Imagem colhida in: doca.dos.aflitos.blogspot.com
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Quando comecei a ter consciência do mundo à minha volta, já se não matava o porco em nossa casa. Isto porque havíamos mudado de residência e deixáramos de ter instalações adequadas, entre as quais a grande chaminé da cozinha, com lume de chão, para fumar os enchidos. Vivendo na cidade, tínhamos o talho onde a carne fresca e de salgadeira, chouriços, linguiças e farinheiras, estavam diariamente à nossa disposição. Não matar o porco em casa não impediu que assistisse, muitas vezes, a este ritual de Inverno, vindo da Antiguidade, através de sucessivas civilizações, em que o animal era oferecido, em sacrifício, aos deuses. Esta tradição chegou a ser, desgraçada e estupidamente, interdita por uma legislação fabricada em Bruxelas, no seio da União Europeia, pelos mesmos citadinos que assistem, indiferentes, à expansão dos fast food e de muitos outros alimentos ditos de plástico. Para salvaguarda desse património cultural, houve sempre por essas aldeias, felizmente, quem prevaricasse, aproveitando uma mais prolongada, providencial e, às vezes, combinada ausência da patrulha da Guarda.
Depois de sangrado, chamuscado, raspado e lavado, havia que pendurá-lo, de cabeça para baixo, num chambaril suspenso de uma trave do tecto.
O chambaril é uma espécie de cruzeta onde se prendiam os fortíssimos tendões das patas traseiras do animal. Aberto e esventrado de tripas e demais entranhas, aguardava-se que a carcaça secasse e arrefecesse depois de lhe passar uma noite fria por cima.
Só ao outro dia, manhã cedo, o mesmo magarefe que o sangrara, armado de facas de vários usos, um cutelo e um serrote, vinha desmanchá-lo e dividi-lo em porções, cada qual com seu destino, que ia separando em alguidares de barro.
Com parte do sangue recolhido, de mistura com vinagre, para não coalhar, confeccionava-se a rechina, no que se consumiam as fressuras. Bem aromatizada com cominhos, servia-se no próprio dia da matança, ao almoço, com sopas de pão cortadas às fatias finas e rodelas de laranja, para desenjoar, constituindo o festim dos que sempre apareciam para ajudar e, também, para comer. O sangue restante era cozido e, depois de frio, cortado às fatias e temperado com azeite, vinagre e alho.
Das lides da matança, competia às mulheres cortar as carnes para os enchidos e temperá-las de acordo com os destinos a dar-lhes, seleccionando-as para os paios, as linguiças, os chouriços e as farinheiras. Só não se ocupavam desse trabalho as que, na ocasião, estivessem menstruadas, uma crença, como muitas outras, que ninguém explicava mas que todas respeitavam.
Imagem retirada de «porcastrautarquicas09.wordpress.com»
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Mantas de toucinho alto de uma mão-travessa, chispes inteiros, faceiras, orelhas e ossos eram acondicionados na salgadeira. Esvaziado do sal e dos restos amarelecidos da conserva do ano anterior, este baú de madeira, a ressumar salmoura antiga, era raspado e lavado para receber o sal novo, cristalino e branco de neve, para conservar, por mais um ano, a nova provisão.
Havia sempre quem aproveitasse o toucinho velho que, embora com um leve pico de ranço, sempre dava jeito àqueles que o levavam. Uma lasquinha deste toucinho, bem raspado do sal, e uma rodela de cebola, dentro de duas grossas fatias de pão, faziam a ceia de um pobre, dizia-se.
A. Galopim de Carvalho
1 comentário:
Em Chaves, na minha casa procedia-se da maneira descrita, com pequenas variantes, de somenos importância ... Nos concelhos próximos os porcos já eram mortos e abertos como quem mata cabritos e com outras tradições ...
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