Luís Reis Torgal escreveu um artigo de grande interesse, divulgado no Público no passado dia 4 de Fevereiro, sobre a questão do financiamento da ciência em que tem ocupado grande parte das discussões nacionais.
Ninguém se espante que os governos, há algum tempo, e não só agora, tenham perdido a noção do valor crítico da ciência.
Todos os dias abro o jornal e vejo um artigo sobre a crise da ciência em Portugal, um dos últimos do PÚBLICO até sobre “aquilo que não tem sido dito no debate”. É como se a diminuição da concessão pela FCT das bolsas de estudo e a revolta que provocou entre os que não obtiveram bolsa – o que se compreende, dada a possível desaceleração no desenvolvimento da ciência e dada a lamentável situação de desemprego e de subemprego dos nossos mestres e doutores – fizessem vir ao de cimo todas as questões relativas à ciência.
E nesses discursos a ciência é por vezes apresentada de tal forma que é identificada como mais um “modo de produzir” do que como uma descoberta ou uma nova maneira de interpretar o mundo e a vida. Evidentemente que, neste contexto, ficam a perder, como, de resto, já há muito sucedia, algumas ciências sociais, mas também algumas ciências fundamentais ligadas à natureza e à matemática, mas até algumas tecnologias. O economicismo e o pragmatismo tomaram conta de tudo.
Falemos com franqueza e procuremos, ao menos, sugerir a necessidade de descer ao fundo dos problemas: neste país não há lugar para cientistas, como não há lugar para jornalistas, ou para professores, ou para artistas, ou para arquitectos, ou para electricistas, ou para carpinteiros, ou para comerciantes, ou para empregadas domésticas… Por isso se aconselharam os portugueses a emigrar ou a conseguir qualquer subemprego mal pago e com poucas ou muitas horas de trabalho, que os levassem a sair da situação estatística de “desempregados”. E por isso se utilizam chavões, como “empreendedorismo”, para não falar do desenvolvimento que escasseia ou para mascarar a frustração de muitos que têm apenas o desejo de ter um trabalho honesto, desempenhado e pago honestamente, como cientistas, professo-res, operários de uma fábrica…
Numa dada altura da minha vida académica (e ainda hoje) fui (e sou) contra o “processo de Bolonha”, não contra as (boas) intenções da “declaração” assinada em 1999 na cidade italiana onde surgiu a primeira universidade europeia, mas pela virtualidade trágica que ela já continha e que se veio a desenvolver. No fundo, está nela a potencialidade de fazer com que os estudantes permaneçam no ensino superior o mais tempo possível. Se a licenciatura - pouco exigente - não serve para nada, caminha-se para o mestrado, naturalmente menos exigente do que no passado. E como o mestrado para nada serve segue-se para o terceiro ciclo, o doutoramento, onde quase todos os estudantes podem entrar, em muitos casos não para obter uma habilitação que lhes dê acesso a um emprego ou à investigação científica, para que se sentem vocacionados, mas porque, com ilusões ou já desiludidos, não conseguiram nenhum trabalho anteriormente. Assim, vão coleccionando graus, passando finalmente da situação de doutorados para pós-doutorados e daí, por vezes, para a “sensação de incompetência” (num processo algo parecido com o “princípio de Peter”), que os leva a ter de procurar um outro lugar fora da ciência ou da profissão que queriam escolher, em Portugal ou no estrangeiro, onde, todavia, em alguns países, há mais possibilidades de trabalho científico.
Este país não é para velhos nem para novos. Os primeiros, no caso dos cientistas, são velhos de mais para pensarem de acordo com o sistema, sendo substituídos pelos mais novos melhor integrados, mas também menos qualificados na escala universitária e menos experientes e que, em certos casos, vão até avaliar os seus mestres, quando estes se propõem ser orientadores de projectos. Quanto aos no-vos, não sei se esta é “a geração melhor preparada” (como por aí se diz) ou a que possui mais graus e mais cursos. E também não sei se as regras burocráticas para obter bolsas acabam por escolher os melhores (a “nata da nata”, os que fazem “investigação de qualidade”, como dizem os nossos responsáveis) ou aqueles que melhor se integraram no sistema: os que têm mais artigos online e em inglês e que por isso são mais citados, que estiveram em centros que se presume de melhor qualidade (sobretudo no estrangeiro), que souberam criar de forma real ou artificial projectos internacionais… Seja como for, o que é preciso - diz-se - é criar “massa crítica”, mesmo que, individualmente ou em grupo, haja pouca consciência crítica no domínio da ciência, como no domínio da observação do que se passa na sociedade. É por isso que nas acções cívicas quase não há jovens, que procuram de preferência as juventudes partidárias que lhes dão o emprego que a competência não consegue alcançar.
O certo é que nenhum cientista ou aprendiz que se preze deve deixar de reflectir sobre o que anda a fazer neste mundo comandado pela lógica do capital. Todos os grandes cientistas tiveram e têm essa consciência, a começar (se não quisermos recuar a um passado longínquo) em Einstein, que escreveu sobre a crise de 1929 e que, com Arnold Berliner ou com Freud, pensaram numa sociedade de homens de ciência que interrogassem constantemente o mundo do saber, o que hoje pode não suceder, verificando-se sim, em muitas situações, o mundo da ciência e da tecnologia acríticas e dos gestores da sociedade capitalista sem ética. Ao menos que a actual situação provoque entre os jovens cientistas um desejo de pensar para além dos limites do seu ainda incipiente saber.
Temos um governo que deixou de pensar na democracia (política, cívica e social), que a meteu na gaveta em nome da recuperação económica, não em favor da sociedade, mas sim (dizem governantes e seus seguidores) da independência que se perdeu devido à culpa dos “outros”, esforçando-se por criar a ilusão que luta pelo país, que só vê representado no emblema que traz na sua lapela. Por isso ninguém se espante que os governos, há algum tempo, e não só agora, tenham perdido a noção do valor crítico da ciência. Os cientistas e os centros de investigação são para eles cada vez mais “excelentes”, ou não, à medida que se adaptam, ou não, ao seu sistema produtivo. A ciência é para eles também uma ideologia (o que, evidentemente, recusam), que acompanha o seu desejo de constituir uma sociedade à sua medida, à medida dos regulamentos que engendram, com os seus próprios “cientistas de eleição”.
Ciência… que ciência? Será preciso começar por aqui, em nome dos verdadeiros cientistas e daqueles aprendizes que humildemente procuram desenvolver o saber que foram colhendo ao longo da vida (já longa para uns e ainda curta para outros), não tanto através de graus obtidos, mas do trabalho duro no laboratório, no arquivo, na biblioteca, no seu labor (por vezes solitário e fora de horas) em casa à frente de livros e de folhas de papel ou do computador… A olhar sempre criticamente para a sociedade em que vivem.
Luís Reis Torgal
Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
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6 comentários:
"Se a licenciatura - pouco exigente - não serve para nada, caminha-se para o mestrado, naturalmente menos exigente do que no passado. E como o mestrado para nada serve segue-se para o terceiro ciclo, o doutoramento, "
a assim sucessivamente. Ora lá está! Para quê o estado investir em bolsas de canguru que para nada servem?
Eu sei como as teses de mestrado se fazem. Ouçam, descobertas do melhor! Há casos em que as pessoas até descobrem que nada sabem. Literalmente. E eis que vão à descoberta, a horas velhas e cansadas, da lei de Murphy, aquela que se refere à chave do sucesso " Crie uma necessidade e depois responda-lhe" enquanto se enterram pela areia da lei de Dunne "O terreno que fica para trás da retórica está com demasiada frequência minado de equívocos."
"Deitados nos catres, os cegos esperavam que o sono tivesse dó da sua tristeza."
Saramago, Zé: "Ensaio sobre a cegueira", Editorial Caminho, pág.97
A ver se me explico melhor:
O povo é para trabalhar, a dívida é por roubar e assim continuar, os impostos são para subir e eis que entramos na era da pós-ideologia. A escória científica, os que estudaram mas não servem, os indiferenciados, os excedentes deste raquítico organismo cerebral portucalense terão de engrossar as fileiras de emigrantes e partir para a multicultural Europa e arredores onde já começa a haver sintomatologias da sobrecarga de teorias multiculturalistas quase, quase no bom caminho ideológico do agnóstico cristão Breivik que matou uns quantos, arrimado de ódio aos marxistas.
Não há referência ao futuro, tudo serve para nada e brevemente poderemos delinquir atribuindo as culpas à falta de programas sociais, de perspetivas económicas, ao excesso de privações e de manifestações, à corrupção entre políticos, banqueiros e empresários. Que engorde Bonaparte com os restos do mais fraco.
Assim, podemos ocupar o tempo de três maneiras:
1. Ir a debates sobre a Leitkultur (cultura dominante), ficar com peito de pombo, uma suástica na testa e marchar o dia todo sem saber porquê;
2. Estacionar a almofada e suspirar “Ai que prazer ter um livro para ler e não o fazer” enquanto o mundo desmorona e cai;
3. Refletir muito como um sábio sofista de barbas felpudas e sandálias nos PES, com um batalhão de psicólogos e pastores atrás:
Jamais tivemos o amor
Que toda a criança deveria ter
Não somos delinquentes
Somos incompreendidos
Há algo bom lá no fundo de nós
O papá bate na mamã
O meu avô é comunista
A minha avó fuma haxixe
A minha irmã usa bigode
O meu irmão usa vestido
Meu Deus, por isso é que eu sou esta bagunça
Este rapaz não precisa de um divã
Mas de uma carreira útil
A sociedade pregou-lhe um truque terrível
E ele está doente sociologicamente
Dizem para eu arranjar um emprego
De soda jerker (barman de bebidas gaseificadas)
Assim eu seria um desleixado
Não sou antissocial
Sou apenas antitrabalho.
(Stephen Sondheim)
A bem dizer, a ciência não é poder e os cientistas por terem conhecimento não decorre daí que tenham o poder.
Por outro lado, poder não é ciência e quem detém o poder não detém, necessariamente, conhecimento científico.
Em rigor, o cientista apenas conhece a realidade.
A partir do momento em que age, já não é propriamente como cientista, mas como agente e aí, sim, exerce um poder.
A ciência não tem nada de perigoso, nem de mal, porque a ciência não interfere, nem altera a realidade. O perigo e o mal estão na ação e no agente.
É importante não confundir o conhecimento das coisas com a manipulação das coisas.
Sabendo nós que o poder não costuma estar nas mãos dos cientistas, mas que estes costumam estar nas mãos do poder, afigura-se altamente perigoso e de controle difícil ou impossível, um conhecimento da realidade, não pelo conhecimento em si mesmo, mas pela ação que esse conhecimento possibilita.
Diria que a associação da ciência à técnica tem algo de paradoxal, na medida em que a ciência é objetiva, imparcial, eticamente neutra e não tem objetivos, enquanto que a técnica corresponde à não aceitação da realidade. Nesta é que está o perigo e as ameaças.
in, http://escritosonline.blogspot.pt/2014/02/ciencia-tecnica-e-poder.html
Primeiro - ciência associa-se à conhecimento!
Segundo - eticamente neutra?
Terceiro - compromisso! Ciência.
Mas qual ciência? Isso existe em Portugal? Se existe eu desconheço, mas eu farei parte dos ignorantes generalizados, enquanto os cientistas serão os ignorantes especializados que é precisamente do que mais abunda após a obtenção do canudo.
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