Os 40 anos do 25 de abril trouxeram a tudo quanto é meio de comunicação
social o frenesi da reminiscência. A memória e a comparação.
A vitória do Benfica no campeonato, com as manifestações de rua
respetivas e o delírio das reportagens de noite inteira—a propósito e a
despropósito—, deixaram-me a remoer memórias.
Quando, mercê das boas caraterísticas dos atuais serviços de tv, dei
por mim à procura da rolha nos vários canais para encontrar o que quer que
fosse, só deparei com futebol: as limitadas entrevistas de rua (a indigência do
trabalho dos repórteres sempre empatada com o calibre das respostas); as
imagens de conjunto do campo de batalha; as imagens das diversas aproximações
ao dito local; as hostes; os chefes; as entrevistas aos guerreiros; as
entrevistas aos generais; os disparates, os excessos, a loucura, o delírio, a
entrega de peito rasgado à vitória e aos vitoriosos, a chama clubista,
bairrista, patriótica.
Foram horas de programação deitadas fora devido à importância suprema
do acontecimento. Em conversa com Marcelo Rebelo de Sousa, uma Judite Sousa
portista (julgo eu…) foi sistematicamente substituída por imagens dessa coisa,
do lado esquerdo do ecrã, entalando o comentador à direita, a falar de outra
coisa.
Os comentários ao jogo, à vitória no campeonato, às estratégias, às
táticas, às escolhas, aos episódios, à textura da relva, ao ph da água de rega,
ao penteado do presidente, a incómodos gástricos dos trènadores, à velocidade
de consumo de pastilhas elásticas nas equipas técnicas, aos grandes momentos,
aos pequenos momentos, à indisciplina, aos disciplinadores, aos erros, aos
gandazerros, às posses, às perdas, aos bancos, aos balneários—os comentários,
dizia eu, alimentaram horas sucessivas de trabalho aos comentadores do costume.
Legião, como os outros, que eram muitos (Mc 5:9).
Tarde, nessa noite, e cedo, no dia seguinte, vi também o resultado da
violência, dos copos, da cretinice, da maldade ou do azar, num par de
deslocações que fiz, sem qualquer relação com o jogo, ao hospital de S. José.
Fiquei satisfeito com a vitória do Benfica. Foi a melhor equipa do ano;
e acho graça ao Jorge Jesus.
Agora, lembrei-me de muitas coisas: do tempo em que havia um regime
político conhecido pel'«O Regime», e em que os jornalistas e o povo eram
empurrados para os feitos do Benfica para disfarçar outros feitos.
Ficou-me a impressão de que, neste momento, já não precisam de ser
empurrados, porque vão sozinhos: afinal, a Pátria—é só aquilo.
Triste país pobre que se vinga, e alivia, na desmesura de uma
celebração no futebol.
E este regime? Também traz lembranças: há 40 anos todos os patriotas
eram contra o governo, e eram a maioria dos portugueses—da esquerda à direita,
consensualmente.
De repente, vemos de novo os patriotas em consenso: Manuela Ferreira
Leite, João Cravinho e Francisco Louçã a subscrever um mesmo texto… que não é o
impresso para pedir a renovação do cartão de cidadão? Os com senso?
Penso que as voltas que este Mundo dá são hélices curiosas: as voltas
não são o mesmo, mas frequentam sempre os mesmos sucessivos quadrantes.
Cá para mim, está encontrado o consenso. Agora, é uma questão de tempo
e os senhores do new regime saem
(peço desculpa pelo inglês: as novas pedagogias não falam francês).
Problema deles. Vivó Benfica!
António Mouzinho
(sportinguista satisfeito, por
acaso)
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