terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

HÁ 60 ANOS, NA VENDINHA


Entre Évora e Reguengos de Monsaraz, a Vendinha era, há mais de meio século, uma aldeia com muita gente pobre amarrada às fainas agrícolas sempre eventuais e precárias. Os dias sem trabalho somavam-se ao longo dos meses, e as contas, no livro dos fiados, na venda do Ti Zé Calado, cresciam, na esperança solidária de que a ceifa ou a apanha da azeitona saldassem ou, pelo menos, reduzissem os atrasados.

Servindo ao mesmo tempo de taberna, como, aliás, ainda é regra, este estabelecimento era frequentado pelas mulheres e raparigas, quase só para as compras necessárias ao governo da casa, das mercearias, às drogarias e aos precisos para as costuras caseiras. Pelos homens, a venda era frequentada ao fim da tarde, ao serão e ao Domingo todo o dia, para conviverem, cantando, comendo e bebendo. Sardinhas fritas, linguiças e farinheiras assadas num prato com aguardente, queijo e muito pão, comido à navalha, faziam lastro ao branco e ao tinto, segundo o gosto de cada um. Muitos deles jogavam ao corno. Este jogo de azar, de braço dado com a bebida, dizimava a magra féria de uns tantos, para grande arrelia das mulheres e constantes discórdias entre casais. As famílias mais desafogadas, uma meia dúzia se tanto, eram, por isso, consideradas ricas. Era tudo gente de bem, simples e solidária.

Nesses anos, no seio desta pequena comunidade, todos os vendinhenses, os pobres e os tais ditos ricos, se ajudavam entre si. Todos se tratavam por igual e a única diferença estava nas idades de cada um. Os mais velhos tratavam a todos por tu e recebiam, dos mais novos, o “vossemecê” que lhes era devido.

Neste cenário rural havia, ainda, os seareiros, lavradores sem terra própria, mas que a alugavam a quem a tinha para nela semearem, sobretudo, trigo. Os grandes senhores da terra não viviam ali. Tinham por lá os feitores, nas suas herdades, mas residiam na cidade e um deles, até, em Lisboa. Frequentavam o Grémio da Lavoura, em Évora, e ali tratavam dos seus negócios, bem como no Café Arcada, às terças-feiras.

Não é surpresa para ninguém que a religiosidade dos alentejanos fica muito aquém da dos seus irmãos do Centro e Norte do país. Do mesmo modo, deixa muito a desejar a veneração que dispensam à figura do padre. Anos muito duros na vida dos camponeses desta vasta região do sul, mostraram-lhes que a Igreja e a generalidade dos seus ministros sempre estiveram mais do lado daqueles que os exploravam e oprimiam. A pequena propriedade rural e a notória religiosidade das gentes das Beiras, do Minho e de Trás-os-Montes sempre iam abastecendo a despensa do pároco com tudo o que a terra dá, do azeite ao vinho, da galinha ao cestinho com ovos, das batatas e das couves à fruta, da broa aos bolos e ao anho, pela Páscoa, proporcionando-lhe uma vida bem mais confortável do que a dos poucos padres resignados a permanecer nas aldeias do Alentejo.


Isto numa visão que, diria, estatística, porque excepções sempre as houve. Serve esta reflexão para dar sentido a um dos episódios mais inesperados que me foi dado presenciar. Num desses anos fui convidado para assistir às festas em honra de São Vicente do Pigeiro, o taumaturgo português cuja imagem se encontra na pequena igreja matriz local, de finais do século XVI.

Cheguei à aldeia na véspera, ao fim de um dia de muito calor, e fiquei hóspede de um dos “meus compadres”. A alvorada do grande dia foi assinalada pela chegada da banda, vinda de Montoito, contratada pelos festeiros. Tocando e marchando, com o mestre à frente, os músicos percorriam as ruas principais, detendo-se, por momentos, frente à Junta de Freguesia e à Casa do Povo. Seguiam-se, depois, os cumprimentos às famílias tidas por mais importantes, os tais ditos ricos, onde, como era costume, havia sempre um “mata-bicho” à sua espera. Em frente de cada uma destas residências, a banda parava, interpretava uma curta peça, finda a qual os seus elementos eram convidados a entrar e a regalar-se com bolos caseiros, vinho doce ou aguardente.

Cumprida esta primeira fase das cerimónias e eventos programados, o povo começava a debandar a caminho da igreja matriz, a uns quilómetros de distância da aldeia. Eles a pé, nos seus fatos escuros, domingueiros, meio cobertos pelo pó do caminho, e elas sentadas em cadeirinhas, em cima de carros puxados por parelhas de mulas. Esperava-os a procissão da bênção às searas seguida da missa, a única a que assistiam por ano. De acordo com os termos apalavrados, a banda abrilhantava a procissão, logo a seguir ao padre e ao andor do orago. Com o povo atrás, a pequena imagem, em madeira dourada, de São Vicente do Pigeiro, levada ao ombro dos homens mais destacados da freguesia, percorria um dado itinerário por entre o restolho ressequido de um campo de trigo já ceifado, e regressava ao seu altar para a celebração da santa eucaristia em sua honra.

À missa assistiam, sobretudo, mulheres e raparigas. As crianças ficaram a brincar, correndo em volta da igreja, e os homens concentravam-se no adro, confraternizando frente a uma banca de comes e bebes, ali improvisada pelos festeiros com o fim de conseguirem mais alguns fundos para a festa. Foram, assim, passando o tempo à espera que o padre subisse ao púlpito. A prédica era a única parte da missa que, mal ou bem, podiam entendiam. Ao sinal de um rapaz, mandado estar atento ao começo da dita, entraram no templo, de chapéu na mão, silenciosos e em postura de muito respeito, permanecendo à entrada, junto à porta. Porta que transpunham sempre que se enfadassem ou lhes apertasse a sede.

A Vendinha não tinha padre e, como em anos anteriores, era preciso ir buscá-lo a Montoito. Mas, naquele ano, o pároco desta aldeia vizinha não era o mesmo a quem estavam habituados, pelo que tiveram de se haver com um desconhecido. A curiosidade de o ouvir e conhecer era, pois, grande. Com música de Bach, de permeio, tocada por dois ou três dos metais da banda, a cerimónia decorreu normalmente até ao momento em que o celebrante iniciou o sermão. Aí, do alto da sua importância face ao rebanho a seus pés, em vez da prédica que o povo esperava, o pastor teve a infeliz e mal pensada ideia de, num discurso muito fundamentalista e desagradável, comentar as roupas de algumas das raparigas e a sua falta de pudor, ao vestirem-nas, mandando sair da igreja aquelas cujos decotes e cavas, segundo ele, ofendiam a Deus e à Virgem.

Indignadas por um tamanho atrevimento, estas e as suas mães não se contiveram, começando a invectivá-lo, de baixo para cima, e ele a responder-lhes, na mesma moeda, de cima para baixo. Os ânimos exaltaram-se, as imprecações subiram de tom, de parte a parte, e os homens aproximaram-se em defesa das suas mulheres e filhas. Nesta peleja de palavras, uma das mães desabafava, para quem quisesse ouvir.

- Estive eu a fazer o vestido à rapariga, para ela estrear hoje, e o estupor do padre a mandá-la sair da igreja!? Padreca de merda! Nunca mais cá põe o cu! Recuando na sua intransigência e amainados os ânimos, o celebrante lá conseguiu dar por finda a missa. A caminho da aldeia, as conversas do pessoal, ainda acaloradas, tinham por mote o insólito acontecimento.

Durante a tarde, em pleno arraial, ainda se ouviam, aqui e ali, relatos da ocorrência. Nunca o padre, que ninguém mais viu, sonhou as rodas de “filho dum…” e de “filho duma…” que lhe foram dirigidas, à distância e ainda a quente, pelo pacato povo da Vendinha.

A. Galopim de Carvalho

2 comentários:

perhaps disse...

O que conheço dos padres que estavam pelo alentejo é que eram eles a valer aos mais desprotegidos de tudo, fossem ou não religiosos.
Tamanha era a miséria que nada havia a dar ao senhor prior. Só dos senhores da herdade havia que esperar presentes.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Na minha cidade natal (de altura data) acontecera algo semelhante inclusive estaria um senhor que desconhece a profundidade do tema estimul filmagem (sétima arte)do episódio obviamente releitura.

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