domingo, 15 de janeiro de 2017

MÁRIO SOARES E A CIÊNCIA



Agora que diminuiu o vendaval de artigos sobre Mário Soares, é curioso reparar que pouco se  falou sobre a sua relação com a ciência. Isso é natural pois Mário Soares era pela sua formação essencialmente um homem de Letras e nos seus governos a ciência em Portugal, em períodos económicos difíceis (1976-78 e 1983-85), era ainda bastante débil. A ciência só ganhou realmente estatuto governamental quando, em 1995, José Mariano Gago se tornou o primeiro ministro da ciência e tecnologia no primeiro governo de António Guterres. Mas, nas Presidências da República de Mário Soares (1986-1996), o Presidente da República, bem assessorado, dedicou alguma atenção à ciência.

Organizou na Fundação Gulbenkian entre 1987 e 1989. uma série de conferências intitulada "Balanço do Século", comissariada pelo filósofo Fernando Gil, que foi inaugurada pelo filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio (na impossibilidade da presença de Karl Popper, que só veio depois) e encerrada por Eduardo Lourenço. Além dos escritores e pensadores Mário Vargas Llosa e Umberto Eco, os filósofos  Norberto Bobbio,  Karl Popper e José-Luís Aranguren, apresentaram conferências cientistas como o matemático René Thom (medalha Fields), os químicos Manfred Eigen e  Iliya Prigogine (os dois Nobel da Química), o biólogo François Jacob, o antropólogo Marc Augé e os economistas Herbert Simon e  John Kenneth Galbraith. De todos estes nomes, só estão vivos Eduardo Lourenço, Mario Vargas Llosa, Manfred Eigen e Marc Augé.

Mário Soares escreveu no seu balanço do "Balanço do Século",  livro publicado pela Imprensa Nacional em 1990:

"Anoto meros tópicos. não me permito tirar ilações. E, no entanto, há uma que ressalta com evidente clareza: a extraordinária lição de espírito crítico e de humildade perante a soberba intelectual por vezes sugerida, aos espíritos menos preparados, pelos espantosos progressos da Ciência e da Tecnologia" Humildade crítica que é uma lição a tirar não só do domínio da Ciência como também da Política. Depois das certezas das políticas ditas científicas, que tanto mal e tanto sofrimento provocaram, insinuam-se, finalmente, as dúvidas, compreendendo-se melhor que as concepções políticas têm muito pouco de científico e que à arrogância das convicções devem sobrepor-se sempre o experimentalismo de soluções alternativas e o esforço de concertação entre interesses e opiniões divergentes. Este ensinamento, que o progresso do conhecimento científico confirma, veio trazer à política e à intervenção democrática, neste final de século, mais humildade, mas também, paradoxalmente, mais ambição. sabemos hoje quão fácil e cometer erros em política e nos enganarmos; em que medida precisamos sempre do concurso dos que de nós divergem, para corrigirmos erros e naturais insuficiências. Mas é isso, também, que nos torna mais ambiciosos, por, porque acreditamos que, em política não há soluções definitivas nem verdades absolutas. No final do milénio não acreditamos mais porventura no progresso necessário, alimento obrigatório dos misticismos revolucionários. Mas nem por isso deixámos de acreditar na possibilidade de progredir - o que representa a essência e ambição da Democracia."

Veja-se a influência que nele tem a filosofia de Popper: o progresso com base no erro tanto na ciência como na política. Mais adiante escreveu Soares:

"Temos vindo a acompanhar, atentamente, a evolução da nossa Comunidade Científica - buscando com ela um diálogo que, para mim, tem sido enormemente enriquecedor e a encorajar o seu peso crescente na sociedade e o reconhecimento da problemática que coloca, como essencial à definição de uma estratégia de desenvolvimento e modernização."

Em ligação com aquela iniciativa e em colaboração com a JNICT (onde José Mariano Gago esteve entre 1986 e 1989), Soares impulsionou uma outra iniciativa, realizada também num dos auditórios da Gulbenkian, "A Ciência como Cultura".  O livro, com este mesmo título, foi também publicado pela Imprensa Nacional (1992), com um instrumento do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, na capa. Participaram o físico José Mariano Gago (que falou sobre "Ciência e saber Comum", os filósofos Fernando Gil, Gilles Granger e Jean Petitot, a bióloga Maria de Sousa e o químico Sebastião Formosinho. O propósito do colóquio foi claramente definido por Soares no seu discurso inicial:

"A ideia de realizar este Colóquio nasceu da vontade política de contribuir para a criação, no nosso país, de uma consciência cada vez mais profunda, exigente e rigorosa do valor insubstituível da Ciência, no tempo presente, e do seu papel fundamental para a criação de uma nova mentalidade, imprescindível no lançamento de uma acção coerente e determinada, em favor do desenvolvimento de Portugal."

De novo, Soares relacionava a ciência com a cultura e com o desenvolvimento. Foi ele, numa fase final do seu mandato presidencial, que deu posse ao governo de Guterres onde José Mariano Gago foi ministro. Também para a comunidade científica nacional a morte de Mário Soares foi uma enorme perda.

2 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Professor Fiolhais, é evidente para todos que Mário Soares, não podia compreender a Obra de POPPER; não se esqueça que Mário Soares era um aluno de 10 e de 11, não dava mais!!! daí ser um exagero falar da influencia de POPPER em Mário Soares, quando para a compreensão de certas Obras é necessário um grau de inteligência acima da média, o que não era o caso. Também me parece que o senhor Professor Fiolhais, transmite a ideia, errada, do valor da personagem de Mário Soares em relação à Ciência e à Cultura, tão errada, quanto esta coisa absurda, de que a liberdade que hoje gozamos devêmo-la a Mário Soares!! Ora a liberdade mais não é que, como dizia Tolstoi, "Não alcançamos a liberdade buscando a liberdade, mas sim a verdade. A liberdade não é um fim, mas uma consequência." Pois bem, a Verdade, e diga-se a verdade, foi coisa que Mário Soares desprezou, os seus interesses colidiam com ela,... pode lá ele ser um libertador, um apaixonado pela ciência e pela cultura! evidentemente que Não! mas o Povo sabe isso, não sei é porque insistem (a falsa elite) no engano, em criar na pessoa as qualidades que ela justamente não tinha! enfim, cada um sabe dos seus interesses.


marina disse...

ora nem mais. Mário Soares era um homem vulgar em tudo , até na ganância.

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Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...