terça-feira, 15 de abril de 2014

GASTRONOMIA ALENTEJANA

COZINHA DOS GANHÕES - Boneco de Estremoz das Irmãs Flores.
Fotografia de José Cartaxo
Nas múltiplas vertentes da cultura popular do alentejano são notórias o folclore, a poética, o artesanato, mas também e muito, a gastronomia. O pão que aqui se come, por tradição e em quantidade, e que hoje se fabrica em grande parte com trigo importado, sabe Deus se já geneticamente manipulado, faz parte dessa cultura. Os queijos de ovelha ainda se fazem à mão, por toda a província, no rigor da sabedoria caseira, e deles se celebrizaram os de Évora, de Serpa, de Nisa, de Borba, entre outros. Este rigor que, natural e espontaneamente, se tem sabido impor e opor à sua industrialização é a razão de ser da sua notoriedade. O queijo artesanal, não só o alentejano como o do país inteiro, apoiado e encorajado por uma procura exigente e cada vez mais numerosa, torna Portugal um caso único no mundo. Quem não se rende aos queijos da Serra, de Castelo Branco, de Rabaçal, de Serpa, de Azeitão...

Paio alentejano. Imagem retirada daqui
Os enchidos e os presuntos caseiros são outra vitória da nossa resistência à industrialização que tudo homogeneiza e adultera em nome do mercado. De Portalegre a Ourique, de Grândola a Barrancos, grande é a variedade que o alentejano soube temperar e pôr ao fumeiro. Como os queijos, não são nem melhores nem piores do que os que se fazem por todo o país. São é diferentes, como é diferente o porco preto, alimentado a bolota de azinho.
Depois de anos de algum afastamento induzido por campanhas poderosas e adversas, visando outras gorduras e outros lucros, o azeite está de volta, triunfante.

Os verões quentes e secos e as terras de xisto e de areia fazem do Alentejo uma referência nacional em matéria de vinhos de “qualidade de origem controlada”. Portalegre, Borba, Redondo, Reguengos, Vidigueira, Évora (Cartuxa), Granja, Amareleja, Moura, Terras do Sado, são hoje nomes grandes nos cardápios dos restaurantes de todo o país. Não ficam por aqui os flashs da nossa paisagem gastronómica, da qual, embora menos falados, fazem ainda parte, o mel e o pinhão, bem como os peixes e outros produtos do mar ou dos rios, que os transportes rápidos põem diariamente à nossa porta.

Não só na literatura culinária e gastronómica, como também nas da história, da geografia, da sociologia e da ficção, são muitas as reflexões sobre a cozinha alentejana. De todas elas, em grande parte coincidentes no essencial, transparece um elogio a uma comunidade muito particular, culturalmente bem caracterizada, que do «pouco fez muito e bem» (Monarca Pinheiro, 1999). Algumas dessas reflexões merecem ser divulgadas com o destaque que lhes é devido, pois são as que melhor definem as relações entre este povo e os seus comeres.

A arte de cozinhar, como também se diz, e bem, constitui uma reserva cultural imensa, transmitida de gerações em gerações, numa história tão longa quanto a do Homo sapiens. Nesta caminhada de milénios, a descoberta e a procura de sabores foram transformando o simples acto de comer e beber para sobreviver, num outro, marcado pelo prazer, primeiro o dos sentidos e depois o da convivência. Aliás, como bem lembra Manuela Barros Ferreira (in Nádia Torres, 1997), comer, do latim comedere, significa tomar os alimentos em companhia, posto que radica no verbo edere que, por si só, significa esse acto de ingestão, antecedido do elemento cum, que alude à ideia de companhia e que é o mesmo prefixo com que se fez a palavra convivência.

Com características muito próprias, a cozinha alentejana é, como quaisquer outras cozinhas regionais portuguesas, rica, não só na variedade dos produtos naturais utilizados, como nas maneiras de os confeccionar. Como elas, é uma cozinha que, diríamos, do produtor ao consumidor, isto é, com produtos idos directamente da terra ou do mar aos tachos e às panelas, sem as incorporações industriais, que marcam os dias de hoje e de que são exemplo os muitíssimos produtos da indústria alimentar: os enlatados, os congelados, os semi-feitos, os take-away, à nossa disposição no mercado. António de Oliveira Bello que, além de industrial, foi conceituado mineralogista amador, gastrónomo e fundador, em 1933, da Sociedade Portuguesa de Gastronomia, dizia: «a cozinha portuguesa é saborosa, higiénica, substancial e muito característica. As matérias-primas empregadas, de produção nacional, são, culinariamente, perfeitas. A combinação é variada, mas sem exageros». No caso do Alentejo a sua riqueza resulta, talvez, de uma imaginação levada ao extremo, no espírito do velho ditado «a necessidade é mestra de engenhos», como bem lembraram Alfredo Saramago e Manuel Fialho (1998).

Uma pesquisa pela vasta e variada bibliografia alusiva à cozinha alentejana põe em evidência as condicionantes físicas e humanas dos seus sabores, uns doces e outros bem amargos, que têm sido, ao longo dos séculos, uma característica forte dos seus comeres. «Comeres frugais são estes que ora se apresentam, feitos de coisas simples, pequenas, do dia-a-dia e do que as pessoas tinham à mão»...«fazer das tripas coração e inventar sopas e condutos, enganando a vontade de comer» ou, ainda, «compensar a magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão sabores disfarceiros das pobrezas», escreveu Helder Pacheco (in Falcato Alves, 1994). Na verdade, ervas e cheiros foi coisa que a natureza nunca nos negou.

Em «Cozinha Alentejana», numa edição, sem autoria expressa, da Câmara Municipal de Évora, em 1988, lê-se: «A mágica da cozinha alentejana encontra expressão de, como, com produtos simples e pobres, elaborar pratos onde o gosto e o prazer de comer constituem um efectivo acto cultural».

Os bons sabores da cozinha alentejana resultam, com efeito, de uma procura de prazer numa terra pobre onde, como disse Orlando Ribeiro (1987), «comer foi, acima de tudo, encher a barriga e iludir a sensação de fome». Com efeito, como afirmou Domingos Lobo (in Marília Abel e Carlos Consiglieri, 2000), «A fome espevita sempre a imaginação dos povos».

Poejo. Imagem retirada daqui.
«Aproveitando ao máximo a riqueza dos seus recursos e sabendo compensar com extraordinária habilidade as suas limitações, o alentejano criou uma cozinha única, sólida, nutritiva e surpreendentemente saborosa, que não é mais, afinal, do que o espelho fiel da sua própria maneira de ser», são palavras do meu conterrâneo e amigo, Manuel Fialho (1992). Noutro descrito, Rui Camboias (1999) opina que a cozinha alentejana «é caracterizada por um conjunto muito variado de condimentos, também chamados “temperos” ou “cheiros”, muitos dos quais são ervas aromáticas existentes nos campos da região ou outras que, não “morando” nestas paragens, foram perfeitamente assimiladas pelas gentes desta zona». Uma tal cozinha distingue-se por conservar e valorizar os aromas e os sabores dos produtos utilizados, sem recurso a molhos especiais e a sofisticações culinárias. Entre as ervas e os cheiros ganharam relevo beldroegas, acelgas, labaças, cardos, espargos, saramagos, tomilho, orégão, alecrim, murta, coentro, hortelã, hortelã da ribeira e poejo, o mais alentejano dos cheiros, quanto a mim, com direito à posição de ex-libris.

Já Estrabão, o grande geógrafo grego dos finais do século I a. C., reconhecera esta grande região a sul do Tejo como o «paraíso das ervas frescas». Destas e de outras análises fica a ideia de que, num quadro geográfico e social marcado por carências e necessidades suficientemente apontadas, a cozinha alentejana soube tirar proveito dos produtos ao seu alcance, onde, para além dos que produzia, trabalhando a terra e cuidando do gado, têm particular importância as ervas e os cheiros. Deve, no entanto, acentuar-se que este quadro existe noutros locais envolvendo outras gentes. No seu interessante livro «Comer como Diós manda», Jacinto Garcia (1999) escreve: “A cozinha mais admirável é aquela capaz de conseguir um prato suculento e harmonioso utilizando somente um conjunto díspar de humildes alimentos”.

Do receituário que sempre se comeu nos montes fazem parte, em primeiro lugar, o pão, uma constante, na quantidade necessária para encher a barriga, logo a seguir o azeite e as gorduras do porco, para cozinhar e dar sustento, depois o alho, a cebola, o vinagre, os cheiros, usados como «disfarces para a falta de condutos» (Monarca Pinheiro, 1999), e algo mais que podiam colher na horta. Tudo o mais que se lhe acrescentasse, em particular as carnes e o peixe, fazia a diferença entre os que tinham posses e os que as não tinham. Como fez notar Alfredo Saramago (1997), no Alentejo não há grande contraste entre uma cozinha de rico e uma cozinha de pobre. As práticas alimentares são as mesmas. As diferenças mais marcantes, segundo este autor, estavam no valor nutritivo dos ingredientes usados nas confecções e na frequência com que certos pratos iam às respectivas mesas. Diz o ilustre gastrónomo: «A açorda dos ricos tinha mais azeite e as migas mais carne. Uns comiam mais chouriço e paio, outros mais toucinho e farinheira».

As receitas, em si, algumas com mais de mil anos, foram sempre as mesmas e, segundo ele, «nunca constituíram sinais de distinção». Não obstante o ataque cerrado feito à cozinha alentejana por nutricionistas, dietistas e alguma indústria agro-alimentar, esta sobreviveu e afirmou-se sem perda de identidade, sendo hoje um importante recurso em termos de oferta turística. Com efeito e em palavras do mesmo autor, «azeite de mau passou a óptimo, as gorduras animais, bem vistas as coisas, eram necessárias, o pão indispensável e outros produtos que conheceram execração vêem-se hoje reabilitados». Eis, pois, de novo, o azeite vitorioso na açorda, do mesmo modo que o toucinho e o chouriço fritos nas migas tão apetecidas e procuradas.

A identidade e a singularidade da cozinha alentejana, no contexto da cozinha portuguesa, assentam em duas características: a intemporalidade e a diversidade (Alfredo Saramago e Manuel Fialho, 1998). A intemporalidade está demonstrada nos documentos estudados pelos historiadores e a diversidade é um facto que podemos constatar e que é tanto mais notável quanto parcos sempre foram os seus recursos em terras de sequeiro. A este propósito escreveu Francisco Guedes, em 1997, «Terra de planícies extensas de trigo e sol, de vinho e paz, de ervas aromáticas e solidão, o Alentejo é também uma região ímpar no aproveitamento culinariamente imaginoso dos seus recursos».
Seara de trigo. Imagem retirada daqui.
Joaquim Ferreira Canário, presidente da Câmara de Castelo de Vide, no prefácio de «Comida de Cheiros» uma edição desta autarquia, em 1999, lembra e bem que a gastronomia alentejana «tem sido, ao contrário de outros usos e costumes, um elemento excepcionalmente resistente ao tempo e às influências estranhas e constituiu um valor etnográfico muito especial». Uma síntese destas diversas mas coincidentes reflexões está no dizer de Mariana Cascais (in Noémia T. Vaz Freire, 1997): «a gastronomia alentejana é um ingrediente essencial da imagem do Alentejo».

É verdade que o alentejano usa e abusa do pão, quer na mão, em grandes nacos a condutar com umas falhinhas de queijo ou de linguiça, quer nas migas, nas açordas e noutras sopas de pão. Sopas de pão molhado, como dizia a menina nascida e criada em Lisboa, filha de pai alentejano e de mãe alfacinha de Arroios, a passar férias com os avós no monte.
- Não gosto de sopas de pão molhado. O meu pai é que gosta, mas a minha mãe nunca faz. Diz que engordam e que fazem borbulhas na cara.
- Pois olha, isto é que alimenta – contrapunha o avô, bem torneado de carnes, sorridente e vermelhusco de rosto, às voltas com uma lauta açorda de poejos com sardinhas, assadas no fogareiro de carvão, a fumegarem na rua, à porta da cozinha. – Essas águas-palhas que te dão lá em Lisboa não enchem barriga. Experimenta e verás como vais daqui mais bonita. Anda, experimenta lá...
Este diálogo entre dois tempos e dois lugares podia alargar-se às migas, aos ensopados e a muitos outros sabores, tantos quantos os que marcaram a diferença entre mim e a cidade que há muitas décadas me acolheu. O alfacinha pega nas sopas de favas de uma qualquer receita alentejana, tira-lhe o pão, corta-lhe no alho e nos coentros e faz dela uma delicada e excelente sopa, bem batida num aveludado creme que, quando muito e eventualmente, servirá com umas migalhitas de pão torrado. O alentejano, ao contrário, agarra numa ligeira sopa de alface saloia, carrega-lhe no alho e nos coentros, acrescenta-lhe queijo, escalfa-lhe uns ovos, miga-lhe pão em quantidade e transforma-a numas fartas e perfumadas sopas de alface. É esta mesma cozinha que começa a ser servida pelos restaurantes não só do Alentejo como por alguns fora dele, em resposta a uma clientela conhecedora, em crescimento, a testemunhar o sucesso reconhecido deste renascer a que felizmente se assiste.

A cozinha alentejana é a que nos foi proporcionada pelos enquadramentos físico e humano que tivemos, evolucionando numa dialéctica entre muitas culturas. «Cozinha que, apesar da intemporalidade, tem sabido ser dinâmica, ajustando-se às circunstâncias, às maneiras e aos modos» (Alfredo Saramago, 2001). Numa certa fase, por exemplo, tal dialéctica estabeleceu-se entre os hábitos alimentares de fenícios e de celtas. Os primeiros, como povo mediterrâneo, vivendo mais dos cereais, do azeite, do vinho, dos legumes e das frutas, recursos compatíveis com um certo sedentarismo, e os segundos, nómadas e guerreiros, tidos por grandes consumidores de carne que caçavam. Mais tarde, aos hábitos alimentares transformados e introduzidos pelas ocupações romana e bárbaras (sobretudo a visigótica) sobrepuseram-se os de árabes e mouros.

No vocabulário gastronómico, aos muitos termos de origem latina, como pão, vinho, peixe, sal, carne, favas, ervilhas, couve, nabo, sertã, panela, fogão foram acrescentados muitos mais, de raiz árabe, entre os quais açorda, alcaparras, albricoques, almôndegas, alguidar, almotolia, alface, alfitetes, escabeche, azeitonas e azeite, este em substituição do óleo de oliva dos romanos, expressão que persiste nas línguas de povos onde se não fez sentir a influência islâmica, como a francesa (houile d’ olive) ou a inglesa (olive oil).

Poder-se-á perguntar: o que é que têm a ver apontamentos de cariz histórico, num texto como este, que não pretende ter preocupações de erudição? A resposta é imediata. Todas as oportunidades são boas para aprender, e aprendizagem significa valorização pessoal.

Se um leitor interessado em culinária e, caso não saiba, puder ficar a saber que, ao contrário do que a escola nos ensinou, a ocupação muçulmana constituiu um ponto alto da nossa História, não só na vida quotidiana, como nas letras, nas artes e nas ciências, já ganhou algo. Mouros, sarracenos, infiéis, têm sido nomes com carga pejorativa, pois assim no-lo eram ensinados na escola e, quase sempre, em relação com grandes derrotas infringidas por nós, cristãos, os “bons”.

É evidente que nesse ensino, o que se praticava na minha geração, estava a influência de uma Igreja Católica tão retrógrada quanto o regime, a mesma Igreja que, em nome de Deus, criou o Tribunal do Santo Ofício, queimou vivo o pensador Giordono Bruno e perseguiu Lutero, Galileu, Copérnico, Descartes, Erasmo, Pascal, Buffon, Lamarck, Darwin, e a que não escaparam portugueses como Damião de Góis, Garcia de Orta, ou Francisco Xavier de Oliveira, também conhecido por Cavaleiro de Oliveira.

A. Galopim de Carvalho

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