Prenderam-me a ela a intransigência com que defendia a liberdade, a solidariedade e a justiça, o desassombro que usou na palavra falada e escrita, a força e a energia, características que sempre igualei às do igualmente saudoso Ary dos Santos.
Natália leu os meus primeiros escritos, que arrumou num estilo que designou por etnologia ficcional, expressão que eu nunca imaginara e que me surpreendeu pela exactidão da análise. Com efeito, ao fim de três décadas a observar e descrever, no rigor exigido no discurso científico, rochas, minerais, fósseis, e um sem número de acontecimentos e de ambientes do passado, eu procurava, nessa nova fase da minha vida, descrever pessoas, ofícios, ambientes e modos de vida que vivi ou presenciei e que guardei quase intactos em recantos da memória. Queria, sobretudo, fazê-lo ao sabor de uma certa intencionalidade poética. Para tal, eu tinha que dar um primeiro passo e Natália deu-me o empurrão necessário.
Feita esta apresentação da minha relação com esta açoriana, apraz-me transcrever, pelo que têm de realismo, algumas premonições que acredito, mas não posso confirmar, serem dela:
"A nossa entrada (na CEE) vai provocar gravíssimos retrocessos no país, a Europa não é solidária com ninguém, explorar-nos-á miseravelmente como grande agiota que nunca deixou de ser. A sua vocação é ser colonialista". "Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente". "Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a pôr gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão". "Há a cultura, a fé, o amor, a solidariedade. Que será, porém, de Portugal quando deixar de ter dirigentes que acreditem nestes valores?" "As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida. Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres. A indiferença que se observa ante, por exemplo, o desmoronar das cidades e o incêndio das florestas é uma antecipação disso, de outras derrocadas a vir"."
Ah, grande Natália!
A. Galopim de Carvalho
4 comentários:
Professor Galopim de Carvalho
Este texto, na minha opinião, dificilmente poderia ter sido escrito pela Natália Correia. Sinto que há aqui quqlquer coisa que não bate certo...
Estou a trabalhar na obra de ampliação do Aeroporto de Lisboa e vejo várias vezes de muito perto (inclusivamente já lhe toquei) o avião da TAP "baptizado" com o nome de Natália Correia. É uma homenagem bonita de uma entidade que ainda representa Portugal no mundo. Tenho esperança que a humanidade contrarie as suas premonições.
Acredito que sejam as suas palavras. Do que lhe ouvi em entrevistas que estão no youtube, parecem-me até naturais.
De Natália conheço a poesia completa e lembro-me dela e do Ary, quando iam à faculdade declamar. A declamar prefiro a loucura fulgurante de Ary. Mas há em Natália-mulher uma frontalidade quase terrorista. Admirável.
Estimado Fernando Caldeira
Depois de ler o seu comentário, fui informar-me e eis o que consegui obter:
O texto em questão foi retirado do livro de Fernando Dacosta, “Botequim da Liberdade”, que não li.
Cumprimentos,
A. Galopim de Carvalho
Enviar um comentário