Republicano, foi o melhor que se pôde arranjar como arma de resistência. Os numerosos santuários em honra de Nossa Senhora que apareceu a pastorinhos encontram-se por toda a parte do nosso território continental e insular e nas terras d`além mar descobertas e colonizadas pelos nossos antepassados. Fátima faz parte da mesma linha de aparições que servem para reforçar a fé do povo. O mandamento "Amai-vos uns outros" de Jesus é difícil de cumprir. O povo e a igreja gostam mais de festas e foguetórios, com sóis que rodam no céu e parecem mesmo que nos vão cair em cima da cabeça.
Tendo em conta o comentário do anónimo percebe-se porque Afonso Lopes Vieira não tivesse querido escrever sobre a sua conversão. Não estou seguro de ter lido que tenha havido conversão, mas reforço de uma fé preguiçosa, no caso do autor da letra do hino de Fátima. Mas o meu comentário vem mais sobre uma linha de investigação que nunca vi aberta: a das fotografias do sol. Ora é natural que os fotógrafos presentes tivessem as suas câmaras apontadas às pessoas. A pergunta que se impõem é: era possível à época pegar nas câmaras, como hoje fazemos, e apontá-las ao Sol, no pouco tempo que possa ter demorado o suposto milagre? Deixo a pergunta.
Ainda que tudo possa ter uma explicação científica do q se passou, como explicar o facto de 3 miúdos analfabetos terem previsto?! Coincidências ne
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