terça-feira, 22 de abril de 2014

O com senso




Os 40 anos do 25 de abril trouxeram a tudo quanto é meio de comunicação social o frenesi da reminiscência. A memória e a comparação.
A vitória do Benfica no campeonato, com as manifestações de rua respetivas e o delírio das reportagens de noite inteira—a propósito e a despropósito—, deixaram-me a remoer memórias.
Quando, mercê das boas caraterísticas dos atuais serviços de tv, dei por mim à procura da rolha nos vários canais para encontrar o que quer que fosse, só deparei com futebol: as limitadas entrevistas de rua (a indigência do trabalho dos repórteres sempre empatada com o calibre das respostas); as imagens de conjunto do campo de batalha; as imagens das diversas aproximações ao dito local; as hostes; os chefes; as entrevistas aos guerreiros; as entrevistas aos generais; os disparates, os excessos, a loucura, o delírio, a entrega de peito rasgado à vitória e aos vitoriosos, a chama clubista, bairrista, patriótica.
Foram horas de programação deitadas fora devido à importância suprema do acontecimento. Em conversa com Marcelo Rebelo de Sousa, uma Judite Sousa portista (julgo eu…) foi sistematicamente substituída por imagens dessa coisa, do lado esquerdo do ecrã, entalando o comentador à direita, a falar de outra coisa.
Os comentários ao jogo, à vitória no campeonato, às estratégias, às táticas, às escolhas, aos episódios, à textura da relva, ao ph da água de rega, ao penteado do presidente, a incómodos gástricos dos trènadores, à velocidade de consumo de pastilhas elásticas nas equipas técnicas, aos grandes momentos, aos pequenos momentos, à indisciplina, aos disciplinadores, aos erros, aos gandazerros, às posses, às perdas, aos bancos, aos balneários—os comentários, dizia eu, alimentaram horas sucessivas de trabalho aos comentadores do costume. Legião, como os outros, que eram muitos (Mc 5:9).
Tarde, nessa noite, e cedo, no dia seguinte, vi também o resultado da violência, dos copos, da cretinice, da maldade ou do azar, num par de deslocações que fiz, sem qualquer relação com o jogo, ao hospital de S. José.
Fiquei satisfeito com a vitória do Benfica. Foi a melhor equipa do ano; e acho graça ao Jorge Jesus.
Agora, lembrei-me de muitas coisas: do tempo em que havia um regime político conhecido pel'«O Regime», e em que os jornalistas e o povo eram empurrados para os feitos do Benfica para disfarçar outros feitos.
Ficou-me a impressão de que, neste momento, já não precisam de ser empurrados, porque vão sozinhos: afinal, a Pátria—é só aquilo.
Triste país pobre que se vinga, e alivia, na desmesura de uma celebração no futebol.
E este regime? Também traz lembranças: há 40 anos todos os patriotas eram contra o governo, e eram a maioria dos portugueses—da esquerda à direita, consensualmente.
De repente, vemos de novo os patriotas em consenso: Manuela Ferreira Leite, João Cravinho e Francisco Louçã a subscrever um mesmo texto… que não é o impresso para pedir a renovação do cartão de cidadão? Os com senso?
Penso que as voltas que este Mundo dá são hélices curiosas: as voltas não são o mesmo, mas frequentam sempre os mesmos sucessivos quadrantes.
Cá para mim, está encontrado o consenso. Agora, é uma questão de tempo e os senhores do new regime saem (peço desculpa pelo inglês: as novas pedagogias não falam francês).
Problema deles. Vivó Benfica!
António Mouzinho
(sportinguista satisfeito, por acaso)

Sem comentários:

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossí...