Era eu miúdo de 13 ou 14
anos e o meu pai (que foi professor) ofereceu-me um livro construído com
depoimentos de professores, pais, mesmo alunos, que me fez rebolar a rir:
chamava-se, no infeliz título da tradução portuguesa, «Feira dos disparates»
(«La foire aux cancres» em língua francesa). Era escrito por outro professor do
secundário, Jean Charles, e não tinha o caráter grave dos recentes livros de
Maria Filomena Mónica—porque era propositadamente humorístico.
A estrutura não era muito
diversa: tratava-se de juntar depoimentos, textos, episódios, apresentá-los e
extrair algumas conclusões. Era um livrinho, na aparência e na essência, mais
superficial, mas, feitas as contas, não menos informado.
Sou professor do ensino
secundário público e não me reconheço, ou à minha escola, globalmente, em
qualquer dos livros: Jean Charles, 1963, ou Maria Filomena Mónica, 2014. Reconheço,
no entanto, que poderão suscitar reflexões interessantes, se não quisermos vislumbrar
num, como nos outros, um sólido ponto de partida para generalizações.
A ironia do professor que,
segundo Jean Charles, escreve numa informação a um pai—«o seu filho anda a
faltar ao café para vir às aulas»—é ilustrativa de muitos comportamentos que
conhecemos de ginjeira. Não podemos é deduzir do facto uma teoria sobre o
estado de ensino público em França a um lustro do maio de 68.
São, naturalmente, livros
para estimular a atenção, e são interessantes nessa justa medida; mas não vale
a pena ficarmos demasiado empolgados com teorias. Não servem para isso.
As teorias pouco sustentadas
pela análise abundam nestes tempos velozes; e são ferozmente debatidas por
defensores e adversários. Ouvi um antropólogo, numa conversa amena de
intervalo, num julgamento que envolvia pessoas amigas de ambos, descrever assim
as duas partes, com uma ironia afetuosa: «é uma pena, mas têm aquele perfil
litigante…»
Pareceu-me que Filomena
Mónica foi a primeira a estabelecer os limites dos seus livros. Quanto a
estimular a atenção, parece-me que terá conseguido alguns pontos: anda muita
gente a lê-los. O que depois as pessoas pescam, é muito variável.
O programa Prós e contras é a superficialidade
feita programa de televisão. Logo à partida, por ser programa de televisão. A
primeira pessoa a afirmá-lo é a jornalista responsável—e apresentadora—Fátima
Campos Ferreira. Mas ontem, num Prós e
contras sobre educação especial, fiz uma boa pescaria. Não só vi o
espelho do que se passa nas escolas que conheço, como me deu para filosofar
sobre muitas das coisas que tenho vindo a dizer, designadamente neste blogue,
sobre matéria de educação—e de inclusão.
Muitos teóricos à la minute não percebem que as soluções
devem ser adaptadas ao teor dos problemas, e ao cenário que os envolve. Congeminam qualquer coisa que lhes
parece catita, e vai de sair à rua a vender a panaceia universal. O duo Morris
e Goscinny entreteve-se, durante anos, a encher de alcatrão e penas alguns
desses teóricos, nas estórias do Lucky Luke.
O ministério da educação tem
dessa gente, como o resto da sociedade. Infelizmente, não dispomos de alcatrão
e penas.
O que motiva os pais, os
profissionais de saúde e as instituições que se ocupam de miúdos com
necessidades especiais, é uma causa que ferve de razão, e abunda de razões.
Curiosamente, no programa de Fátima
Campos Ferreira, até surgiram caminhos: foram apontadas soluções que parecem
boas, no seguimento de diagnósticos corretos.
O que sabem os profissionais
do ensino é que esses garotos das necessidades especiais são o exemplo mais
gritante de uma situação que é geral na nossa sociedade, e a que nenhum
ministério conhecido deu, até à data, qualquer relevo: é que se a paralisia
cerebral salta à vista (embora nem sempre salte à vista a mobilização de
recursos e a justiça social), as dificuldades na leitura, na escrita, nas
contas, ou em qualquer domínio, em qualquer altura da escolaridade obrigatória,
não deveria dar origem a umas parvoíces—não há outro nome: parvus, _a, _um—como o reforço da carga horária para todos, e
quejandas; pondo a turma toda—sempre, toda—a atrapalhar um professor que gostaria
de estar a trabalhar com um grupinho, ou só dois alunos, ou mesmo um, num tempo
próprio, para resolver o problema de forma eficaz e duradoura.
Estou a falar da educação
especial para todos, como estilo de ensino: «In school year 2008-2009, almost
one third of all students in peruskoulu
[ensino obrigatório finlandês] was enroled in one or two alternative forms of
special education […]. More than one fifth of peruskoulu were in part-time special education that focuses on
curing minor dysfunctions in speaking, reading, writing, or learning
difficulties in mathematics or foreign languages.» (SAHLBERG, Pasi—Finnish Lessons. New York & London: Teachers College Press, Columbia
University, 2010.)
Isto custa dinheiro? Bom,
sim: como qualquer investimento. E depois, há alguma altura em que poupa
dinheiro? Os finlandeses, por exemplo, acham que sim: deixa de haver retenções
irreversíveis lá mais para diante; insucesso; exclusão. O ensino público
finlandês é inclusivo. Maria Filomena Mónica fala de falta de inclusão, entre
outras coisas, no dueto publicado.
É claro que é preciso saber
fazer contas, que é isso mesmo que neste momento poucos percebem como é que se
faz. A começar pela equipa de taumaturgos que nos governa.
Alcatrão e penas? Enfim, não
quero ser disruptivo (adoro estes termos): alcatrão figurado; penas figuradas.
Assim como numa estória em quadradinhos.
Retiro-me a cavalo
trauteando I'm a poor lonesome teacher,
and a long, long way from home…
António Mouzinho
P.S.:
Falando em pesca em textos alheios, outra vénia a
Maria Filomena Mónica: devo-lhe, já lá vão uns poucos de anos, a descoberta da
acutilante Gertrude Himmelfarb, historiadora informada e lúcida que não brinca
em serviço. Pronto: contas são contas.
AM
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