"Durante vários anos, conseguimos transferir mais recursos para o sistema e atribuir mais bolsas. No entanto, quando medimos depois o número de patentes que são registadas, o número de artigos científicos que são publicados, quando medimos o resultado e a qualidade desse resultado, nós passávamos de indicadores que pareciam comparar muito bem com os países com que gostamos de nos comparar para comparar muito mal sempre que olhávamos à substância dos indicadores.""Temos, portanto, de aprender a medir os resultados e temos de garantir que as bolsas que nós usamos para financiar os doutoramentos, os pós-doutoramentos, que a investigação que é feita não corresponde meramente a uma política de recursos humanos de empregar os melhores, mas que possa resultar em ter mais gente do lado das empresas, altamente qualificada, a desenvolver investigação e a fazer a translação de conhecimento que traga valor para essas empresas e para a economia."
Eis as resposta que dei ao Público a propósito dessas declarações:
P- Como comenta o que disse Passos Coelho sobre os indicadores de ciência em Portugal por comparação com outros países? Os números sustentam o que
diz sobre número de artigos científicos e as patentes registadas? E a "qualidade" do trabalho? E como é que avaliada essa qualidade?
CF- Infelizmente, o primeiro-ministro não sabe do que está a falar, pelo que não consegue transmitir uma mensagem com sentido. Podia e devia preparar uma declaração sobre ciência em vez de falar de improviso num português rudimentar.
Factos são factos. De 1995 a 2011 as actividades relacionadas com a investigação e desenvolvimento (I&D) conheceram em Portugal um extraordinário incremento, que nos devia orgulhar. O investimento nessa área passou de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), um valor muito inferior ao da média da União Europeia (UE) a 27 países (que era de 1,8% em 1995), para 1,5%, um valor bem mais próximo da média da UE, que é de 2,1%. Embora haja que descontar uma inflação nas declarações para efeitos estatísticos devida a benefícios fiscais, o investimento das empresas também aumentou no período indicado: entre 1995 e 2011, o peso do I&D das empresas passou de 0,1% para 0,7% do PIB. O número de novos doutorados por cem mil habitantes aumentou de 5,7 para 17,5 entre 1995 e 2011.
Este investimento traduziu-se num significativo aumento da produção científica, medida pelo número de publicações: passou de 24 por cem mil habitantes em
1995 para 162 por cem mil habitantes em 2011. Os investigadores portugueses não só aumentaram, como passaram a produzir mais. A qualidade, que pode ser medida pelo número de citações dos artigos, aumentou também. Quanto aos registos de patentes também subiram de 4 para 11 por milhão de habitantes de 2000 para 2010, embora sejam reduzidos em comparação com a média europeia (112 por milhão de habitantes). Passos Coelho fala em patentes, mas esquece-se que há indicadores melhores para saber o impacto da ciência
na economia: número de novas startups, capital de risco
e exportações de produtos e serviços com ciência incorporada. Apesar
de faltarem estatísticas fiáveis, tudo indica que estes indicadores têm crescido.
Convergimos com a Europa. Não podemos, porém, embandeirar em arco pois tanto
o total do PIB investido em I&D, como a parcela associada a empresas,
como o número de novos doutores e o número de publicações (aferidos à população)
são ainda inferiores às respectivas médias europeias. Por exemplo, o Por exemplo,
o número médio de novos doutores na UE em 2011 por cem mil habitantes foi
de 22,9. Portanto, se queremos continuar o caminho de aproximação à média
europeia, a convergência terá de continuar e isso só se consegue continuando
a investir ao mesmo ritmo e não quebrando o investimento que se estava a fazer.
Precisamos, em particular, de mais bolsas de doutoramento. Partimos de uma
posição muito baixa e temos de continuar o esforço de vários governos anteriores
se queremos aspirar a ser como os países mais desenvolvidos. Aliás, os
outros países também têm em geral crescido, pelo que temos de andar mais
para os apanhar.
P- Como comenta as declarações sobre as bolsas de doutoramento e
pós-doutoramento não servirem para empregar os melhores, mas deverem antes
resultar em ter mais gente qualificada nas empresas a criar valor
para a economia? A ciência resume-se a isto?
CF- O primeiro ministro está equivocado. O problema real que temos de algumas
debilidade na ligação entre a investigação e a actividade empresarial não se
resolve com menos ciência mas sim com mais ciência. Ele está a tentar justificar
um injustificável corte nas bolsas e doutoramento e
pós-doutoramento e ninguém percebe - decerto nem ele se pensar um
bocadinho - em que é que o corte agora feito pode beneficiar a ligação da
ciência com as empresas. Se houver menos pessoas qualificadas, decerto
haverá menor qualificação das empresas. A menos que ele esteja a pensar
que o dinheiro público agora poupado em bolsas vai ser entregue a empresas
privadas para estas fazerem a investigação que lhes interessa. Isso seria um mau uso de
dinheiros públicos. Eu não quero o dinheiro dos meus impostos entregue a
empresas privadas!
Além do mais ele não sabe que o retorno económico, sem dúvida enorme, da
ciência não é directo e imediato. Desconhece, por exemplo, que um
professor-investigador forma melhor os seus estudantes do que um professor
que não investigue, o que tem óbvias repercussões na economia. E também
desconhece que hoje em dia não há aplicações da ciência sem ciência
básica. A inovação exige conhecimento. Com o actual garrote na ciência o
governo está a matar a galinha dos ovos de oiro.
Acima de tudo Passos Coelho está a esquecer o papel cultural da ciência. A
ciência é cultura: torna-nos mais ricos intelectualmente. Como afirmou um
grande matemático do século XIX o grande objectivo da ciência é honrar
o espírito humano
("honrez l'esprit humaine").
P- O número de doutorados nas empresas portuguesas anda pelos 2,5%. Mas se as empresas portuguesas não contratam mais investigadores e não consideram a investigação científica importante, esse é um problema do sistema científico ou será, antes, um problema do tecido empresarial e, em última análise, das políticas para o país.
P- O número de doutorados nas empresas portuguesas anda pelos 2,5%. Mas se as empresas portuguesas não contratam mais investigadores e não consideram a investigação científica importante, esse é um problema do sistema científico ou será, antes, um problema do tecido empresarial e, em última análise, das políticas para o país.
CF- É um problema de todos os parceiros. Será um problema dos cientistas mas é
também - e talvez sobretudo- um problemas dos nossos empresários.
Com algumas honrosas excepções eles não estão a contratar doutorados, sendo estes obrigados a emigrar. Muitos deles vão para empresas estrangeiras
dirigidas por gestores mais inteligentes. E as empresas nacionais que
não investiram em recursos humanos qualificados irão falhar na competitividade
internacional.
Passos Coelho está, de resto, a cometer um erro ao não incentivar os cientistas
portugueses, que têm trabalhado com entusiasmo em condições por vezes difíceis.
Eles sentem-se abandonados pelo governo que devia saber, para usar a jargão que alguns governante tanto gostam, que eles são os nossos melhores "activos".
A riqueza hoje das nações reside no conhecimento que conseguirem produzir.
E o conhecimento produz-se mais e melhor num ambiente em que há reconhecimento
do esforço científico. A FCT, com o alto patrocínio do primeiro ministro,
tornou-se inimiga dos investigadores, quando devia ser exactamente ao contrário.
2 comentários:
Compreendo que estes cortes orçamentais se traduzam em maléficas consequências para as universidades... Menos estudantes... E se os doutoramentos são caros! Alguns limitam-se a recriar o que já foi descoberto, não é verdade?
Não. Um doutoramento explicado em imagens: http://matt.might.net/articles/phd-school-in-pictures/
E o posdoc pode continuar a aumentar o perímetro do conhecimento...
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