segunda-feira, 14 de abril de 2014

O Perfeito Diplomata e a "Realpolitik"


A pedido do DRN, e enviado por Eugénio Lisboa, publica-se mais este brilhante e cáustico texto, saído no Jornal de Letras, que nos traz à memória a ironia da pena de Eça:” O riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica:”            
                                                                                
“A palavra foi dada ao homem para disfarçar o seu pensamento”.
Talleyrand.

Tem-se, de longa data, tentado definir as qualidades e qualificações essenciais a um “perfeito diplomata” ou, sendo menos exigente, a um diplomata tão perfeito quanto possível. Ottavio Maggi, por exemplo, publicou, em 1596, uma tese intitulada De Legato, na qual defende que um enviado diplomático – ou, para o caso, um ministro dos negócios estrangeiros -  deveria ter formação teológica, conhecimento dos filósofos gregos e ser especialista nas ciências matemáticas, incluindo-se, nestas, a astronomia e a física; deveria, ainda, ser competente em direito, música e poesia e ser especialmente conhecedor de ciência militar; sem esquecer proficiência em grego, latim, francês, alemão, espanhol e turco; deveria, além disso, ser aristocrata, de nascimento, ser rico e bem-parecido.

Ora bem, eu não vou ao ponto de pensar que o nosso emérito Ministro dos Negócios Estrangeiros ou os nossos diplomatas de carreira acreditados por esse mundo fora tenham que satisfazer este exigentíssimo e bizantino caderno de encargos: teologia, astronomia, física, grego, turco – os deuses nos protejam: não, de modo nenhum!

Aristocrata, bem-parecido, não, decididamente, não! Os aristocratas deixaram de existir, no nosso país, desde o dia 18 de Outubro de 1910: temos, pois, queiramo-lo ou não, que viver sem eles, mesmo no aparatoso Palácio das Necessidades, ali ao Largo do Rilvas! E não é bem parecido quem quer, mesmo indivíduos com uma indiscutível e irresistível vocação para a arte de Richelieu ou de Talleyrand! O saber de Maquiavel não foi inventado para ser manipulado exclusivamente por borrachos! Valham-nos os deuses todos do Olimpo!

Eu aceito, perfeitamente, que o Dr. Rui Machete não saiba turco, não toque piano nem flauta, não seja conde e não componha, nas suas horas de lazer, um soneto bem boleado ou uma ode impetuosa. Até aceito que não seja um pêssego! Não será isso que fará dele um ministro menos astuto, menos eficaz, menos competente! E também acho que o desconhecimento do segundo princípio da Termodinâmica ou das Leis de Kepler não vai afectar, de maior, a inteligência matreira com que defenda, em prélios diplomáticos aquecidos, os interesses da lusa pátria! Não, não exijo nada disso! Vou mais longe, na minha descontracção curricular: não vejo grande necessidade de o Dr. Rui Machete se pôr a queimar as pestanas, em leituras tardiamente nocturnas, de calhamaços de teologia ou em aprofundamentos desnecessários de remotas filosofias gregas. Nem sequer me parece justo exigir ao actual detentor da pasta dos Estrangeiros a leitura empolgante dos relatos que Júlio César fez das suas campanhas na Gália ou o manuseamento de pedregulhos de estratégia militar, daqueles que saboreadamente devorava o inesquecível general Patton! Quanto a mim, o Dr. Rui Machete pode perfeitamente dispensar estes exercícios fatigantes e destruidores de energia anímica, cunhando uma frase de um político célebre.

Ao que o Dr. Rui Machete já não pode ou não deve furtar-se é ao estudo de uns quantos clássicos da diplomacia realpolitik sempre de útil maneio, em situações de entaladela difícil de gerir: Maquiavel, Richelieu, Talleyrand, Bismarch, Kissinger (Adolfo Hitler, se quiser, mas às escondidas, tendo o cuidado de não o citar!).

Muitos pensam que a realpolitik foi inventada por Bismark, o Chanceler de Ferro, que existiu e actuou muitas décadas antes da Dama de Ferro britânica. Mas não foi assim: o termo realpolitik foi cunhado pelo escritor e político alemão Ludwig von Rochau, em 1853, no seu livro de título deliciosamente comprido, à alemã: Grandsätze der Realpolitik angewendet nauf die strtlichen Zustände Deutschlands. Digo bem: o termo. Porque o conceito, em si, vem de longe e nem sequer começou com Talleyrand ou Richelieu. Eu diria que toda a diplomacia, com maior ou menor grau de subtileza, vive, alimenta-se de – é realpolitik. O termo, tal como foi inventado na Alemanha, até não quis ter um teor negativo por aí além: opõe “realismo”  (pragmatismo) a “idealismo”. Na realpolitik, engolem-se sapos (às vezes, elefantes), para se levar a nossa água ao nosso moinho. A ideia é fazer a outra parte engolir um sapo (ou um elefante) ainda maior. No exercício da realpolitik, mandam-se pela borda fora os princípios e a ética (manda-se, tenhamos fair-play, o mínimo possível deles, mas manda-se o que for necessário, para que os objectivos visados sejam atingidos). Os grandes mestres da realpolitik, como Richelieu ou Talleyrand disseram coisas afrontosas, porque isso fazia parte do seu “equipamento”. Talleyrand, por exemplo, não se acanhava muito para proferir coisas como esta: “No zelo, entram sempre três quartas partes de estupidez.” Isto não anda muito longe de outro aforismo dele: “Sobretudo, nada de zelo em excesso” (máxima muito útil quando se trabalha nos serviços públicos portugueses, onde o zelo é mal visto). Outro aforismo, também de Talleyrand, não menos “fresco”: “Uma mulher perdoará a um homem tentar seduzi-la, mas não ao homem que perde essa oportunidade, quando lhe é oferecida.” Ou ainda este aforismo célebre, que pus em epígrafe desta crónica: “A palavra foi dada ao homem para disfarçar o seu pensamento.”

Com tudo isto, quis apenas significar que não foi o exercício da realpolitik feito pelo Dr. Rui Machete, ao dar o seu assentimento à entrada da Guiné Equatorial no seio da CPLP – não foi esse exercício de realpolitik, em si, como exercício, que me surpreendeu ou perturbou. Como já insinuei, ou, mesmo, disse, a realpolitik é o próprio miolo da diplomacia. Muito embora esta também às vezes exija, como recomendou o conhecido diplomata e escritor Harold Nicholson, quatro qualidades, nem sempre dispensáveis: veracidade, precisão, calma e despretensiosidade. Mas fiquemo-nos pela realpolitik: não se trata de o Dr. Machete ter ou não ter usado deste instrumento diplomático. Trata-se, isso sim, da dimensão do elefante engolido! O Dr. Rui Machete e os seus antecessores, até há pouco tempo, exigiam determinadas condições, para que se permitisse o acesso daquele “reino das trevas” – a Guiné Equatorial -  ao seio da CPLP: em resumo, teria que adoptar a língua portuguesa como uma das línguas oficiais em curso, abolir a pena de morte e não violar de modo demasiado flagrante os mais elementares direitos humanos. Só, apresentando provas de estar a dar cumprimento a este caderno de encargos, se poderia começar a considerar a entrada do país de Obianga – “the heart of darkness” – na comunidade dos países de língua portuguesa. Ora o Sr. Obianga não deu cumprimento a nada disto: prometeu fazê-lo. E nem sequer acabou com a pena de morte: suspendeu-a, para poder voltar a ela, quando lhe convier. E o Dr. Rui Machete, com grande panache, afirma não ter razão para duvidar da palavra dada por Obianga, como se aquele senhor fosse um “honourable gentleman”. Mas, precisamente, isso é que ele não é: todo o seu sinistro curriculum de opressão, atropelo, genocídio e apropriação indevida das riquezas do país, nos convidam a ficarmos de sério sobreaviso contra a palavra dele. Dali, só factos, não palavras. Eis o que um verdadeiro mestre da realpolitik deveria ter feito: não vender princípios valiosos por um prato de lentilhas (um pífio cheque para o BANIF? Mas que interesse tem o BANIF para o povo português?)

E já que estamos no reino da realpolitik, sempre gostaria de deixar aqui, para benefício do actual detentor dos negócios estrangeiros, um aforismo de ouro de mestre Talleyrand. Reza assim: “Sim e não são as palavras mais fáceis de serem pronunciadas e também as que exigem maior reflexão.” Talvez o Dr. Rui Machete devesse ter reflectido um pouco mais, antes de ter dito “sim” ao Imperador Jones* da Guiné Equatorial. Ter-nos-ia dado a todos menos vergonha de sermos portugueses.

*Emperor Jones" é o título de uma das mais famosas e impressionantes peças de teatro do grande dramaturgo americano, Eugene O’Neill. Recomendo vivamente a sua leitura ao Dr. Rui Machete.

Eugénio Lisboa

3 comentários:

LSR disse...

Grande Eugénio LIsboa!

Eugenia disse...

"O riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica”
Concordo. É perverso porque isento de soluções; subversivo porque caricatural e portanto, mentiroso; escuda, injustamente, o seu autor porque enquanto se riem do que ele diz, não se riem dele e é belicista de uma forma altamente tóxica porque rude e invasivo. Mas não tenho nada contra palhaços, cínicos ou pessoas que não conseguem sustentar-se de outra maneira nem manter os dentes dentro da boca. Só porque são divertidos e eu tenho um reflexivo sexto sentido de humor.

Estou a ver que a tese do cozinheiro Maggi não pode ser lida por raças inferiores, mas por arianos com a planta do pé bem arqueada, músculos no nariz e uma suástica no braço. Ter-se-á inspirado num dos pendões do Papa? Se conhecer alguém como Maggi descreve (desde que não esteja preso), agradeço que me envie email, cheia de pena do despessegado e quase exterminado Rui Machete, o qual, a esta hora, deve estar a dar pulos de alegria dentro do seu anoréxico e concentrado pijaminha às riscas por Rui Batista não ter sido seu professor. Ao menos sobreviveu, o coitado.

Além disso, para meter o Machete na câmara de gás, a multidão da praça não pode aplaudir. Ena tanta gente no duche com os bolsos rotos de notas do banco! Vamos lá estender o braço às mais boquinhas famintas. “É vergonhosa a fraqueza da república que é culpada de tudo isso” lá dizia o mestre Hitler aos gritos pela ditadura enquanto arrancava os dentes cheios de ouro aos judeus.

Não eram os alemães que chamavam o “Mercado das Vacas” àquilo que se tinha tornado corrupção governamental? Parece que sim… Todos a comerem à farta, a dever dinheiro à farta, a roubar à farta, a rir à farta e os figurantes, sombras e silhuetas a escapulirem-se pelos interstícios dos ossos das vacas depois de emmagrecidas, lá bem para fora da vergonha de ser português, com o problema a ser só deles, Klaro…

Anónimo disse...

"...cheia de pena do despessegado e quase exterminado Rui Machete, o qual, a esta hora, deve estar a dar pulos de alegria dentro do seu anoréxico e concentrado pijaminha às riscas por Rui Batista não ter sido seu professor. Ao menos sobreviveu, o coitado."
Ah!Ah!Ah!

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