Eis algumas das respostas que dei a João Pedro Lobato, jornalista que me entrevistou para a Superinteressante. Por natural falta de espaço, nem todas as respostas foram publicadas. Outras perguntas e respostas encontram-se na revista que está nas bancas:
P- Existe sempre a tentação, a cada ciclo político do nosso país, em fazer tábua rasa do que antes foi edificado. Isso também ajuda a explicar, além das perseguições religiosas e políticas, o atraso científico que o país viveu? Existe o perigo de isso estar a acontecer neste momento?
R- Sim, há. Cada governo faz questão de se distinguir do anterior em todos os aspectos. Ora, na ciência, mais do que uma brutal distinção precisávamos agora de alguma continuidade. A ciência é acumulação, construção continuada, pelo que não faz sentido querer, aqui e agora, ainda para cima sem aviso prévio nem discussão, mudar de “paradigma” na política de ciência. Pequenas mudanças podem fazer sentido, mas não rupturas. A palavra “paradigma” aliás é muito do gosto dos pós-modernos, que a foram beber a Kuhn, e não percebo por que é agora usada. É preciso regar a ciência para ela crescer mais. O sistema científico português ainda é jovem e relativamente frágil, tem de ser maior e mais forte. A árvore não estava suficientemente grande para ser “podada”, usando a infeliz linguagem agrícola em que o actual governo se inspira. Além do mais, é um enorme erro político criticar e interromper a política de crescimento de ciência levada a cabo nos últimos anos e que tão bons resultados tem dado do ponto de vista de qualificação de pessoas. Essa política foi, de resto, aplaudida pelos cidadãos, pelo que a sua interrupção é impopular.
P- A estabilidade política é importante para o enraizamento e evolução da ciência num país. Todavia, vemos casos em que isso não ocorreu mas em que havia sempre uma ênfase e uma aposta muito grande na ciência (vide o exemplo da Alemanha). O que se passa com Portugal? Somos, tradicionalmente, adversos à ciência? Existem aqui razões culturais? Porque não é ela capaz de se enraizar e ser vista, de forma consensual, como um garante fundamental para o futuro do país?
R- Em geral na Europa não há grandes discórdias quanto à necessidade de uma aposta continuada na ciência. Há uma cultura científica entranhada, isto é, reconhece-se que a ciência faz parte da cultura. Em Portugal há, porém, um cultura velha e relha, que, mais do que se opor à ciência, a ignora pura e simplesmente. Concordo que a ciência – e, como a ciência é uma forma de cultura, prefiro dizer a cultura em geral, incluindo nesta não só a ciência como as artes – podia e devia ser para nós um desígnio mobilizador. Mas aparecem, quando menos se espera, manifestações da tal cultura que ignora a ciência. Não temos ainda uma cultura científica sólida. A ciência no passado não foi suficientemente forte para que essa cultura surgisse. O actual ministro da Ciência Nuno Crato conhece a cultura científica, mas parece um homem isolado dentro do governo. Veja-se o ataque à ciência que foi feito pelo ministro da Economia.
P- No que se refere às empresas portuguesas, elas costumam fazer uma forte aposta I&D? Qual tem sido a tendência nos últimos anos? E, já agora, elas têm absorvido, em número considerável, os investigadores e especialistas que o nosso sistema de educação e científico tem vindo a criar nos últimos anos?
R- Há algumas empresas que fazem I&D, mas não são em número suficiente. Nem o sector de I&D dentro delas é suficientemente forte. Surgiram várias empresas baseadas em conhecimento – só para dar exemplos que conheço bem, veja-se o parque de indústrias de biotecnologia que se constituiu em Cantanhede, no Biocant, ou os resultados do Instituto Pedro Nunes ligado à Universidade de Coimbra. Mas são andorinhas que não fazem ainda a Primavera: isto é, os jovens formados cientificamente não estão a ser absorvidos em número suficiente, o seu valor não é reconhecido. Muito poucos doutorados estão nas empresas nacionais. Vêem-se obrigados a emigrar. Era preciso que os nossos empresários se apercebessem da enorme mais valia que são esses recursos humanos.
P- O que é necessário para consolidar, de vez, a ciência no nosso país?
R- Continuar a aposta feita nos últimos anos, continuando a fazer crescer o sistema científico e tecnológico, ao mesmo tempo que se melhorava a ligação ao ensino superior e às empresas, em particular facilitando o emprego científico tanto no público como no privado. Continuar o esforço feito na expansão da cultura científica, pois a ciência não pode crescer se não crescer o interesse por ela.por parte do público.
P- Ribeiro Sanches afirmou que “a educação era a chave da transformação social e económica”, tendo advogado (1) “uma escola pública, aberta a todos, embora duvidasse da igualdade completa entre os estudantes, (2) defendendo uma educação especial para as elites”. À luz da actualidade, as duas partes desta receita ainda são as mais indicadas para o século XXI?
R- A linguagem pode ser do século XVIII, mas as ideias de Ribeiro Sanches ainda hoje fazem, no essencial, sentido. Todos somos iguais, mas todos somos diferentes. Precisamos de uma boa escola pública, que proporcione iguais oportunidades a todos. Ninguém deve ser excluído da escola por motivos económicos. Mas depois temos de proporcionar o melhor aos que mostrarem, na escola, ser melhores. Devemos deixar os talentos mostrarem-se e desenvolverem-se em vez de os reprimirmos, num sistema e clima de uniformidade.
P- Dos quatro factores, que identifica no livro, para o atraso histórico da ciência em Portugal (o isolamento de Portugal, a falta de liberdade, a falta de meios e a iliteracia – sendo que incluo aqui a iliteracia científica), quais ainda constituem um problema a resolver?
R- No tempo de globalização, o isolamento geográfico já não será hoje problema. Num tempo de democracia, o mesmo se aplica à falta de liberdade. Quanto à falta de meios é um problema que persiste: Portugal continua a não ser tão rico como outros países europeus, o nosso PIB ainda é pequeno. Quanto à literacia, se o problema do analfabetismo está quase resolvido, não está o problema do analfabetismo científico. Este é um dos nossos grandes dramas, tanto como o analfabetismo “tout court” era há cem anos.
P- Na sua opinião, os responsáveis pelas políticas científicas do nosso país deveriam conhecer melhor a história e as vicissitudes da ciência em Portugal, para evitarem cometer os grandes erros que ocorreram no passado?
R- Sim, claro. Não percebo, sinceramente, por que é que a história da ciência foi abolida como disciplina de pleno direito pela Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT. Uma Fundação que não quer saber da história não ficará na história. O irónico é que Nuno Crato se distinguiu como um historiador da ciência e até um grande divulgador da história da ciência. Na FCT, porventura, não sabem isso.
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1 comentário:
O Brasil está passando por problemas semelhantes, sobretudo na questão dos analfabetos funcionais, o que resulta em um contingente grande de pessoas que votam mas que podem facilmente ser levadas por discursos demagógicos
Cordialmente do leitor brasileiro que vez por outra lê os artigos do seu blog
http://profeciasoapiceem2036.blogspot.com.br/
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