Trancrevo na íntegra, coma correcção de pequenas gralhas, a entrevista que dei na semana passada ao Jornal de Negócios:
Carlos Fiolhais fala do explorador Fernão Mendes Pinto. Fala do médico Garcia de Orta. Fala do matemático Pedro Nunes. Esses senhores do século XVI que indagavam o mundo. Que sonhavam. Porque o sonho é preciso. É preciso imaginar um amanhã. Carlos Fiolhais, físico, ensaísta, divulgador, fala apaixonado. Os cientistas agarram-se às questões e não as largam. Mas é sua obrigação publicar o que sabem. A ciência não é dos cientistas, é de todos. A isto chama-se cultura científica. Ele tem medo que isso se perca. Que a ciência se isole. E, sozinha, a ciência estiola. Carlos Fiolhais é muitas coisas. É responsável pelo programa Ciência e Inovação da Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirige o projecto “Rómulo” – Centro de Ciência Viva da Universidade de Coimbra. É accionista e administrador da Coimbra Genomics.empresa da área da genética médica integrada no Biocant. Subscreveu o “Manifesto contra a Crise – Compromisso com a Ciência, a Cultura e as Artes”. “Somos ou não capazes de ambicionar um amanhã melhor?”.
A partir de uma conversa com
LÚCIA CRESPO
Como cientista, eu gosto muito do amanhã, e por uma razão muito simples: amanhã vou saber mais coisas. Há uma dimensão imaterial no homem, que é aquilo que o distingue.
O homem faz projecções e as projecções são imaginações, esperanças, ficções. Nós imaginamos o futuro. Queremos um futuro melhor e temos um meio para tal, que é a ciência. O filósofo Francis Bacon dizia que saber é poder. E de que maneira! O facto de conseguirmos usar o nosso cérebro para imaginar como é o mundo, e depois confrontar o mundo com a nossa imaginação, significa um poder imenso.
O poder é sempre poder. Pode ser bem ou mal usado, e quem define o que é o bem e o mal são as sociedades, não são os cientistas. Existem perigos da ciência, como existem perigos em qualquer actividade humana, não há nada que seja absolutamente inocente, até há romances que levam pessoas a suicidar-se. Os perigos da ciência têm de ser resolvidos, mas não é reprimindo a ciência, é com mais ciência.
Vai ser publicado um livro chamado “Experiência Antárctida”, de um cientista que esteve seis meses em condições de absoluto isolamento, numa cabine da Antárctida. Diz ele que a primeira coisa que faz quando chega à civilização é comer um pastel de nata. Diz ele que só quem esteve seis meses na Antárctida sabe o que é o cheiro a canela, a dentadinha, o crocante, o que só mostra que os cientistas são humanos e, talvez, a única diferença que têm em relação a outros seres humanos é o facto de terem mais curiosidade. Uma vez, perguntaram ao Einstein o que é que o distinguia dos outros e ele respondeu: tenho uma curiosidade apaixonada, uma curiosidade que transborda.Os cientistas agarram-se às questões e não as largam. Mas é sua obrigação publicar o que sabem. A ciência não é dos cientistas, a ciência é de todos. A isto chama-se cultura científica. É a ciência a entregar à sociedade o saber que adquire.
Com certeza que em Portugal há curiosidade e há audácia, mas podemos ser mais
curiosos, mais audazes. Não sei se a curiosidade se foi perdendo, se foi sendo abafada,
mas nós temos uma história algo infeliz com a ciência. No século XVI, fomos a novas terras, a novos mares, a novos céus, descobrimos novas espécies, novas terras, novas paisagens, novas gentes, novas culturas, houve um encontro com a China, com o Japão. Fomos nós, portugueses ou estrangeiros que passaram por Portugal, que levámos o telescópio e os métodos modernos da ciência para a China e para o Japão. Houve ali um encontro de civilizações e nós demos o melhor que a Europa tinha para dar. Este ano comemoram-se os 400 anos do livro “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, um homem que contava histórias de diferença em relação ao outro. Garcia de Orta descobriu plantas da Índia, Pedro Nunes inventou novos modos de navegação.
Nós tivemos um papel na ciência mundial.
Mas, depois, a Revolução Industrial chegou aqui atrasada. Há uma história engraçada de uma máquina a vapor que naufragou. Parece que a Revolução Industrial se recusava a chegar aqui. A Revolução Científica, que deu lugar à Revolução Industrial, passou para o norte e centro da Europa, com a ajuda da escolarização - não basta ter saber, são precisas armas para o perceber e nós não nos educámos. Perdemos o comboio.
Se queremos manter o nosso nível de vida, ou até melhorá-lo, precisamos de mais e melhor ciência. E a ciência dá resultados. É por isso que eu vejo como relevantes as preocupações em Portugal sobre o futuro da ciência. Nos últimos vinte anos, a ciência progrediu muito, formámos mais pessoas, temos uma geração que está ao nível dos melhores. Este esforço tem de continuar.
Se há uma mudança de paradigma, como dizem, é de um paradigma de crescimento para um paradigma de decréscimo. Houve uma razia enorme, sem aviso. E não há nova política, porque se houvesse, ela tinha sido anunciada e discutida na Assembleia da República. O que há é um engano perfeito. Os jovens tinham expectativas sobre a continuação dos estudos. O que me preocupa não é tanto os cortes, é a falta de inteligência nos cortes.
Os governos têm de ouvir os cientistas e o nosso governo está surdo, mudo e cego. Estou a chegar de França e li uma notícia sobre um comunicado do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia que, aparentemente, foi censurado. É de bradar aos céus. Como é que isto é possível num país democrático? A democracia não está em risco, mas estamos a ver sintomas de atentados a normas democráticas e não devemos tolerar isso.
Parece que estamos todos atordoados, adormecidos, pouco críticos. Isto de estarmos encolhidos tem de acabar. Não devemos tolerar que um órgão independente seja
impedido de ser independente.
A FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) é uma repartição do Estado que recebeu ordem para fazer uns cortes e fê-los sem qualquer espírito crítico, sem saber sequer o que é a ciência. A dimensão cultural da ciência é desconhecida da
FCT. Acabaram com duas áreas fundamentais: história da ciência e promoção da ciência.É como se tivessem cortado a ligação da ciência à sociedade e à cultura. E a ciência, sozinha, estiola.
O problema da fuga de cientistas é comum à fuga de criadores. Nós precisamos da criação, precisamos de imaginar o tal amanhã. A nossa identidade como país vai muito além da realidade económica. Imaginemos que, daqui a uns tempos, a economia recupera mesmo… e o país, onde está? Onde estão os portugueses? Estivemos a salvar o quê e para quê? E se não houver um projecto? E se não houver um sonho? É preciso ter um desígnio.
Eu acredito que podemos ser mais europeus. O nosso projecto devia ser a Europa.
Quanto mais nos afastarmos da Europa, com sonhos atlânticos, mais pobres seremos. Por enquanto, a Europa é uma ficção, mas é uma boa ficção. Partilhamos um continente que tem uma história fabulosa, herdada dos gregos,dos romanos, do Renascimento, uma Europa invejada por países de outros continentes. Não temos que ter vergonha de sermos europeus. Eu quero ser europeu.
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