“E assim cheguei até vós, ó homens de hoje, e ao país da educação. E o que me aconteceu? Não obstante toda a minha ansiedade, tive de rir. Nunca os meus olhos tinham contemplado algo tão manchado e heterogéneo.” (Friedrich Nietzche, 1844-1900).
Acabo de ler o comentário de um habitual leitor deste blogue, Eng. Ildefonso Dias, que agradeço e me impele ao esclarecimento da minha posição, expressa (como ele escreve em simpática referência) em vários posts sobre esta temática. Esclarecimento esse que reside, fulcralmente, em duas razões:
1.º: Ter como razão da verdadeira gravidade do statu quo do nosso ensino actual motivado, em grande parte, pela força de bloqueio sindical a qualquer mudança e pela caça despudorada a diplomas de licenciatura, ou mesmo de doutoramento, obtidos em escolas, de aquém e além fronteiras, de duvidosa qualidade e seriedade, que servem para satisfazer o ego dos seus possuidores, atestando a sua ignorância numa tentativa desesperada em continuar a manter, em imagem pessoana, “cadáveres adiados que procriam”!
2.º: Ter como outra razão o facto de os professores de Filosofia (por serem formados apenas em universidades), não sofrerem na pele o látego da injustiça dos professores com mestrados universitários em Matemática ou Biologia ao terem a concorrência de diplomados por escolas superiores de educação habilitados a ministrarem, em simultâneo, Matemática e Ciências da Natureza no 2.º ciclo do ensino básico. Acresce o facto de um simples valor a mais na nota de curso dos diplomas politécnicos, relativamente aos mestrados universitários, os colocarem à frente em concursos de acesso à docência sem ter em conta a respectivas exigências escolares.
Em prova de que esta minha posição encontra respaldo em posições desde sempre por mim defendidas, transcrevo um dos meus posts (suficientemente polémico para suscitar 17 comentários), publicado no “De Rerum Natura” , com o título “A Implementação da Prova de Acesso à Carreira Docente” (28/06/2012):
“Em Abril deste ano, foi publicada, na imprensa diária, uma notícia de que transcrevo abaixo o que dela retive de essencial, e que me faz incorrer na repetição de argumentos por mim já apresentados em outras ocasiões e em idênticas circunstâncias, v.g., no meu post publicado neste blogue: “O exame de acesso à carreira docente".
A supracitada notícia reporta-se à declaração aos jornalistas do Ministro da Educação, Nuno Crato, à margem de um almoço no American Club de Lisboa, trazendo novamente para a discussão pública uma questão que corria o risco de se eternizar. Disse Nuno Crato: "Queremos dar, na formação inicial de professores, mais peso aos conteúdos. Ninguém pode ensinar muito bem se não dominar aquilo que vai ensinar. E estamos a introduzir uma prova de acesso à carreira docente, que, aliás, está na lei, mas que vai este ano ser implementada”.
Sobre esta exigência do domínio da matéria que se vai ensinar, já Eça não contemporizava: “Para ensinar há uma formalidade a cumprir: saber”! Não indo tão longe no tempo, em finais de 2007, lia-se na imprensa este título: “A vice-reitora da Universidade de Coimbra defende exame para acesso à docência”. De forma institucional, ficou a saber-se que esta professora catedrática da Faculdade de Letras, Cristina Robalo Cordeiro, pois é dela que se trata, subscreveu um parecer suportado em três princípios ": 1.“Qualidade de ensino e equidade de acesso à profissão docente”. 2. “Exigência acrescida para uma competitividade a nível europeu”. 3. “Reconhecimento de que nunca a pedagogia consegue que um professor ensine aquilo que não sabe”.
Em face de ocasiões anteriores em que este assunto esteve em cima da mesa, é de esperar que, de novo, se apreste a acorrer belicosa a guarda pretoriana da mediocridade a gritar em pleno regime republicano: “Aqui- d’el- rei”!. A título de mero exemplo, lia-se em notícia da Lusa ter a Fenprof rejeitado que os professores sejam obrigados a realizarem um exame de ingresso na carreira por considerarem este exame “injusto e sem sentido” (24/01/2009).
Injusto e sem sentido? Falemos claro! Injusto e sem sentido, isso sim, é o facto dos alunos diplomados pelas escolas superiores de educação passarem à frente dos alunos das faculdades nos concursos para professores do 2.º ciclo do básico, através, tão-só, da classificação do respectivo diploma de curso. E esta situação muito veio agudizar-se, nos dias de hoje, devido ao facto de hoje as escolas superiores de educação formarem docentes não só para o 1.º e 2.º ciclos, como até então, mas, outrossim, para o 3.º ciclo do básico.
Desta forma, um escasso valor, de nota de curso, superioriza-se à maior complexidade de currículos e exigência de formação exigida pelas universidades.
Mas se como isto ainda seja pouco, um memorando do Conselho Coordenador dos Institutos Politécnicos (05/05/2012), subscrito pelo actual presidente do Instituto Politécnico de Coimbra, ex-director da ESE de Coimbra, Rui Antunes, ARISEPE e ESE de Bragança, Castelo Branco, Leiria, Porto, Setúbal, Viana do Castelo e Viseu, defende a formação de professores do ensino secundário a cargo não só das universidades, mas também das escolas superiores de educação quando conclui que “existem razões suficientes para que a interpretação da legislação seja no sentido de se considerar que a habilitação para a docência não está condicionada pela instituição que lecciona os cursos, mas apenas pela natureza desses cursos e, nesse caso, não faz sentido distinguir os docentes formados nas ESE daqueles que são formados nas universidades”.
É de recear, portanto, que, em desrespeito pela Universidade Portuguesa, apareça um qualquer iluminado que tente demonstrar não haver qualquer diferença entre coisas diferentes. Aliás, sem qualquer novidade por se tornar émulo desta personagem descrita por Eça:
“Caso surpreendente! E sobretudo surpreendente para mim porque descubro que a Academia tem sobre os livros a opiniãodo meu velho criado Vitorino! Este benemérito, quando em Coimbra lhe mandávamos buscar a um cacifo, apelidado Biblioteca Alexandria, um livro de versos, trazia sempre um dicionário, um Ortolan ou tomo das Ordenações; e se, por maravilha, nos apetecia justamente um destes tomos de instrução, era certo aparecer Vitorino com Lamartine ou a ‘Dama das Camélias’. Os nossos clamores de indignação deixavam-no superiormente sereno. Dava um puxão ao colete de riscadinho, e murmurava com dignidade: - ‘Isto ou aquilo tudo são coisas em letra redonda’”.
Aliás, a necessidade de exigência na formação de docentes foi evidenciada numa intervenção do professor catedrático e historiador, actualmente jubilado, Luís Reis Torgal, num debate, promovido pela Associação Académica de Coimbra (19/02/2003). Nele insurgiu-se ele contra a formação de professores para o 2.º ciclo do ensino básico, a cargo, simultâneo, das faculdades e escolas superiores de educação. Mereceu-lhe, igualmente, veemente crítica o verdadeiro escândalo da atribuição do grau de licenciado a diplomados pelas antigas escolas do magistério primário, após a frequência de cursos de complemento de habilitações feitos em escassos meses em escolas privadas.
E isto é tanto mais insólito por as escolas superiores de educação terem sido criadas, apenas para a formação de professores do 1.º ciclo do básico (antigo ensino primário) e educadores de infância provendo este ensino politécnico em regiões carenciadas de ensino superior. Mas, com a complacência, ou mesmo pusilanimidade dos poderes públicos, logo elas se instalaram de armas e bagagens, em cidades de longa e cimentada tradição universitária, como Coimbra, Lisboa e Porto.
Last but not least, o que acima se relatou sobre a rejeição sindical da Fenprof à prova de acesso à carreira docente (aliás, muito a seu jeito e em coerência com a sua posição em criticar tudo quanto sejam avaliações, ainda que mesmo no sentido de “separar o trigo do joio” ) pode ser sintetizado, de certo modo, nesta frase de Ortega y Gasset : “O ódio aos melhores”!
Post scriptum: A minha posição reporta-se, apenas, à necessidade imperiosa de uma prova de acesso que não deixe passar, em crivo apertado, candidatos à docência que para além da matéria a leccionar não demonstrem conhecimentos de cultura geral (com escreveu o médico e académico Abel Salazar, “um médico que só sabe de Medicina, nem Medicina sabe”!) e de português (correcção de escrita e correcta interpretação de textos literários ou outros da vida corrente). Quanto ao conteúdo dessas provas, como se diz, em linguagem não erudita, “a conversa é outra”.
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Por favor não contribuam para um estado de loucura
Artigo de J. Norberto Pires, colaborador neste blogue, que saiu no Público no dia 24 de Novembro, dia da Cultura Científica e Tecnológica:
Li estupefacto a notícia sobre o corte de relações entre as Universidades e o Governo. Já tinha dito isto várias vezes e repito: muitos dos que nos governam, e
muitos dos que nos querem governar, passam a vida com os olhos no
passado, ignoram o presente e não têm uma ideia de colectivo,
necessariamente de longo prazo, vivendo num desesperante
curtíssimo-prazo concentrados no centro geométrico do seu próprio
umbigo. Não pode ser esse o caso das Universidades, do Ensino superior e
da Ciência.
Espero muito mais das Universidades, dos Reitores e do Ministro. A solução não pode ser deixar de conversar, não apresentar razões e forçar decisões, cortar relações ou, sequer, fazer qualquer tipo de pressão deste tipo. Portugal precisa de conversar e debater o que quer para o futuro. Sem dogmas e sem verdades feitas. Tem mesmo de repensar a sua vida. E isso faz-se falando, discutindo, confrontando argumentos, envolvendo a população.
Cortar relações é um comportamento inaceitável a este nível.
Não esclarecer ou não clarificar devidamente, as vezes que forem necessárias, as razões de uma medida, mesmo que seja de emergência, é também incompreensível.
Não debater, envolvendo todos, é repetir no erro.
Qual erro?
O erro que temos vindo a perpetuar.
Tudo em Portugal é feito em circuito fechado.Com uns quantos, tidos como elites em cuja sabedoria é suposto que confiemos. E tem sido assim, sempre assim. Mesmo quando verificamos que as elites nos lixam, e pensam é nelas, nos seus grupos de pressão e na interminável lista de “compromissos” que foram coleccionando. Mesmo quando, finalmente, verificamos que aquilo que “idealizam” não tem nada a ver com a realidade, a tal que eles nunca conheceram devidamente porque nunca se preocuparam com isso, mas sobre a qual teorizam e decidem, até porque nós também falhamos com o nosso espírito crítico e embarcamos nas facilidades do momento. Mesmo quando verificamos que não são, em muitos casos, elites nenhumas, quer porque são muito novos, ou não sabem nada, ou não têm experiência, ou não têm cultura democrática, ou porque são egocêntricos, ou porque são tudo isso ao mesmo tempo, ou, infelizmente, porque as suas atitudes mostram que não passam de meninos/meninas grandes que nunca cresceram e não têm a dimensão humana, cívica, cultural, de Estado que se exige a quem tem de estar sempre, mas sempre, com os olhos postos no horizonte.
Dizem-nos depois, quando as coisas correm mal, que é preciso MUDAR, deitar fora e fazer de novo, porque afinal estava mal, estava errado, não foi bem pensado. E iniciam um processo interminável de apontar o dedo e enjeitar responsabilidades.
Da minha parte estou farto disto.
Não aceito que mexam uma vírgula na Constituição Portuguesa sem debate, sem envolver todos, sem uma forte mobilização do país.
Não aceito que comprometam mais, e ainda mais, o futuro deste país sem um amplo debate nacional sobre o que queremos ser, para onde queremos ir e sobre as opções reais que temos.
Não aceito verdades feitas, nem factos consumados.
Não aceito que uns garotos, sem mundo e sem vida, me digam que só há um caminho. Eu sei, de vida feita e experiência vivida, que há sempre vários caminhos. E várias consequências e vários riscos.
Por isso, espero dos Reitores, da Universidade e do ministro Crato um comportamento exemplar que tenha sempre, mas sempre, a porta do diálogo escancarada.
Por favor não contribuam para um Estado de Loucura.
O que todos neste processo têm pela frente é um enorme e doloroso desafio. Que têm de enfrentar, reorganizando, tornando mais eficiente e diversificando fontes de financiamento. Colocar esse desafio, de forma correta e contratualizada, é a obrigação do Governo que sabe muito bem que tem na Universidade, e na sua capacidade de inovar e de, efectivamente, mudar, um dos seus maiores e melhores motores.
Espero do ministro Crato esse desafio, proposto, negociado e contratualizado olhos-nos-olhos com as Universidades e o país. É agora o momento.
J. Norberto Pires
ABRE EXPOSIÇÃO SOBRE O ESPAÇO EM LISBOA
Informação recebida do Ciência Viva (Marte na imagem):
No Espaço mas de olhos postos na Terra, os satélites europeus observam a cada instante as nuvens, os oceanos e os continentes ou permitem-nos conhecer com rigor a nossa localização. Mais de 30 mil aplicações são hoje usadas para optimizar os transportes, aumentar a eficiência na agricultura e nas pescas, proteger o ambiente e melhorar a nossa segurança.
A European Space Expo, patente no Terreiro do Paço já a partir de amanhã, 28 de Novembro, revela ao público de que forma as tecnologias espaciais têm um impacto directo nas nossas vidas.
Esta é uma exposição da Comissão Europeia que em Portugal tem como parceiros a Ciência Viva, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, a Câmara Municipal de Lisboa, o Planetário Calouste Gulbenkian Centro Ciência Viva e o Turismo de Lisboa. Visitantes de todas as idades poderão conhecer e experimentar a enorme variedade de aplicações das tecnologias espaciais de uma forma directa e interactiva. A entrada é gratuita.
Horário: Seg - Sex, das 09.00 às 19.00. Fins-de-semana: das 10.00 às 22.00.
Durante a permanência da exposição em Lisboa, os parceiros organizam um programa de eventos para diferentes públicos. A Ciência Viva promove as seguintes iniciativas:
29 de Novembro, sexta-feira, 16.00 às 17.30, Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva
Os investigadores Manuel Paiva e Carlos Fiolhais debatem com o público O Espaço e a Cultura Científica, a propósito da reedição do livro Como Respiram os Astronautas, da Colecção Ciência Aberta da Gradiva. A entrada é livre.
Manuel Paiva é professor honorário de Física da Universidade Livre de Bruxelas, onde foi director do Laboratório de Física Biomédica. Participou em dez missões espaciais da NASA e da ESA, três das quais como investigador principal.
Carlos Fiolhais é professor catedrático de Física na Universidade de Coimbra. É o cientista português com o artigo mais citado. Actualmente é editor da colecção Ciência Aberta da editora Gradiva.
7 de Dezembro, Sábado, 16.00, Cinema S. Jorge, Lisboa
Conferência de Natal Seis meses fora deste Mundo!, pelo astronauta Paolo Nespoli.
O astronauta europeu partilha o que aprendeu sobre a Terra, a vida e sobre si mesmo durante os seis meses que passou a bordo da Estação Espacial Internacional.
Esta é uma conferência para todos os públicos, com entrada livre e tradução simultânea. A conferência é organizada pela Ciência Viva e tem o apoio da Agência Espacial Europeia (ESA), da Comissão Europeia, da Câmara Municipal de Lisboa e da EGEAC.
O Humor de Stephen Leacock: "Uma cultivada insolência"
Do crítico literário
Eugénio Lisboa dá-se à estampa este belíssimo texto sobre o humor (publicado inicialmente
no Jornal de Letras, de que é cronista habitual), tão oportuno na tristeza
de um país em que há mais razões para chorar que para rir:
“Às vezes, acontece: compramos um livro que nos chama a
atenção e nos acicata o apetite de o lermos e, depois, por qualquer razão,
outros passam à frente e este fica esquecido por mais de uma década...
Aconteceu-me com esta sumptuosa antologia de um dos maiores humoristas do
século XX, cuja obra se situa entre 1910 e 1945: Stephen Leacock, canadiano de
nacionalidade, que nasceu em 1869 e faleceu em 1944. A antologia a que me
refiro – The Penguin Stephen Leacock,
Selected and introduced by Robertson Davies –, publicada em 1981, jazia na minha
biblioteca, desde 1982, ano em que a comprei, em Londres. Só agora a fui ler.
Leacocock foi admirado (e utilizado) por grandes actores cómicos como Jack
Benny, a quem Groucho Marx apresentou as obras do grande escritor (e professor)
canadiano.
As pessoas que nos fazem rir nem sempre são de feitio fácil. No geral, são até grandes pessimistas (como Mark Twain) ou francamente hipocondríacos, como Marcel Aymé. Dizia precisamente Mark Twain, com um saber de experiências feito, que: “A fonte secreta do humor não é a alegria mas sim a tristeza. Não há humor no céu.” Quanto a Leacock, Robertson Davies informa-nos, cautelosa e eufemisticamente, de que o autor de “My Financial Career” “não era, necessariamente, um homem de temperamento solar e descuidado”, aludindo, enviesadamente, à sua “têmpera imperiosa”. Alguma razão terão os humoristas para a sua amargura e para o seu pessimismo.
O estado do mundo há muito que não promete grandes coisas. O conhecido político e embaixador americano Henry Cabot Lodge, olhando o mundo do seu tempo, oferecia-nos este pálido rebuçado: “Esta organização [a ONU] foi criada para nos impedir de irmos para o inferno. Não foi criada para nos levar para o céu.” De qualquer modo, se outras razões não tivessem, os humoristas teriam, desde logo, boas razões de queixa, por a generalidade dos críticos e outros escritores os olharem como cultores de “literatura ligeira”. O escritor E. B. White notava-o, reprovadoramente: “O mundo gosta do humor, mas trata-o com paternalismo.” A Academia Sueca, por exemplo – e bem em contradição com o espírito do patrono do Prémio Nobel – parece desprezar o eminente contributo dado à literatura e ao bem-estar das pessoas por escritores do calibre de Mark Twain, P. G. Wodehouse, Dorothy Parker, Ring Lardner, DamonRunyon, O.Henry, Evelyn Waugh, Art Buchwald, H. L. Mencken, Robert Benchley, James Thurber, Groucho Marx, Woody Allen, S. J. Perelman e este que hoje aqui nos traz Stephen Leacock. Entre outros. Tudo, escritores, no meu humilde pensar, bem mais merecedores do augusto galardão do que tantíssimas mediocridades, de pendor soturno, qualidade artística mais do que duvidosa e teor de pensamento muito questionável. Além do mais, os grandes humoristas escrevem todos admiravelmente, o que nem sempre é o caso de muitos nobelizados.
A ideia de que o humorista não é sério ou não é para levar a sério é uma ideia sem pernas para andar. A brincar, se dizem sérias e importantes verdades, ou, como queria o espírito acerado desse incómodo irlandês, que se chamava George Bernard Shaw, “a vida não cessa de ser cómica quando alguém morre, do mesmo modo que não cessa de ser séria quando as pessoas riem.”
É certo que, hoje em dia – e Portugal não é excepção – os humoristas têm a vida facilitada, devido à abundância de matéria prima. Dizia o impagável WillRogers (e o que disse vale para hoje e para “aqui”) que “não é avaria ser humorista quando todo o governo trabalha para eles.” De facto, basta abrir a televisão e ouvir um ministro falar: não é preciso ir à caça de mais tema!
Voltando a Leacock, recomendo-vos, de modo geral, tudo o que escreveu, e, de modo particular, as coisas atrevidas que glosou sobre o mundo da finança e da governação, o mundo das conferências, a Universidade de Oxford, os escritores clássicos da Grécia e de Roma, etc.
Stephen Leacock cultiva magistralmente a insolência e até o ultraje, na boa linha de Aristóteles, que considerava o “espírito” como “insolência cultivada”. A este respeito, o ensaio Homer and Humbug é uma verdadeira delícia de atrevimento fronteiriço. O Professor Leacock confessa que foi, durante muito tempo, "céptico quanto aos clássicos”. Tinha uma grande facilidade em manipular os textos dos grandes nomes gregos e latinos, mas, admite ele, nesse ensaio, “nunca tirei grande prazer disso. Menti a esse respeito. A princípio, menti, talvez por vaidade. (...) Mais tarde, menti, por hábito; ainda mais tarde, porque, no fim de contas, os clássicos eram tudo quanto eu tinha e, por conseguinte, sobrevalorizei-os.”
Compreende-se, que diabo! Os clássicos é que lhe davam o pão com manteiga e, por outro lado, é humano tentar dar algum valor àquilo que possuímos. Nesta linha, esclarecia-nos um pouco mais: “Foi assim que vi um cão equivocado valorizar um cachorro com a perna partida e uma criança pobre amimar uma boneca sem vida e com a serradura a sair-lhe do corpo. De igual modo, eu amimei o meu Homero bem morto e o meu escavacado Demóstenes, embora soubesse, no mais fundo do meu coração, que há mais serradura no estômago de um autor moderno do que em toda aquela tralha de clássicos.” Não me estendo mais, nesta citação, mas recomendo vivamente, ao leitor, que procure obter o ensaio, inserto no livro Behind the Beyond, publicado em 1913.
Este género de humor, especialmente afrontoso (e afronta, sobretudo, a hipocrisia dos scholars) e à beira do ultraje, é também cultivado pelo grande H. L. Mencken, que escreve coisas como esta: “Leva bastante tempo, a uma pessoa naturalmente crédula, para se reconciliar com a ideia de que Deus, no fim de contas, não a vai ajudar.” Outro exemplo, particularmente contundente, é o deste “graffito” anónimo, aparecido em 1975: “Deus não está morto. Está vivo, mas a trabalhar num projecto muito menos ambicioso.” O afrontoso pode revestir conotações brejeiras, como neste aforismo de Lichtenberg: “Aquilo a que se chama «coração» fica muito abaixo do último botão do colete.”
Mas, voltando ainda a Leacock, não queria furtar-vos ao prazer de vos dar esta amostra da desenvoltura com que trata a famosa Universidade de Oxford. Depois de nos dar um quadro propiciatório (“Tem professores que nunca ensinam e alunos que nunca aprendem”), oferece-nos o formato, deliciosamente “inglês” do “professor”: “era suposto ser uma espécie de pessoa venerável, com bigodes, de uma brancura de neve, que chegavam até ao estômago. Esperava-se dele que vadiasse pelo campus, esquecido do mundo à sua volta. Se lhe acenavam, não dava por nada. De dinheiro, nada sabia; de negócios, muito menos. Era, nas orgulhosas palavras dos seus administradores, «uma criança»”. Mas, por outro lado, observava Leacock, “ele tinha, dentro de si, um reservatório de saber de tal profundidade, que era praticamente sem fundo. Nada, deste saber, parecia ser de qualquer valor material ou comercial para ninguém. A sua utilidade residia em salvar a alma e alargar o espírito.”
Na introdução que escreveu para a bela antologia The Best of Modern Humour (AllenLane, London, 1983), Mordecai Richler informa-nos de que uma jovem senhora de Oklahoma City perguntou um dia ao humorista James Thurber se havia algumas boas regras para escrever histórias cómicas. O grande humorista respondeu, entre outras coisas ligeiramente menos significativas, que se devia evitar, a todo o custo, escrever histórias “acerca de canalizadores que passam por cirurgiões, de xerifes que se assustam com o tiroteio, de psiquiatras que dão em doidos com pacientes do outro sexo, de médicos que desmaiam à vista de sangue, de raparigas adolescentes que sabem mais de sexo do que os pais e, por fim, de anões que se verifica serem os pais de um matulão com cem quilos de peso.” Em suma, evitar o uso grosseiro e estafado do óbvio. Em nenhum destes pecados, juro, incorre Stephen Leacock.
Para terminar, faço ao leitor um pedido: caso estes exemplos de humor mais ou menos afrontoso ponham na sua (do leitor) cabeça a ideia oportunista de um mestrado sobre “o sentido profundo e transcendente do humor em José Duro”, peço-lhe empenhadamente que desista – lembre-se do que, a este respeito, observou o inimitável Robert Benchley: “Definir e analisar o humor é o passatempo de pessoas destituídas de humor”. Fica avisado. E diga-me quando a sua dissertação de mestrado vier à luz.
As pessoas que nos fazem rir nem sempre são de feitio fácil. No geral, são até grandes pessimistas (como Mark Twain) ou francamente hipocondríacos, como Marcel Aymé. Dizia precisamente Mark Twain, com um saber de experiências feito, que: “A fonte secreta do humor não é a alegria mas sim a tristeza. Não há humor no céu.” Quanto a Leacock, Robertson Davies informa-nos, cautelosa e eufemisticamente, de que o autor de “My Financial Career” “não era, necessariamente, um homem de temperamento solar e descuidado”, aludindo, enviesadamente, à sua “têmpera imperiosa”. Alguma razão terão os humoristas para a sua amargura e para o seu pessimismo.
O estado do mundo há muito que não promete grandes coisas. O conhecido político e embaixador americano Henry Cabot Lodge, olhando o mundo do seu tempo, oferecia-nos este pálido rebuçado: “Esta organização [a ONU] foi criada para nos impedir de irmos para o inferno. Não foi criada para nos levar para o céu.” De qualquer modo, se outras razões não tivessem, os humoristas teriam, desde logo, boas razões de queixa, por a generalidade dos críticos e outros escritores os olharem como cultores de “literatura ligeira”. O escritor E. B. White notava-o, reprovadoramente: “O mundo gosta do humor, mas trata-o com paternalismo.” A Academia Sueca, por exemplo – e bem em contradição com o espírito do patrono do Prémio Nobel – parece desprezar o eminente contributo dado à literatura e ao bem-estar das pessoas por escritores do calibre de Mark Twain, P. G. Wodehouse, Dorothy Parker, Ring Lardner, DamonRunyon, O.Henry, Evelyn Waugh, Art Buchwald, H. L. Mencken, Robert Benchley, James Thurber, Groucho Marx, Woody Allen, S. J. Perelman e este que hoje aqui nos traz Stephen Leacock. Entre outros. Tudo, escritores, no meu humilde pensar, bem mais merecedores do augusto galardão do que tantíssimas mediocridades, de pendor soturno, qualidade artística mais do que duvidosa e teor de pensamento muito questionável. Além do mais, os grandes humoristas escrevem todos admiravelmente, o que nem sempre é o caso de muitos nobelizados.
A ideia de que o humorista não é sério ou não é para levar a sério é uma ideia sem pernas para andar. A brincar, se dizem sérias e importantes verdades, ou, como queria o espírito acerado desse incómodo irlandês, que se chamava George Bernard Shaw, “a vida não cessa de ser cómica quando alguém morre, do mesmo modo que não cessa de ser séria quando as pessoas riem.”
É certo que, hoje em dia – e Portugal não é excepção – os humoristas têm a vida facilitada, devido à abundância de matéria prima. Dizia o impagável WillRogers (e o que disse vale para hoje e para “aqui”) que “não é avaria ser humorista quando todo o governo trabalha para eles.” De facto, basta abrir a televisão e ouvir um ministro falar: não é preciso ir à caça de mais tema!
Voltando a Leacock, recomendo-vos, de modo geral, tudo o que escreveu, e, de modo particular, as coisas atrevidas que glosou sobre o mundo da finança e da governação, o mundo das conferências, a Universidade de Oxford, os escritores clássicos da Grécia e de Roma, etc.
Stephen Leacock cultiva magistralmente a insolência e até o ultraje, na boa linha de Aristóteles, que considerava o “espírito” como “insolência cultivada”. A este respeito, o ensaio Homer and Humbug é uma verdadeira delícia de atrevimento fronteiriço. O Professor Leacock confessa que foi, durante muito tempo, "céptico quanto aos clássicos”. Tinha uma grande facilidade em manipular os textos dos grandes nomes gregos e latinos, mas, admite ele, nesse ensaio, “nunca tirei grande prazer disso. Menti a esse respeito. A princípio, menti, talvez por vaidade. (...) Mais tarde, menti, por hábito; ainda mais tarde, porque, no fim de contas, os clássicos eram tudo quanto eu tinha e, por conseguinte, sobrevalorizei-os.”
Compreende-se, que diabo! Os clássicos é que lhe davam o pão com manteiga e, por outro lado, é humano tentar dar algum valor àquilo que possuímos. Nesta linha, esclarecia-nos um pouco mais: “Foi assim que vi um cão equivocado valorizar um cachorro com a perna partida e uma criança pobre amimar uma boneca sem vida e com a serradura a sair-lhe do corpo. De igual modo, eu amimei o meu Homero bem morto e o meu escavacado Demóstenes, embora soubesse, no mais fundo do meu coração, que há mais serradura no estômago de um autor moderno do que em toda aquela tralha de clássicos.” Não me estendo mais, nesta citação, mas recomendo vivamente, ao leitor, que procure obter o ensaio, inserto no livro Behind the Beyond, publicado em 1913.
Este género de humor, especialmente afrontoso (e afronta, sobretudo, a hipocrisia dos scholars) e à beira do ultraje, é também cultivado pelo grande H. L. Mencken, que escreve coisas como esta: “Leva bastante tempo, a uma pessoa naturalmente crédula, para se reconciliar com a ideia de que Deus, no fim de contas, não a vai ajudar.” Outro exemplo, particularmente contundente, é o deste “graffito” anónimo, aparecido em 1975: “Deus não está morto. Está vivo, mas a trabalhar num projecto muito menos ambicioso.” O afrontoso pode revestir conotações brejeiras, como neste aforismo de Lichtenberg: “Aquilo a que se chama «coração» fica muito abaixo do último botão do colete.”
Mas, voltando ainda a Leacock, não queria furtar-vos ao prazer de vos dar esta amostra da desenvoltura com que trata a famosa Universidade de Oxford. Depois de nos dar um quadro propiciatório (“Tem professores que nunca ensinam e alunos que nunca aprendem”), oferece-nos o formato, deliciosamente “inglês” do “professor”: “era suposto ser uma espécie de pessoa venerável, com bigodes, de uma brancura de neve, que chegavam até ao estômago. Esperava-se dele que vadiasse pelo campus, esquecido do mundo à sua volta. Se lhe acenavam, não dava por nada. De dinheiro, nada sabia; de negócios, muito menos. Era, nas orgulhosas palavras dos seus administradores, «uma criança»”. Mas, por outro lado, observava Leacock, “ele tinha, dentro de si, um reservatório de saber de tal profundidade, que era praticamente sem fundo. Nada, deste saber, parecia ser de qualquer valor material ou comercial para ninguém. A sua utilidade residia em salvar a alma e alargar o espírito.”
Na introdução que escreveu para a bela antologia The Best of Modern Humour (AllenLane, London, 1983), Mordecai Richler informa-nos de que uma jovem senhora de Oklahoma City perguntou um dia ao humorista James Thurber se havia algumas boas regras para escrever histórias cómicas. O grande humorista respondeu, entre outras coisas ligeiramente menos significativas, que se devia evitar, a todo o custo, escrever histórias “acerca de canalizadores que passam por cirurgiões, de xerifes que se assustam com o tiroteio, de psiquiatras que dão em doidos com pacientes do outro sexo, de médicos que desmaiam à vista de sangue, de raparigas adolescentes que sabem mais de sexo do que os pais e, por fim, de anões que se verifica serem os pais de um matulão com cem quilos de peso.” Em suma, evitar o uso grosseiro e estafado do óbvio. Em nenhum destes pecados, juro, incorre Stephen Leacock.
Para terminar, faço ao leitor um pedido: caso estes exemplos de humor mais ou menos afrontoso ponham na sua (do leitor) cabeça a ideia oportunista de um mestrado sobre “o sentido profundo e transcendente do humor em José Duro”, peço-lhe empenhadamente que desista – lembre-se do que, a este respeito, observou o inimitável Robert Benchley: “Definir e analisar o humor é o passatempo de pessoas destituídas de humor”. Fica avisado. E diga-me quando a sua dissertação de mestrado vier à luz.
O ESTADO SEM PAPEL
Minha crónica no Público de hoje (na imagem;: cartoon de um jornal venezuelano alusivo à falta de papel naquele país):
O Estado português está quase
falido. Um bom indicador da proximidade da falência é a falta de papel nos serviços públicos. Neste
final do ano, já não há papel nas universidades e nas repartições de impostos, e
só restam algumas folhas nas esquadras de polícia.
Eu sabia que, nas instituições de
ensino superior, há já alguns meses que o papel estava em racionamento, em face
do drástico aperto orçamental. Agora acabou. Os cursos e projectos que eram de papel
e lápis passaram a ser só de lápis, aproveitando-se as costas do papel usado. O
pior é que a maior parte dos cursos e projectos exigem experiências laboratoriais.
O ministro da Educação e Ciência, um renomado matemático, não sentirá
porventura com suficiente acuidade as necessidades dos químicos, que além de
papel e lápis precisam de vidros e reagentes, pelo que foi bastante oportuna a
reacção dos reitores, em nome dos docentes e investigadores.
Recentemente, numa Repartição de
Finanças onde fui cumprir uma obrigação fiscal, fiquei a saber que lá também já
não há papel. Quiseram não só ver o meu cartão de cidadão, um costume muito
português, como também ficar com fotocópia dele, um outro costume muito nosso.
Não sei por que razão os serviços do Estado querem, repetidamente, cópia de
informação que, algures, lá têm e poderiam obter facilmente se acaso falassem
uns com os outros. Mas, habituado que estou a passar o cartão a funcionários do
Estado, autorizei o que estava à minha frente a fazer a respectiva cópia. Fiquei,
porém, surpreso quando ouvi que eu é que tinha de entregar a cópia. Como
contribuinte empenhado numa solução rápida, prontifiquei-me a ajudar do outro
lado do balcão. Mas não, ali ninguém, nem eles nem eu, podia fotocopiar. Porquê?
Porque, disseram-me, não havia papel. Ao faltar nos cofres o papel-moeda, estava
a faltar nos serviços a moeda para o papel. Só então me apercebi das verdadeiras
proporções da crise: As Finanças, que
sempre tinham tido montes de papel, agora nem uma resma têm. Eu, que não tinha comigo
nenhuma folha, ofereci-me, condoído, para ir buscar algum papel a minha casa
(estaria a casa de banho deles também carente e não seria melhor trazer um rolo?). Não, não queriam o meu papel. O meu papel seria ir ao quiosque da
esquina pedir uma fotocópia. Queriam de mim um contributo, ainda que modesto,
ao comércio local. Estava perante uma parceria público-privada.
Foi nessa altura que me surgiu, num
clique, uma saída para a falta de papel nas Finanças. Simples, muito simples. As
Finanças cobrariam as fotocópias aos
contribuintes que ousassem aparecer com os documentos mas sem as cópias na mão.
Como nas Finanças um cidadão deixa o couro e o cabelo, pagar uma mera folha A4
não seria para ele significativo. Todos juntos pagaríamos a resma. Mas não, assim
como não aceitaram o meu papel, também não quiseram saber do meu simplex. Uma vez que a negativa foi de
um funcionário, que não funciona por míngua de papel, pode ser que que a ministra
de Estado e das Finanças aceite o pagamento das fotocópias como uma ajuda ao Estado depauperado. O Ministério das Finanças poderia até lançar
um imposto do papel. Quer papel? Pague! As florestas agradeceriam.
Estou, claro, a partir do
princípio de que as Finanças, viciadas como estão em papel, não podem passar
sem ele. Mas o facto é que podem, se fizerem um conveniente desmame. Hoje em
dia há scanners e computadores baratos que podem fazer e guardar uma
cópia de qualquer documento, prescindindo por completo do papel. Na Repartição
podiam ter digitalizado o meu cartão e guardado os bits bem guardadinhos. Receio, contudo, que o nosso Estado continue
a andar aos papéis, sendo moderno só na aparência. É certo que a Direcção-Geral
dos Impostos envia cartas intimidativas pela Internet, mas não é menos certo
que elas seguem amiúde para o destino errado. Há dias recebi um email
oficial ameaçando-me por não ter feito a declaração do IRS, quando eu a tinha apresentado no prazo. Não
perderam o papel, porque a declaração tinha sido electrónica, mas devem ter
perdido os bits. Sugiro que, através
do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os peçam à NSA norte-americana, que
controla a circulação electrónica mundial.
Apesar do desgoverno, a falência
do Estado ainda não está consumada. Pouco depois do episódio das Finanças tive
que ir à polícia apresentar um documento que não encontrei no porta-luvas do
carro durante uma operação stop. O
meu cartão de cidadão foi novamente solicitado para a inevitável fotocópia (a milésima
cópia que o Estado fazia dele) e, aleluia, naquele lugar, havia fotocópias SCUT,
sem custos para o utilizador. Em Portugal, os polícias aindam podem fazer coisas
que os professores universitários e os trabalhadores fiscais não conseguem. O
Dr. Miguel Macedo ainda tem o papel que falta ao Doutor Crato e à Doutora
Albuquerque.
Os Cratos
Texto recebido da professora de Física e Química Regina Gouveia, que já aqui tem publicado outros textos:
Recebi há dias um e-mail dizendo que havia um Crato, prior, e há um Crato, pior.
Não vou falar de Crato, o Prior, nem tanto de Crato, o Pior, mas mais de um outro Crato que eu conheci, não pessoalmente, mas através de algumas das suas publicações. Nuno Crato investigador e professor de matemática, autor de uma vasta obra de divulgação científica, referindo-se a Rómulo de Carvalho, seu professor, escreveu:
Ora a política do actual Crato nada tem a ver com o que o texto acima defende. Os professores hoje não podem preparar cuidadosamente as aulas nem treinar as experiências. Seguindo as pegadas de Maria de Lurdes Rodrigues (MLR), que até há bem pouco tempo considerava como o(a ) pior ministro(a) da Educação que conheci na minha longa carreira de professora, Crato não está preocupado com a qualidade das lições nem com o bom funcionamento das experiências; grande parte do tempo dos professores é empregue em reuniões genericamente estéreis, no preenchimento de relatórios e fichas na sua esmagadora maioria totalmente inúteis.
Para que os professores mais velhos, os únicos ainda com memória, não dêem conta destas falsificações, inventaram relatório atrás de relatório, ficha atrás de ficha, reunião atrás de reunião, impedindo-os assim de exercer o que supostamente seria o seu objectivo: ensinar. E quando nos intervalos de relatórios, fichas, reuniões conseguem o tempo para ensinar, o cansaço e desânimo são tão grandes que até se convencem que os seus conhecimentos estão errados e o livro que têm em frente está correcto e completo.
Não contente com esta competição com a sua antecessora, Crato (se ainda não destronou MLR, há pelo menos um empate) resolveu criar uma prova para avaliação de professores.
A prova modelo foi aplicada a adolescentes que responderam à escolha múltipla da prova e passaram.
Eu, como aposentada, estou expectante porque se tal prova é condição necessária (e porventura suficiente) para se ser professor, então não se gaste mais dinheiro na formação de professores. Contratem-se já todos os adolescentes que mostraram um bom desempenho e, se necessário, aplique-se de imediato a toda a população adolescente de modo a poder selecionar os melhores...
Com toda esta economia na formação de professores, talvez os aposentados deixem de ser espoliados pelo governo.
Oh Senhor Ministro, o que pode revelar esta prova sobre o estar em sala de aula?
Faço minhas as palavras de Leonor Santos:
MANUEL MARIA MAGALHÃES (22/11/2013)
Já me tenho referido várias vezes à avaliação de professores. Sou do tempo em que no fim do estágio se fazia exame de estado, perante uns seis metodólogos e em que os inspetores entravam pela sala de aula sem disso sermos avisados. Nunca temi qualquer avaliação e sempre defendi que a observação de aulas por equipas competentes (logo isentas), sem aviso prévio, será a forma mais fidedigna de avaliar professores. Durante 22 anos fui orientadora de estágio e durante noveanos lecionei a cadeira de Didática da Física no Mestrado em Física para o Ensino da FCUP. Avaliei para cima de uma centena de professores e candidatos a professores.
Sei que há maus e bons professores embora estes últimos sejam a maioria, por mais que se tente denegrir o trabalho docente.
Senhor Ministro: deixe os professores ensinar porque ensinar e aprender são atividades humanas, das mais nobres.
Regina Gouveia
Recebi há dias um e-mail dizendo que havia um Crato, prior, e há um Crato, pior.
Não vou falar de Crato, o Prior, nem tanto de Crato, o Pior, mas mais de um outro Crato que eu conheci, não pessoalmente, mas através de algumas das suas publicações. Nuno Crato investigador e professor de matemática, autor de uma vasta obra de divulgação científica, referindo-se a Rómulo de Carvalho, seu professor, escreveu:
"As lições eram convenientemente preparadas, como sublinharam vários dos que com ele trabalharam. As experiências funcionavam bem porque eram treinadas."In Crato. N (org), 2006, Ser Professor. Antologia de textos de Pedagogia e Didática, Gradiva .
Ora a política do actual Crato nada tem a ver com o que o texto acima defende. Os professores hoje não podem preparar cuidadosamente as aulas nem treinar as experiências. Seguindo as pegadas de Maria de Lurdes Rodrigues (MLR), que até há bem pouco tempo considerava como o(a ) pior ministro(a) da Educação que conheci na minha longa carreira de professora, Crato não está preocupado com a qualidade das lições nem com o bom funcionamento das experiências; grande parte do tempo dos professores é empregue em reuniões genericamente estéreis, no preenchimento de relatórios e fichas na sua esmagadora maioria totalmente inúteis.
Para que os professores mais velhos, os únicos ainda com memória, não dêem conta destas falsificações, inventaram relatório atrás de relatório, ficha atrás de ficha, reunião atrás de reunião, impedindo-os assim de exercer o que supostamente seria o seu objectivo: ensinar. E quando nos intervalos de relatórios, fichas, reuniões conseguem o tempo para ensinar, o cansaço e desânimo são tão grandes que até se convencem que os seus conhecimentos estão errados e o livro que têm em frente está correcto e completo.
Não contente com esta competição com a sua antecessora, Crato (se ainda não destronou MLR, há pelo menos um empate) resolveu criar uma prova para avaliação de professores.
A prova modelo foi aplicada a adolescentes que responderam à escolha múltipla da prova e passaram.
Eu, como aposentada, estou expectante porque se tal prova é condição necessária (e porventura suficiente) para se ser professor, então não se gaste mais dinheiro na formação de professores. Contratem-se já todos os adolescentes que mostraram um bom desempenho e, se necessário, aplique-se de imediato a toda a população adolescente de modo a poder selecionar os melhores...
Com toda esta economia na formação de professores, talvez os aposentados deixem de ser espoliados pelo governo.
Oh Senhor Ministro, o que pode revelar esta prova sobre o estar em sala de aula?
Faço minhas as palavras de Leonor Santos:
"Mascarar um teste que pretende avaliar conhecimentos e capacidades considerados essenciais para a docência nos diferentes níveis de ensino com um teste psicométrico é no mínimo enganador. Mas mais importante ainda, o que se fica a saber sobre a qualidade do desempenho da função docente de um candidato que obtenha a pontuação máxima nesta prova? Se uma das características essenciais da docência hoje é também ser capaz de antecipar situações de sala de aula e agir no momento face ao inesperado, o que uma prova deste tipo nos revela sobre isso?"Eis uma carta aberta de um professor ao primeiro-ministro:
MANUEL MARIA MAGALHÃES (22/11/2013)
Não temo como nunca temi qualquer forma de avaliação, mas não me sujeito ou humilho perante este cenário a que Vossa Excelência nos quer forçar. O meu nome é Manuel Maria de Magalhães e sou professor profissionalizado do grupo 410 (Filosofia), desde 2002. Desde então fui contratado por 13 escolas, em cinco distritos diferentes (Viana do Castelo, Braga, Porto, Guarda e Viseu). Em todas excedi sempre aquilo que me era pedido, como prova o reconhecimento, em alguns casos público e formal, que alunos, colegas, órgãos das escolas e encarregados de educação prestaram ao meu trabalho. Em termos de formação contínua de professores desprezei sempre as acções de formação promovidas pelo ministério através das suas direcções regionais, que conjugam o verbo "encher" na perfeição, para procurar na academia a continuação dos meus estudos sob a forma de congressos ou mesmo na execução de duas pós-graduações nas áreas em que o meu grupo disciplinar se move. Em todas as escolas o meu trabalho foi avaliado, de acordo com o estipulado, tendo inclusivamente sido dos primeiros a submeter-se voluntariamente às "aulas assistidas". Em consequência das suas políticas educativas encontro-me no corrente ano desempregado e sem perspectivas de encontrar colocação nesta área, tal como dezenas de milhares de colegas meus, muitos deles com uma história profissional bem mais dura do que a minha e muitos mais anos de serviço. É neste quadro que Vossa Excelência, através do seu ministro da Educação, nos quer obrigar a fazer um exame para poder continuar a concorrer ao ensino. Era a humilhação que faltava e a maior de todas.
Ao enveredar por este caminho, Vossa Excelência está a descredibilizar todos os docentes com provas dadas nesta causa que é tomada como uma missão em prol do desenvolvimento do país. Está a descredibilizar as universidades que nos formaram e as escolas que nos avaliaram. Está a destruir a credibilidade do próprio ensino, através de uma avaliação retroactiva, sem fundamento, obscura nos seus contornos, pois até esta data pouco se sabe sobre o processo, que é mais próprio de regimes ditatoriais revolucionários do que de democracias maduras, onde todas as partes devem ser ouvidas.
Estou de acordo consigo num ponto: a Educação não está bem , apesar dos esforços de tantos, mas residirá apenas na classe docente a causa desse mal? Já reparou que todos os governos eleitos impuseram uma política de Educação diametralmente diferente dos anteriores? Já se deu conta que a Educação foi verdadeiramente uma área em que se "atirou dinheiro" para cima dos problemas na esperança que passassem? No ensino, como em muitas outras áreas, também existiu o privilégio do betão face à formação. Quantas escolas não têm psicólogos, sobretudo clínicos, que tanta falta fariam aos inúmeros casos dramáticos que assolam milhares de alunos? Que vínculos tem o Estado, através da Segurança Social, para ajudar a estabelecer pontes entre as famílias e a Escola? O que se (não) tem feito em termos de prevenção da indisciplina em ambiente escolar, seja na sala de aula ou fora dela? O que fez o Estado para promover a autoridade (não autoritarismo) do professor e do auxiliar de acção educativa que ainda é tratado, à maneira do Estado Novo, como um mero contínuo, desprezando o seu vital papel nas escolas? Construir ou renovar escolas não chega… Se quer introduzir alterações em atitudes e comportamentos dos docentes, este não é seguramente o melhor caminho. Se analisar a formação que o ministério nos disponibiliza, constatará que não tem, na maioria dos casos, qualquer interesse em termos pedagógicos. Já pensou em fomentar a ligação entre as universidades e as escolas neste sentido? Ao persistir neste caminho, Vossa Excelência encerra em si o pior modelo de docência: o do professor que obriga os alunos a uma avaliação para a qual não os preparou.Não temo como nunca temi qualquer forma de avaliação, mas não me sujeito ou humilho perante este cenário a que Vossa Excelência nos quer forçar. Não farei qualquer exame retroactivo, imposto de forma ditatorial. Se o preço a pagar for a exclusão definitiva do ensino, assumo-o. Mais importante do que as palavras que proferimos é o exemplo que perdura. A dignidade não está à venda e não posso ser incoerente com tudo o que tenho passado aos alunos que o Estado me entregou. Ainda assim tenho a esperança que Vossa Excelência tenha a humildade (uma das maiores, se não a maior, virtude humana) de reconhecer o erro que esta medida encerra e procurar novas soluções.MMM, Professor de Filosofia
Já me tenho referido várias vezes à avaliação de professores. Sou do tempo em que no fim do estágio se fazia exame de estado, perante uns seis metodólogos e em que os inspetores entravam pela sala de aula sem disso sermos avisados. Nunca temi qualquer avaliação e sempre defendi que a observação de aulas por equipas competentes (logo isentas), sem aviso prévio, será a forma mais fidedigna de avaliar professores. Durante 22 anos fui orientadora de estágio e durante noveanos lecionei a cadeira de Didática da Física no Mestrado em Física para o Ensino da FCUP. Avaliei para cima de uma centena de professores e candidatos a professores.
Sei que há maus e bons professores embora estes últimos sejam a maioria, por mais que se tente denegrir o trabalho docente.
Senhor Ministro: deixe os professores ensinar porque ensinar e aprender são atividades humanas, das mais nobres.
Regina Gouveia
Futuro de Portugal está na relação "de confiança" entre empresários e cientistas
Transcrevo notícia do jornal I de 22/11, baseado num despacho da Lusa:
"Para o físico, "o futuro está, hoje, nos laboratórios de investigação", pelo que Portugal "terá futuro", se conseguir "reconhecer o valor da ciência e ligá-la mais à economia", às empresas
O físico Carlos Fiolhais defendeu que o futuro de Portugal está na relação "de confiança" entre cientistas e empresários, alertando que faltam no país investigadores a trabalhar nas empresas, a produzir riqueza a partir da inovação.
Em declarações à agência Lusa, o docente universitário assinalou que "há alguns bons exemplos de pequenas empresas formadas por cientistas", contudo, "as empresas maiores, que têm mercado", e que poderiam tirar Portugal da crise "não têm setores de investigação e desenvolvimento".
Carlos Fiolhais participa hoje, no Porto, na conferência "Ciência, Economia e Crise", enquanto coordenador do Programa de Educação e Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que promove o encontro entre cientistas, economistas e empresários.
Segundo o docente, Portugal tem "uma débil relação entre economia e ciência", não obstante a ciência se ter "desenvolvido nos últimos 20 a 30 anos". O cientista realçou que "a maior parte dos investigadores está nas universidades e não nas empresas", contrariamente ao que se passa nos países desenvolvidos, onde "as grandes multinacionais têm laboratórios que fazem a investigação que lhes interessa e contratam cientistas".
Para o físico, "o futuro está, hoje, nos laboratórios de investigação", pelo que Portugal "terá futuro", se conseguir "reconhecer o valor da ciência e ligá-la mais à economia", às empresas. "Sem esta relação, não vamos conseguir nunca sair da presente situação", sustentou, vincando que "a riqueza" de Portugal está nos cientistas, que, no entanto, "estão a emigrar", por falta de colocação nas universidades ou oportunidades para trabalhar e criar empresas.
Para Carlos Fiolhais, o país não tem "conhecimento mais avançado nas empresas", uma vez que o desenvolvimento científico é recente e "o tecido económico está muito fragmentado", com "muitas pequenas empresas" geridas por pessoas "sem formação superior elevada".
O coordenador dos Programas de Educação e Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos entende que, se houver "mais confiança entre cientistas e empresários", é possível "mudar melhor" a "estrutura que produz valor, riqueza" no país.
Na conferência participam, ainda, entre outros, Daniel Bessa, ex-ministro da Economia, Manuel Sobrinho Simões, presidente do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, Luís Portela, que dirigiu a farmacêutica Bial, e Pedro Echenique, presidente do júri do Prémio Príncipe das Astúrias das Ciências. O encerramento do encontro, que decorre na reitoria da Universidade do Porto, está a cargo do sociólogo António Barreto, que preside à Fundação Francisco Manuel dos Santos."
"Para o físico, "o futuro está, hoje, nos laboratórios de investigação", pelo que Portugal "terá futuro", se conseguir "reconhecer o valor da ciência e ligá-la mais à economia", às empresas
O físico Carlos Fiolhais defendeu que o futuro de Portugal está na relação "de confiança" entre cientistas e empresários, alertando que faltam no país investigadores a trabalhar nas empresas, a produzir riqueza a partir da inovação.
Em declarações à agência Lusa, o docente universitário assinalou que "há alguns bons exemplos de pequenas empresas formadas por cientistas", contudo, "as empresas maiores, que têm mercado", e que poderiam tirar Portugal da crise "não têm setores de investigação e desenvolvimento".
Carlos Fiolhais participa hoje, no Porto, na conferência "Ciência, Economia e Crise", enquanto coordenador do Programa de Educação e Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que promove o encontro entre cientistas, economistas e empresários.
Segundo o docente, Portugal tem "uma débil relação entre economia e ciência", não obstante a ciência se ter "desenvolvido nos últimos 20 a 30 anos". O cientista realçou que "a maior parte dos investigadores está nas universidades e não nas empresas", contrariamente ao que se passa nos países desenvolvidos, onde "as grandes multinacionais têm laboratórios que fazem a investigação que lhes interessa e contratam cientistas".
Para o físico, "o futuro está, hoje, nos laboratórios de investigação", pelo que Portugal "terá futuro", se conseguir "reconhecer o valor da ciência e ligá-la mais à economia", às empresas. "Sem esta relação, não vamos conseguir nunca sair da presente situação", sustentou, vincando que "a riqueza" de Portugal está nos cientistas, que, no entanto, "estão a emigrar", por falta de colocação nas universidades ou oportunidades para trabalhar e criar empresas.
Para Carlos Fiolhais, o país não tem "conhecimento mais avançado nas empresas", uma vez que o desenvolvimento científico é recente e "o tecido económico está muito fragmentado", com "muitas pequenas empresas" geridas por pessoas "sem formação superior elevada".
O coordenador dos Programas de Educação e Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos entende que, se houver "mais confiança entre cientistas e empresários", é possível "mudar melhor" a "estrutura que produz valor, riqueza" no país.
Na conferência participam, ainda, entre outros, Daniel Bessa, ex-ministro da Economia, Manuel Sobrinho Simões, presidente do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, Luís Portela, que dirigiu a farmacêutica Bial, e Pedro Echenique, presidente do júri do Prémio Príncipe das Astúrias das Ciências. O encerramento do encontro, que decorre na reitoria da Universidade do Porto, está a cargo do sociólogo António Barreto, que preside à Fundação Francisco Manuel dos Santos."
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Uma vida dedicada à Botânica: Homenagem a Jorge Paiva
O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra vai prestar homenagem ao Professor Doutor Jorge Paiva.
A propósito dos seus 80 anos, o docente e investigador será homenageado pelo enorme contributo que tem vindo a deixar à Ciencia, particularmente à Botânica, mas também à Universidade de Coimbra e ao próprio Jardim Botânico.
A homenagem, marcada para o próximo dia 04 de dezembro, conta com a sessão inaugural da Sala da Cultura Científica Jorge Paiva, pelas 15h00, no Jardim Botânico.
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
A Última Pressão dos Reitores
Na edição do Expresso de 23 Novembro 2013, surge um artigo a página inteira com este mesmo título. Nele são apresentados uma série de argumentos dando conta da situação crítica das Universidades em consequência dos fortíssimos cortes de financiamento público. A suportar estes argumentos, surge um gráfico que mostra a evolução do número de alunos inscritos nas universidades, versus o financiamento recebido do orçamento do Estado. A fonte deste gráfico é o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP).
Os números apresentados neste gráfico mostram que o número de alunos inscritos nas universidades passou de cerca de 170 000 em 2005 para quase 200 000 em 2012, e que o financiamento público passou de cerca de 750 milhões de euros para cerca de 530 milhões no mesmo período. Estes números estão simplesmente errados e as conclusões que possam ser daí tiradas carecem de qualquer suporte.
É lamentável que o Conselho de Reitores, que devia dar o exemplo de rigor, distorça os números para apresentar uma realidade que lhe dê jeito. É ainda lamentável que os autores deste artigo não tenham verificado estes números a partir de fontes mais fidedignas que a das partes interessadas - não havendo desculpa para isso porque essas fontes existem: o Eurostat e o GPEARI (actualmente DGEEC). Mesmo desconhecendo estas fontes, podiam recorrer à Pordata, que tem a vantagem de apresentar estes dados num formato legível para toda a gente.
E quais são os números correctos? Segundo o Pordata, o número de alunos inscritos na universidades portuguesas passou de aproximadamente 240 mil em 2005 para 253 mil em 2012 (um aumento percentual de 5% e não de 15%). Quanto ao financiamento, este passou de 425 milhões de euros em 2005 para cerca de 730 milhões em 2012 (um aumento de 72%).
Visto em maior retrospectiva, o investimento público no Ensino Superior, como um todo, aumentou quase 3 vezes em percentagem do PIB: de 0.2% em 1995 para 0.6% em 2010 (cerca de mil milhões de euros).
Em vez de virem para os jornais para fazer chantagem com base em números falsos, os reitores das universidades deviam preocupar-se em mostrar os resultados dos investimentos do dinheiro dos contribuintes e dos alunos que lhes pagam as propinas. Deviam explicar porque razão as nossas universidades têm posições modestas ou medíocres no ranking internacional, porque razão não colaboram com o sector privado, porque razão o número de patentes e de startups que saem das suas portas é tão baixo, porque razão estão a ministrar cursos cujas saídas profissionais é o desemprego?
Acho bem que esta seja a última pressão dos reitores que o país já se cansou de os ouvir.
Os números apresentados neste gráfico mostram que o número de alunos inscritos nas universidades passou de cerca de 170 000 em 2005 para quase 200 000 em 2012, e que o financiamento público passou de cerca de 750 milhões de euros para cerca de 530 milhões no mesmo período. Estes números estão simplesmente errados e as conclusões que possam ser daí tiradas carecem de qualquer suporte.
É lamentável que o Conselho de Reitores, que devia dar o exemplo de rigor, distorça os números para apresentar uma realidade que lhe dê jeito. É ainda lamentável que os autores deste artigo não tenham verificado estes números a partir de fontes mais fidedignas que a das partes interessadas - não havendo desculpa para isso porque essas fontes existem: o Eurostat e o GPEARI (actualmente DGEEC). Mesmo desconhecendo estas fontes, podiam recorrer à Pordata, que tem a vantagem de apresentar estes dados num formato legível para toda a gente.
E quais são os números correctos? Segundo o Pordata, o número de alunos inscritos na universidades portuguesas passou de aproximadamente 240 mil em 2005 para 253 mil em 2012 (um aumento percentual de 5% e não de 15%). Quanto ao financiamento, este passou de 425 milhões de euros em 2005 para cerca de 730 milhões em 2012 (um aumento de 72%).
Visto em maior retrospectiva, o investimento público no Ensino Superior, como um todo, aumentou quase 3 vezes em percentagem do PIB: de 0.2% em 1995 para 0.6% em 2010 (cerca de mil milhões de euros).
Em vez de virem para os jornais para fazer chantagem com base em números falsos, os reitores das universidades deviam preocupar-se em mostrar os resultados dos investimentos do dinheiro dos contribuintes e dos alunos que lhes pagam as propinas. Deviam explicar porque razão as nossas universidades têm posições modestas ou medíocres no ranking internacional, porque razão não colaboram com o sector privado, porque razão o número de patentes e de startups que saem das suas portas é tão baixo, porque razão estão a ministrar cursos cujas saídas profissionais é o desemprego?
Acho bem que esta seja a última pressão dos reitores que o país já se cansou de os ouvir.
"Cortes estão a ser feitos com pouca inteligência"
Minhas declarações na quinta-feira passada à Rádio Renascença:
Os cortes no sector da ciência revelam pouca inteligência por parte do Governo na gestão do Orçamento do Estado. A denúncia é de Carlos Fiolhais, responsável pela área científica da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que organiza hoje, no Porto, uma conferência sobre Ciência, Economia e Crise.
Em declarações à Renascença, Carlos Fiolhais diz que o futuro de uma sociedade passa por uma aposta clara na investigação científica e que a falta de dinheiro não pode ser desculpa. "'Não há verba' é uma má desculpa. Claro que há verba. A questão é que os cortes estão a ser feitos com pouca inteligência. A ciência é precisa e não pode ser cortada da mesma maneira. A ciência é a chave para entrar no futuro e quando nós vemos universidades, politécnicos a queixarem-se de tesouradas é sinal de que devemos estar preocupados com o nosso futuro", disse.
Carlos Fiolhais lamenta, por outro lado, que Portugal continue a investir na formação de jovens cientistas mas continue a assistir à chamada "fuga de cérebros". "É bom que os jovens circulem, mas também é bom que tenham a possibilidade de voltar. Essas possibilidades estão diminuídas porque um jovem que se forme agora não encontra emprego no Ensino Superior, dificilmente encontra emprego nas empresas. O que vai fazer? Vai para onde encontrar emprego", acrescenta.
Os cortes no sector da ciência revelam pouca inteligência por parte do Governo na gestão do Orçamento do Estado. A denúncia é de Carlos Fiolhais, responsável pela área científica da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que organiza hoje, no Porto, uma conferência sobre Ciência, Economia e Crise.
Em declarações à Renascença, Carlos Fiolhais diz que o futuro de uma sociedade passa por uma aposta clara na investigação científica e que a falta de dinheiro não pode ser desculpa. "'Não há verba' é uma má desculpa. Claro que há verba. A questão é que os cortes estão a ser feitos com pouca inteligência. A ciência é precisa e não pode ser cortada da mesma maneira. A ciência é a chave para entrar no futuro e quando nós vemos universidades, politécnicos a queixarem-se de tesouradas é sinal de que devemos estar preocupados com o nosso futuro", disse.
Carlos Fiolhais lamenta, por outro lado, que Portugal continue a investir na formação de jovens cientistas mas continue a assistir à chamada "fuga de cérebros". "É bom que os jovens circulem, mas também é bom que tenham a possibilidade de voltar. Essas possibilidades estão diminuídas porque um jovem que se forme agora não encontra emprego no Ensino Superior, dificilmente encontra emprego nas empresas. O que vai fazer? Vai para onde encontrar emprego", acrescenta.
Prefácio a "Ciência: 4000 anos de história" de Patricia Fara
Meu prefácio ao livro que acaba de sair na editora Horizonte:
Este livro de uma historiadora de ciência inglesa é verdadeiramente invulgar. De facto, são raros os livros que apresentam a história da ciência de uma maneira integrada, abrangendo todo o globo terrestre ao longo de um período tão extenso. Patricia Fara foge ao estereótipo usual de considerar a ciência uma criação ocidental, segundo o qual a ciência surgiu com a Revolução Científica. Escolhe-se convencionalmente a data de 1543, quando o astrónomo polaco Nicolau Copérnico publicou em Nuremberga a sua Revolução dos Orbes Celestes e o médico belga Andreas Vesalius fez sair em Basileia a sua Fábrica do Corpo Humano. Mas, para Fara, a ciência confunde-se com conhecimento do mundo, sendo óbvio que este começou muito antes de ter surgido o chamado método científico, alicerçado na observação e na experiência. A historiadora escolheu um tanto ou quanto arbitrariamente, conforme a própria admite, o período de tempo de quatro mil anos, por terem passado dois milénios depois de Cristo. Achando interessante a simetria temporal em torno da data do nascimento de Jesus Cristo, começa com os babilónios de circa 2000 a.C. para terminar na actualidade, apresentando as controvérsias correntes de base científi ca como a engenharia genética, a nanotecnologia e o aquecimento global. O argumento da autora é que todo o conhecimento do mundo está relacionado. A ciência tem a ver com tecnologia, mas tem também a ver com magia (aliás, na linha da “terceira lei” do escritor inglês de ficção científi a Arthur Clarke: «Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia»).
A autora foge à narrativa histórica tradicional baseada numa cronologia de grandes nomes e grandes feitos, isto é, na astronomia e na física, a visão de Galileu Galilei após Copérnico, as descobertas de Isaac Newton após Galileu, e a imaginação criadora de Albert Einstein após Newton. Ou, na área da medicina, a descoberta de William Harvey após Vesálio, seguindo-se a inovação de Louis Pasteur. Ou ainda, na área da biologia, a síntese de Charles Darwin, confi rmada pela moderna genética, após Carolus Lineu. Em vez disso, Fara declara logo à partida que «toda a gente tem antecessores» (p. 19), e enfatiza as origens e as contribuições para o conhecimento que vieram da China e do Islão, as primeiras completamente à margem do mundo ocidental e as segundas permitindo que esse mundo fizesse a ponte entre a Antiguidade Grega e o Renascimento. Discute as experiências de vários tipos, desde as mágicas às instrumentais, que, de modos diferentes, têm em vista a compreensão do mundo. Enfatiza o papel das instituições, como os grupos e as sociedades científi cas, um tanto ou quanto em detrimento do papel dos indivíduos. Confronta a ideia de um cosmos ordenado segundo leis naturais com as mundovisões de tipo religioso. Descreve a aproximação ao invisível, que não se fez sem problemas filosóficos, empreendida pela moderna ciência, seja no mundo dos átomos e das partículas seja no mundo das células e dos genes. E, por fim, com base na máxima baconiana de que «saber é poder», discorre sobre as decisões humanas que decorrem do conhecimento do mundo, por exemplo o termo da Segunda Guerra Mundial com uma terrível arma de base científi«mudou para sempre o Universo e os seus habitantes» (p. 382). Estamos em presença de uma história cultural da ciência, uma história que pode e deve ser lida não apenas pelos cultivadores e amigos da ciência, mas por todas as pessoas minimamente cultas que estão interessadas em saber o que é a ciência e como é que ela ganhou o papel de relevo que, indiscutivelmente, tem na sociedade contemporânea.
Se a ciência goza de uma aura de objectividade, ou pelo menos tem como marca a busca dela, é claro que a história da ciência só pode ser feita, como aliás qualquer história, com uma boa margem de subjectividade. A síntese de Fara, apesar de magistral, é controversa. Por exemplo, Newton é apresentado quase como um alquimista e um místico em vez do filósofo natural que rompeu com o passado. Darwin é visto como um misógino ou pelo menos alguém que considerava a espécie feminina inferior (este livro reflecte uma visão feminista da autora, que, naturalmente, terá ficado, como qualquer pessoa, perturbada ao verificar o pequeno papel das mulheres ao longo da história da ciência). E Einstein, em vez de um grande génio isolado, é perspectivado como um continuador de cientistas anteriores (é, por assim dizer, relativizado!). Contudo, os «ídolos da ciência» não têm pés de barro e resistirão a esta visão iconoclasta, decerto útil ao contrapor -se à visão corrente. A originalidade é, sem dúvida, uma das virtudes deste livro.
Esta é uma história da ciência, que procura ir muito além do panorama comum baseado nos indivíduos e nas nações. Mas será crucial no prefácio à edição portuguesa destacar as referências a Portugal e aos portugueses. São escassas, como seria de esperar. E, como também seria de esperar, resumem -se ao papel que os Descobrimentos portugueses tiveram nessa «onda de globalização» que precedeu a Revolução Científica. Fara não refere essas inovações tecnológicas que foram a caravela e o astrolábio náutico, mas fala das fontes portugueses do mapa representado num globo, da autoria de um discípulo do matemático e astrólogo alemão Johannes Mueller, mais conhecido por Regiomontano, que trabalhou em Nuremberga quase um século antes de aí sair o livro de Copérnico (p. 110). Embora não surja nomeado, o alemão Martin Behaim terá sido esse discípulo de Regiomontano: ele participou como cosmógrafo em 1484 na expedição portuguesa chefiada por Diogo Cão à costa oeste de África, construiu em Nuremberga por volta de 1491 um famoso globo e, regressado a Portugal, faleceu em Lisboa em 1507. Fara refere os novos animais e plantas que os portugueses trouxeram do outro lado do mar. Fala, com evidente fascínio, do rinoceronte desenhado por Albrecht Duerer, também ele em Nuremberga (pp. 109-111). O animal exótico foi dado pelos indianos ao rei D. Manuel I e este, por sua vez, ofereceu-o ao Papa em 1515 (em virtude do naufrágio ao largo da costa italiana do barco que o transportava, o pontífice só o veio a receber, embalsamado, no ano seguinte). E fala das espécies vegetais, como a malagueta e o tomate, que, trazidas da América pelos exploradores portugueses e espanhóis, permitiram a renovação da alimentação humana no Ocidente (p. 172). Poder-se-ia esperar que uma história global da ciência incluísse a «Passarola» de Bartolomeu de Gusmão de 1709, que tanta curiosidade levantou no seu tempo aquém e além -fronteiras, e o terramoto de Lisboa de 1755, que tanto abalou os filósofos de uma época em que Fara é reputada especialista, mas tal não acontece. Mas, embora sem referir Portugal, Fara descreve o famoso eclipse solar de 1919, ocorrido na ilha do Príncipe, na altura uma colónia portuguesa, e que foi observado pelo inglês Arthur Stanley Eddington (o papel deste astrónomo é também relativizado). E por aqui fica a ciência portuguesa no panorama da história mundial da ciência. São só uns parágrafos, mas eles chegam para deixar clara a importância de Portugal na história científica do mundo numa altura em que a Europa descobria outros continentes e a ciência moderna se preparava para emergir. Em contraste, na história mundial da música Portugal só aparece, como recentemente assinalou António Pinho Vargas, porque o rei D. João V, o mesmo que concedeu a Gusmão os direitos de um «instrumento de andar pelo ar», chamou à sua corte o compositor e organista italiano Domenico Scarlatti.
A visão da ciência proporcionada por Ciência: 4000 anos de história é intelectualmente estimulante. Os que já conhecem a história da ciência ficarão com abundantes motivos de reflexão. E os que não a conhecem ficarão despertos para ela e com vontade de aprofundar a introdução aqui fornecida. Dizer que um livro leva ao exercício mental e que provoca apetite para outras leituras é o melhor elogio que se lhe pode fazer. Os leitores, qualquer que seja a sua preparação, ficarão a pensar e quererão saber mais. A obra de Patricia Fara tinha esse propósito e cumpriu-o plenamente.
domingo, 24 de novembro de 2013
O EXTINTO ENSINO PROFISSIONAL, EÇA DE QUEIROZ E A DOUTORICE
“Existe uma erótica do novo, o antigo é sempre suspeito.”
Noticiado no De Rerum Natura, no passado dia 12 deste mês, promoveu a Fundação Francisco Manuel dos Santos um ciclo de conferências sobre o ensino profissional. Sinal evidente de interesse por uma temática (sobre a qual eu aqui tenho publicado vários post’s) vítima do mito de ser esta espécie de ensino destinado a cábulas ou filhos de pais de estrato económico baixo.
Pelo que posso testemunhar, tomando o exemplo do início da minha saudosa docência na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques, dois professores licenciados do respectivo corpo docente aí matricularam, em escolha preferencial, seus filhos que, como tantos outros colegas, vieram, mais tarde, a completar cursos superiores.
Quase diria, perspectivaram, esses docentes, avant la lettre, a Teoria das Inteligências Múltiplas (1983), da autoria de Howard Gardner, professor de Cognição e Educação na Universidade de Harvard. Ensina-nos, com essa teoria:
“Chegou a hora de alargar a nossa noção do espectro dos talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer, para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente. É um objectivo que perdemos completamente de vista. Em vez disso, submetemos toda a gente a uma educação em que, se somos bem bem-sucedidos, a pessoa fica preparada para ser professor universitário. E, ao longo do percurso, avaliamos toda a gente de acordo com esse estreito padrão de sucesso. Devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a ajudá-las a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultivá-las. Há centenas de maneiras de ser bem-sucedido e muitas capacidades que nos ajudarão a lá chegar.”
Idêntica razão assistiu a Francisco de Sousa Tavares em reconhecer: “Estamos a formar não um país de analfabetos, como até aqui, mas um país de burros diplomados!”. O reflexo deste statu quo reflecte-se negativamente na sociedade portuguesa em que se assiste a uma despudorada obtenção de canudos de licenciatura, ou mesmo doutoramento, em escolas d’aquém e além fronteiras de duvidosa qualidade e seriedade, para satisfazer o ego dos seus possuidores, mesmo que em detentores de cargos ministeriais.
Mas nada disto é novo. Num Portugal em que, no estertor da monarquia, a atribuição de títulos de nobreza eram atribuídos ou vendidos a granel, em crítica mordaz escrevia Almeida Garrett ( ironicamente, anos mais tarde, ele próprio, agraciado com o título de visconde!): “Foge cão, que te fazem barão! / Para onde, se me fazem visconde?”.
E porque, como escreveu T.S. Elliot, “o tempo passado e o tempo presente, fazem todos partes do futuro”, nesta III República, que leva algumas dezenas de anos de vida, em paráfrase adaptada aos tempos que correm, escrevi: “Foge gato, que te dão o bacharelato! Para onde, se me fazem licenciado?” (Diário de Coimbra, 26/07/2001).
Anos atrás, no jeito
bem nosso de complicar as coisas simples, ou em mesmo as viciar, a língua de Shakespeare, uma espécie de Esperanto dos nossos dias, foi
abastardada pelo “Processo de Bolonha” que
adoptou, contra ventos e marés, o grau
de licenciado para o 1.º ciclo de estudos do ensino universitário nacional, ou mesmo politécnico, como que a modos
de uma arrevesada retroversão para português da palavra inglesa “bachelor”. Licenciatura
abastardada porque, segundo Adriano Moreira, “sem o
prestígio da Universidade que lhe deu a
primeira credencial de título académico nobilitante”.
Pelo deslumbre do outro lado do Atlântico por títulos académicos, Eça de Queiroz, escritor da minha predilecta leitura, farpeava “a velha Tolice Humana com cabeça de touro”, com a elegância de um Manolete e sua “suerte de matar”. Em prosa intitulada “Brasil dos Doutores”, escreveu ele:
Pelo deslumbre do outro lado do Atlântico por títulos académicos, Eça de Queiroz, escritor da minha predilecta leitura, farpeava “a velha Tolice Humana com cabeça de touro”, com a elegância de um Manolete e sua “suerte de matar”. Em prosa intitulada “Brasil dos Doutores”, escreveu ele:
“Bem cedo, do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou nem sequer brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes. A Nação inteira se doutorou. Do norte ao Sul do Brasil, não há, não encontrei, senão doutores! Doutores, com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios; doutores com um apito, dirigindo a polícia; doutores com uma lira soltando carmes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, misturando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado. (…) E este título não é inofensivo: imprime carácter. Uma tão desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa atmosfera de doutorice”.
Barro, a 2.ª matéria-prima
Diz o Velho Testamento que, depois de ter feito o mundo, Deus pegou no barro e fez o homem.
E o homem, depois de ter lascado a pedra, pegou no barro e fez o primeiro vaso.
Depois do sílex, a principal matéria-prima mineral foi o barro, com o qual os nossos antepassados do Neolítico começaram a fazer recipientes diversos, muito rudimentares, de início e, progressivamente, mais aperfeiçoados.
Barro (do latim hispânico, barrum) é a forma mais popular de dizer argila, nome mais usado por geólogos, pedólogos e agrónomos, que fomos buscar ao latim argilla que, por seu turno, o retirou do grego argilós. Os romanos dispunham do seu próprio termo, creta [1], para referir a mesma substância e que passou ao português antigo na forma greda.
Entre nós, o conceito de argila difere consoante as áreas do conhecimento. Assim, em mineralogia, argila refere um grupo bem definido de minerais (silicatos hidratados de alumínio e/ou magnésio) cujos cristais são, naturalmente, de dimensões micrométricas. Incluídos na subclasse dos filossilicatos, são o que habitualmente se designa por minerais argilosos ou argilominerais. Na grande maioria, as argilas resultam da alteração dos silicatos das rochas (como granitos, gnaisses, sienitos, dioritos e outras), em particular, dos feldspatos. Entre as espécies mais comuns, destacam-se a caulinite, a ilite, as esmectites, a clorite e a palygorskite. Um parêntesis para aludir, ainda que de forma muito abreviada, a cada um destes argilominerais.
Em geologia de engenharia, domínio no qual o principal interesse incide no comportamento mecânico dos terrenos, a argila é entendida como um material do solo e do subsolo, composto por partículas (argilosas ou não) de granulometria inferior a 0,004mm. A argila, quando seca, é um material coerente, friável e facilmente riscado pela unha. É moldável quando humedecida e desagrega-se em excesso de água, formando suspensões algo viscosas (barbotinas) cuja estabilidade depende da natureza e da dimensão das partículas e das características físico-químicas do meio líquido. Endurece pela secagem e consolida por aquecimento acima de 900 oC, com a criação de novas fases (cristobalite, mulite, cordierite, espinela, etc.) tornando-se dura e frágil.
A argila é branca quando não contaminada por óxidos de ferro (responsáveis pelas colorações entre os vários tons de vermelho, de amarelo e de castanho a negro), por matéria orgânica incarbonizada (na base do tons de cinzento), ou por outras “impurezas”.
A plasticidade da argila, quando humedecida, e o endurecimento pelo calor, estão na base da sua utilização em cerâmica (do grego kéramos, terra ou argila queimada) desde a Pré-história à actualidade. A natureza dos respectivos minerais, o grau de finura e a maior ou menor plasticidade, face à adição de água, permitem distinguir argilas gordas e argilas magras. As “gordas” são demasiado “untuosas”, colocando dificuldades à moldagem. As “magras”, ao contrário daquelas, são muito pouco plásticas, colocando igualmente dificuldades ao trabalho do oleiro. Uma boa pasta consegue-se misturando, em proporções adequadas, estes dois tipos de argila.
Na classificação do alquimista persa Avicena (980-1037), a argila foi considerada entre as terras, ao lado de outras classes (pedras, sais, metais, minerais fusíveis). Este critério manteve-se até começos do século XIX, estando bem exemplificado na sistemática do químico e mineralogista sueco, Torbern Bergman (1749-1817). É esta a razão do uso das expressões terra rossa [3] e terra cota [4], que explica que os ingleses designem a argila por earth, os franceses por terre e que nós ainda usemos o termo terra com o mesmo significado em expressões como terra de greda [5] e a sinónima terra de pisoeiro.
Por razões dinâmicas, decorrentes dos diâmetros das respectivas partículas, a argila dos depósitos sedimentares está quase sempre associada ao silte [6] ou limo [7], dado que reagem de modo semelhante aos agentes de transporte (em suspensão na água ou no ar) e têm por destino os mesmos ambientes de sedimentação: os mais distantes das fontes, os mais profundos, os mais tranquilos ou menos energéticos.
Neste termos, os siltitos [8] são quase sempre argilosos e os argilitos quase sempre siltosos. Por exemplo, os xistos argilosos são formados por uma mistura de partículas realmente argilosas (argilominerais) com detritos essencialmente quartzosos (mas também feldspáticos e micáceos, entre outros) pertencentes à classe dimensional do silte. É, pois, mais correcto falar de rochas e de depósitos silto-argilosos.
Em 1873, o alemão Carl Friedrich Naumann (1797-1873) introduziu o termo Pelit (do grego pelos, lama), pelito, na versão portuguesa, para designar indistintamente estes materiais (argilitos, siltitos e xistos argilosos).
Em suspensão nas águas correntes, as argilas decantam ou sedimentam por imobilização destas, fazendo-o, muitas vezes, depois de flocularem, isto é, de se aglutinarem entre si, constituindo agregados de partículas, mais rapidamente atraídos para o fundo.
Muita da poeira atmosférica é constituída por finíssimas partículas argilosas e siliciclásticas [9], de dimensão equivalente, levantadas do chão pelo vento, em tempo seco. É frequente em Lisboa, na sequência de “borrifos” de chuva estival, com vento suão, essa precipitação ser algo lamacenta, uma vez que incorpora as referidas poeiras vindas do Alentejo e, até, do norte de África. Nestas ocasiões, o fenómeno é particularmente bem visível nos pingos de lama sobre a pintura brilhante dos automóveis estacionados na cidade e dá-nos a confirmação do transporte destes materiais em suspensão na atmosfera.
Na grande maioria, as argilas citadas na nossa bibliografia geológica são, como se disse atrás, misturas silto-argilosas. Representam cerca de 80% das rochas sedimentares conhecidas. Correspondem, no conjunto, aos mudstones [10] (de mud, lama) dos geólogos de língua inglesa, termo que os brasileiros traduziram como lamito, um nome que ainda não entrou no nosso vocabulário da especialidade.
Em 1913, quando os alemães ainda faziam uso da palavra Pelit, o americano Amadeus William Grabau (1870–1946) introduziu o termo lutite (do latim lutu, lama, lodo, vasa), lutito, na versão portuguesa, para designar os sedimentos silto-argilosos Estava-se ainda longe de separar as duas classes dimensionais (siltes e argilas) nele reunidas e só mais tarde definidas na escala, internacionalmente aceite, de Wentworth (1922).
Já se dispunha, contudo, de um conceito afim, representado pelo loess, cujo vocábulo foi introduzido na literatura geológica, em 1834, pelo inglês Charles Lyell (1797-1875), por adaptação do termo vulgar germânico Löss (do alemão lose, friável, não coeso).
O loess era então definido como um depósito sedimentar detrítico, não estratificado, mais fino do que as areias finas, friável, não coeso, de origem eólica (em ambiente periglaciário), contendo uma fracção terrígena (essencialmente silte + argila) e, por vezes, uma outra, calcária. Por dissolução do carbonato de cálcio, nos níveis mais superficiais, o loess dá origem ao limon (dos franceses) ou Loehm (dos alemães), constituindo boas terras aráveis e, por vezes, usado como barro no fabrico de tijolos. Nos depósitos de loess, o carbonato dissolvido precipita nos níveis mais baixos, formando concreções, conhecidas por Löss Kindchen (bonecas do loess).
Quando impregnados de água e, por vezes, misturados com matéria orgânica, como acontece nos solos, os sedimentos silto-argilosos constituem o que vulgarmente de designa por lama (do latim, com a mesma grafia, que significa atoleiro, charco), que corresponde à boue dos autores franceses, ao mud e ao loam dos ingleses, ao Loehm dos alemães, ao fango dos nossos irmãos ibéricos e ao tijuco, no Brasil. Quando submersos e embebidos de água, é habitual falar-se de lodo (do latim luto, lama) e também de vasa, nome que importámos do holandês wase (lama) através do francês vase.
Geralmente silto-argilosas, as varvas [12] foram inicialmente definidas como depósitos lacustres subactuais, finamente laminados (à escala milimétrica ou inferior), com alternância de materiais argilosos, escuros (matéria orgânica) e claros (silte e argila), indicadores da variação dos processos físicos, químicos e biológicos decorrentes da alternância, a montante, gelo-degelo nos glaciares. Cada par de lâminas (clara e escura) equivale, pois, a um ano e, assim, as varvas têm sido utilizadas em geocronologia do Quaternário. Este termo está na base de um outro, varvito, aplicado a depósitos sedimentares igualmente finos, laminados e consolidados, semelhantes no aspecto rítmico, mas mais antigos e de outras origens.
Em 1957, Nikolai Mikhailovich Strakhov (1900–1978) introduziu o termo aleurito (na versão portuguesa), com o qual designou a classe dimensional compreendida entre 0,1 e 0,01 mm, intervalo parcialmente coincidente com o de silte e que compreende, ainda, a areia fina. Radicado no grego aleurós, que significa farinha, o termo teve muito pouca penetração a nível internacional.
As propriedades dos argilitos estão intimamente relacionadas com as propriedades dos respectivos minerais, com destaque para a forma lamelar das partículas. Entre essas propriedades sobressai a de adquirirem fissilidade ou xistosidade (do grego, xystós, fender) quando sujeitos a compressão. Esta característica que se revela pela aparência folheada da rocha, pela facilidade com que se deixa abrir segundo esses planos e pelo paralelismo e regularidade dos mesmos, está na base do termo brasileiro, folhelho, sinónimo do nosso xisto argiloso.
Na maior parte dos casos, os argilitos resultam de uma sedimentação detrítica de minerais das argilas gerados noutros locais e posteriormente transportados até ao local de sedimentação. São considerados argilitos terrígenos ou herdados que, eventualmente, podem sofrer transformações. Todavia, existem outras acumulações de argilominerais, cuja génese tem lugar no próprio local, por síntese, a partir de substâncias em solução nas águas. São os argilitos de neoformação, com muito pouca expressão geológica, mas com grande expressão nos solos actuais.
Entre as múltiplas indústrias e artes que utilizam esta importante matéria-prima sobressaem, além das diversas cerâmicas (porcelana, faiança, refractários, barro vermelho), o cimento, a fundição (nos moldes), o papel, a borracha, os plásticos, as tintas, os medicamentos e os cosméticos.
Na indústria cerâmica de porcelanas utiliza-se uma argila muito pura, com a propriedade de se manter branca depois de cozida. Esta argila merece o nome industrial de caulino [13], termo tecnológico e oficialmente bem definido pelas propriedades da referida matéria-prima. Do ponto de vista mineralógico, os caulinos são formados essencialmente pelo mineral argiloso caulinite. Uma grande parte da indústria cerâmica não exige tais requisitos e utiliza outros tipos de argilitos, menos puros (geralmente com óxidos de ferro) e que, uma vez submetidos às elevadas temperaturas da cozedura, mantêm ou adquirem cor vermelha ou avermelhada. Estes argilitos são referidos a nível industrial por argilas comuns ou barros vermelhos, existentes em grande quantidade por todo o país, alimentando a volumosa indústria de tijolos, telhas e afins, bem como toda a série de artesanato de loiças de barro espalhadas do Minho ao Algarve.
Nas regiões pobres de rochas susceptíveis de serem usadas em alvenaria, recorria-se ao barro (muito antes da utilização do tijolo e do cimento) na preparação de adobe e taipa com que se erguiam muros, casas e até castelos, como acontece nalgumas zonas do Baixo Alentejo. Como produtos de alteração, no âmbito das chamadas rochas residuais, recordam-se os barros vermelhos de Ral (Ferreira do Zêzere), de Santa Catarina (Tomar), de Menoita (Guarda) e no Alentejo (por alteração quer dos xistos, quer de plutonitos básicos, quer do grande filão dolerítico que percorre esta província de NE para SW). Com conhecido interesse na agricultura cerealífera, também os chamados “barros de Beja”, negros, resultaram da alteração dos gabrodioritos locais. Igualmente residuais são os caulinos associados aos granitos e gnaisses da faixa litoral a norte de Aveiro, com destaque para o da Senhora da Hora (Porto). Neste capítulo, merecem ainda destaque as esmectites resultantes da alteração dos gabrodioritos de Benavila (Avis, no Alentejo).
Muitos argilitos explorados como barros vermelhos correspondem a camadas sedimentares, abundantes entre nós nas Orlas Mesocenozóicas (em especial no Triásico, no Jurássico superior e no Cretácico inferior e final) e nas Bacias Cenozóicas. Em Aguada (Águeda), Barracão (Leiria) e Pombal exploram-se argilas refractárias, utilizadas no fabrico de tijolos refractários e outras peças de cerâmica resistentes ao calor.
A argila esméctica, principal constituinte da greda, corresponde a uma argila de granularidade muito fina, de aspecto saponáceo, com grande poder absorvente das gorduras, sendo, por isso, utilizada, desde há muito, na indústria de tecelagem artesanal de preparação da lã, para a lavar e desengordurar. Como tal, é conhecida por argila ou terra de pisoeiro [14] (terre à foullon, em francês e fuller’s earth, em inglês). Outras propriedades deste tipo de argilas, tais como, expansibilidade, tixotropia , tornam-nas utilizáveis, por exemplo, como lamas de sondagem, pois lubrificam a coroa da sonda durante e perfuração e suportam as paredes do furo, uma vez retirada esta. Também as tintas tixotrópicas utilizam esta propriedade na pintura de paredes e tectos.
São várias as ocorrências de argilas esmécticas em Portugal, quer residuais, resultantes da alteração de rochas básicas (plutonitos e filões), quer sedimentares. Do primeiro tipo destaca-se a referenciada sob o nome de “bentonite”, associada à rocha gabro-diorítica de Benavila (Avis). Como esmectites sedimentares merecem destaque as argilas intercaladas nas Arcoses de Coja e na Formação do Bom Sucesso, ambas na Bacia do Mondego, nas Formações de Silveirinha dos Figos e de Cabeço do Infante, na Beira Baixa e as do Complexo Montmorilonítico, incluindo as Argilas de Tomar, na Bacia do Tejo-Sado.
Por último, uma breve referência às argilas fibrosas. São várias as ocorrências de palygorskite em território nacional, umas de alteração, em veios (fendas) no interior do basalto do Complexo Vulcânico de Lisboa, outras de natureza sedimentar, de idade paleogénica, intercaladas no Complexo de Benfica (Lisboa) e seus equivalentes nas Bacias Cenozóicas do interior do País.
Notas:
[1] O mesmo étimo está na origem do termo cré, usado para designar o calcário friável que deu o nome ao Cretácico e a Creta, a ilha mediterrânea.
[2] alteração deutérica - alteração ocorrente no interior da crosta, exercida sobre os minerais das rochas, por acção de: 1) águas magmáticas residuais muito quentes (hidrotermais), dos vapores e dos voláteis associados; 2) águas residuais do metamorfismo regional; 3) águas meteóricas penetradas na crosta e, aí, aquecidas por efeito do grau geotérmico. O qualificativo deutérico, do grego deuterós, ulterior, secundário, alude à posterioridade dos minerais resultantes desse tipo de alteração, secundários relativamente aos minerais da rocha magmática, entendidos como primários. São exemplos deste tipo de alteração, a caulinização e a serpentinização O mesmo que alteração hipogénica.
[3] terra rossa - expressão italiana internacionalizada alusiva a um solo ferralítico, residual, de cor vermelha, composto essencialmente por argila e óxido de ferro. Resulta do processo de dissolução das rochas carbonatadas pelas águas pluviais carregadas de dióxido de carbono
[4] terra cota - é uma cerâmica cozida no forno, sem ser vidrada.
[5] terra de greda - nome vulgar referente a certas argilas desengordurantes (esmectites). O mesmo que terra ou argila de pisoeiro.
[6] silte . aportuguesamento do termo inglês silt, alusivo a uma fracção detrítica, predominantemente de quartzo, de granulometria compreendida entre 0,063 e 0,004 mm.
[7] limo - termo português equivalente ao silt dos autores ingleses
[8] siltito - rocha sedimentar detrítica coesa, essencialmente formada por silte.
[9] siliciclásticas - diz-se das partículas detríticas de minerais siliciosos (quartzo, feldspatos, micas, etc.).
[10] Termo introduzido na terminologia geológica, em 1839, pelo geólogo inglês R. Murchinson, para referir uma rocha xistenta, muito friável, do Silúrico do País de Gales.
[11] Relacionada com este termo, temos, em português, a palavra fangoterapia, o tratamento clínico com lamas.
[12] Termo introduzido pelo sueco Gerard De Geer, em 1912, a partir do varv, termo local que alude à disposição em camadas.
[13] caulino - conhecido e utilizado desde a Antiguidade, no Extremo Oriente. O nome provém de Kao Ling, expressão que significa montanha alta e que refere uma localidade na província de Jiangxi, na China. Os ingleses chamam-lhe China clay, numa alusão nítida à importância desta matéria-prima no país do Sol Nascente.
[14] pisoeiro - o artífice que lavava e desengordurava a lã, usando o pisão.
[15] tixotropia - Em linhas gerais, consiste na possibilidade de uma suspensão argilosa em água adquirir grande viscosidade, em repouso, e fluidez quando agitada.
Cerâmica do Neolítico Ibérico |
Barro (do latim hispânico, barrum) é a forma mais popular de dizer argila, nome mais usado por geólogos, pedólogos e agrónomos, que fomos buscar ao latim argilla que, por seu turno, o retirou do grego argilós. Os romanos dispunham do seu próprio termo, creta [1], para referir a mesma substância e que passou ao português antigo na forma greda.
Entre nós, o conceito de argila difere consoante as áreas do conhecimento. Assim, em mineralogia, argila refere um grupo bem definido de minerais (silicatos hidratados de alumínio e/ou magnésio) cujos cristais são, naturalmente, de dimensões micrométricas. Incluídos na subclasse dos filossilicatos, são o que habitualmente se designa por minerais argilosos ou argilominerais. Na grande maioria, as argilas resultam da alteração dos silicatos das rochas (como granitos, gnaisses, sienitos, dioritos e outras), em particular, dos feldspatos. Entre as espécies mais comuns, destacam-se a caulinite, a ilite, as esmectites, a clorite e a palygorskite. Um parêntesis para aludir, ainda que de forma muito abreviada, a cada um destes argilominerais.
caulinite – silicato hidratado de alumínio, abundante nas regiões quentes e húmidas. Resulta, normalmente, de meteorização de rochas ricas em feldspatos e feldspatóides. Ocorre ainda, por alteração deutérica, em filões hidrotermais.Face ao que se conhece sobre a génese destes minerais nos diferentes sistemas bioclimáticos, eles permitem, como nenhum outro componente mineral dos sedimentos, inferir reconstituições paleoambientais do maior interesse em geologia. Entre geólogos, a palavra argila é também usada para referir os argilitos, isto é, os depósitos sedimentares essencialmente argilosos, e as capas de alteração meteórica (saprólito, alterito ou rególito) ou deutérica [2], essencialmente argilosas.
esmectite – (do grego smektikós, que quer dizer o que limpa, detergente) é um grupo de argilas com propriedades desengordurantes. Deste grupo fazem parte bentonite, beidelite, hectorite, montmorilonite, nontronite, saponite e stevensite.
ilite – aluminossilicato potássico, afim da moscovite. O nome evoca o estado americano do Illinois.
clorite – grupo de filossilicatos com ferro e magnésio, de coloração verde.
palygorskite – espécie rica em magnésio, descrito em 1862, proveniente da região de Palygorski, nos Urais, Rússia, também conhecido por attapulgite, cartão-da-montanha e couro-da-montanha.
Em geologia de engenharia, domínio no qual o principal interesse incide no comportamento mecânico dos terrenos, a argila é entendida como um material do solo e do subsolo, composto por partículas (argilosas ou não) de granulometria inferior a 0,004mm. A argila, quando seca, é um material coerente, friável e facilmente riscado pela unha. É moldável quando humedecida e desagrega-se em excesso de água, formando suspensões algo viscosas (barbotinas) cuja estabilidade depende da natureza e da dimensão das partículas e das características físico-químicas do meio líquido. Endurece pela secagem e consolida por aquecimento acima de 900 oC, com a criação de novas fases (cristobalite, mulite, cordierite, espinela, etc.) tornando-se dura e frágil.
A argila é branca quando não contaminada por óxidos de ferro (responsáveis pelas colorações entre os vários tons de vermelho, de amarelo e de castanho a negro), por matéria orgânica incarbonizada (na base do tons de cinzento), ou por outras “impurezas”.
A plasticidade da argila, quando humedecida, e o endurecimento pelo calor, estão na base da sua utilização em cerâmica (do grego kéramos, terra ou argila queimada) desde a Pré-história à actualidade. A natureza dos respectivos minerais, o grau de finura e a maior ou menor plasticidade, face à adição de água, permitem distinguir argilas gordas e argilas magras. As “gordas” são demasiado “untuosas”, colocando dificuldades à moldagem. As “magras”, ao contrário daquelas, são muito pouco plásticas, colocando igualmente dificuldades ao trabalho do oleiro. Uma boa pasta consegue-se misturando, em proporções adequadas, estes dois tipos de argila.
Na classificação do alquimista persa Avicena (980-1037), a argila foi considerada entre as terras, ao lado de outras classes (pedras, sais, metais, minerais fusíveis). Este critério manteve-se até começos do século XIX, estando bem exemplificado na sistemática do químico e mineralogista sueco, Torbern Bergman (1749-1817). É esta a razão do uso das expressões terra rossa [3] e terra cota [4], que explica que os ingleses designem a argila por earth, os franceses por terre e que nós ainda usemos o termo terra com o mesmo significado em expressões como terra de greda [5] e a sinónima terra de pisoeiro.
Por razões dinâmicas, decorrentes dos diâmetros das respectivas partículas, a argila dos depósitos sedimentares está quase sempre associada ao silte [6] ou limo [7], dado que reagem de modo semelhante aos agentes de transporte (em suspensão na água ou no ar) e têm por destino os mesmos ambientes de sedimentação: os mais distantes das fontes, os mais profundos, os mais tranquilos ou menos energéticos.
Neste termos, os siltitos [8] são quase sempre argilosos e os argilitos quase sempre siltosos. Por exemplo, os xistos argilosos são formados por uma mistura de partículas realmente argilosas (argilominerais) com detritos essencialmente quartzosos (mas também feldspáticos e micáceos, entre outros) pertencentes à classe dimensional do silte. É, pois, mais correcto falar de rochas e de depósitos silto-argilosos.
Em 1873, o alemão Carl Friedrich Naumann (1797-1873) introduziu o termo Pelit (do grego pelos, lama), pelito, na versão portuguesa, para designar indistintamente estes materiais (argilitos, siltitos e xistos argilosos).
Em suspensão nas águas correntes, as argilas decantam ou sedimentam por imobilização destas, fazendo-o, muitas vezes, depois de flocularem, isto é, de se aglutinarem entre si, constituindo agregados de partículas, mais rapidamente atraídos para o fundo.
Muita da poeira atmosférica é constituída por finíssimas partículas argilosas e siliciclásticas [9], de dimensão equivalente, levantadas do chão pelo vento, em tempo seco. É frequente em Lisboa, na sequência de “borrifos” de chuva estival, com vento suão, essa precipitação ser algo lamacenta, uma vez que incorpora as referidas poeiras vindas do Alentejo e, até, do norte de África. Nestas ocasiões, o fenómeno é particularmente bem visível nos pingos de lama sobre a pintura brilhante dos automóveis estacionados na cidade e dá-nos a confirmação do transporte destes materiais em suspensão na atmosfera.
Na grande maioria, as argilas citadas na nossa bibliografia geológica são, como se disse atrás, misturas silto-argilosas. Representam cerca de 80% das rochas sedimentares conhecidas. Correspondem, no conjunto, aos mudstones [10] (de mud, lama) dos geólogos de língua inglesa, termo que os brasileiros traduziram como lamito, um nome que ainda não entrou no nosso vocabulário da especialidade.
Em 1913, quando os alemães ainda faziam uso da palavra Pelit, o americano Amadeus William Grabau (1870–1946) introduziu o termo lutite (do latim lutu, lama, lodo, vasa), lutito, na versão portuguesa, para designar os sedimentos silto-argilosos Estava-se ainda longe de separar as duas classes dimensionais (siltes e argilas) nele reunidas e só mais tarde definidas na escala, internacionalmente aceite, de Wentworth (1922).
Já se dispunha, contudo, de um conceito afim, representado pelo loess, cujo vocábulo foi introduzido na literatura geológica, em 1834, pelo inglês Charles Lyell (1797-1875), por adaptação do termo vulgar germânico Löss (do alemão lose, friável, não coeso).
O loess era então definido como um depósito sedimentar detrítico, não estratificado, mais fino do que as areias finas, friável, não coeso, de origem eólica (em ambiente periglaciário), contendo uma fracção terrígena (essencialmente silte + argila) e, por vezes, uma outra, calcária. Por dissolução do carbonato de cálcio, nos níveis mais superficiais, o loess dá origem ao limon (dos franceses) ou Loehm (dos alemães), constituindo boas terras aráveis e, por vezes, usado como barro no fabrico de tijolos. Nos depósitos de loess, o carbonato dissolvido precipita nos níveis mais baixos, formando concreções, conhecidas por Löss Kindchen (bonecas do loess).
Quando impregnados de água e, por vezes, misturados com matéria orgânica, como acontece nos solos, os sedimentos silto-argilosos constituem o que vulgarmente de designa por lama (do latim, com a mesma grafia, que significa atoleiro, charco), que corresponde à boue dos autores franceses, ao mud e ao loam dos ingleses, ao Loehm dos alemães, ao fango dos nossos irmãos ibéricos e ao tijuco, no Brasil. Quando submersos e embebidos de água, é habitual falar-se de lodo (do latim luto, lama) e também de vasa, nome que importámos do holandês wase (lama) através do francês vase.
Geralmente silto-argilosas, as varvas [12] foram inicialmente definidas como depósitos lacustres subactuais, finamente laminados (à escala milimétrica ou inferior), com alternância de materiais argilosos, escuros (matéria orgânica) e claros (silte e argila), indicadores da variação dos processos físicos, químicos e biológicos decorrentes da alternância, a montante, gelo-degelo nos glaciares. Cada par de lâminas (clara e escura) equivale, pois, a um ano e, assim, as varvas têm sido utilizadas em geocronologia do Quaternário. Este termo está na base de um outro, varvito, aplicado a depósitos sedimentares igualmente finos, laminados e consolidados, semelhantes no aspecto rítmico, mas mais antigos e de outras origens.
Em 1957, Nikolai Mikhailovich Strakhov (1900–1978) introduziu o termo aleurito (na versão portuguesa), com o qual designou a classe dimensional compreendida entre 0,1 e 0,01 mm, intervalo parcialmente coincidente com o de silte e que compreende, ainda, a areia fina. Radicado no grego aleurós, que significa farinha, o termo teve muito pouca penetração a nível internacional.
As propriedades dos argilitos estão intimamente relacionadas com as propriedades dos respectivos minerais, com destaque para a forma lamelar das partículas. Entre essas propriedades sobressai a de adquirirem fissilidade ou xistosidade (do grego, xystós, fender) quando sujeitos a compressão. Esta característica que se revela pela aparência folheada da rocha, pela facilidade com que se deixa abrir segundo esses planos e pelo paralelismo e regularidade dos mesmos, está na base do termo brasileiro, folhelho, sinónimo do nosso xisto argiloso.
Na maior parte dos casos, os argilitos resultam de uma sedimentação detrítica de minerais das argilas gerados noutros locais e posteriormente transportados até ao local de sedimentação. São considerados argilitos terrígenos ou herdados que, eventualmente, podem sofrer transformações. Todavia, existem outras acumulações de argilominerais, cuja génese tem lugar no próprio local, por síntese, a partir de substâncias em solução nas águas. São os argilitos de neoformação, com muito pouca expressão geológica, mas com grande expressão nos solos actuais.
Entre as múltiplas indústrias e artes que utilizam esta importante matéria-prima sobressaem, além das diversas cerâmicas (porcelana, faiança, refractários, barro vermelho), o cimento, a fundição (nos moldes), o papel, a borracha, os plásticos, as tintas, os medicamentos e os cosméticos.
Na indústria cerâmica de porcelanas utiliza-se uma argila muito pura, com a propriedade de se manter branca depois de cozida. Esta argila merece o nome industrial de caulino [13], termo tecnológico e oficialmente bem definido pelas propriedades da referida matéria-prima. Do ponto de vista mineralógico, os caulinos são formados essencialmente pelo mineral argiloso caulinite. Uma grande parte da indústria cerâmica não exige tais requisitos e utiliza outros tipos de argilitos, menos puros (geralmente com óxidos de ferro) e que, uma vez submetidos às elevadas temperaturas da cozedura, mantêm ou adquirem cor vermelha ou avermelhada. Estes argilitos são referidos a nível industrial por argilas comuns ou barros vermelhos, existentes em grande quantidade por todo o país, alimentando a volumosa indústria de tijolos, telhas e afins, bem como toda a série de artesanato de loiças de barro espalhadas do Minho ao Algarve.
Nas regiões pobres de rochas susceptíveis de serem usadas em alvenaria, recorria-se ao barro (muito antes da utilização do tijolo e do cimento) na preparação de adobe e taipa com que se erguiam muros, casas e até castelos, como acontece nalgumas zonas do Baixo Alentejo. Como produtos de alteração, no âmbito das chamadas rochas residuais, recordam-se os barros vermelhos de Ral (Ferreira do Zêzere), de Santa Catarina (Tomar), de Menoita (Guarda) e no Alentejo (por alteração quer dos xistos, quer de plutonitos básicos, quer do grande filão dolerítico que percorre esta província de NE para SW). Com conhecido interesse na agricultura cerealífera, também os chamados “barros de Beja”, negros, resultaram da alteração dos gabrodioritos locais. Igualmente residuais são os caulinos associados aos granitos e gnaisses da faixa litoral a norte de Aveiro, com destaque para o da Senhora da Hora (Porto). Neste capítulo, merecem ainda destaque as esmectites resultantes da alteração dos gabrodioritos de Benavila (Avis, no Alentejo).
Muitos argilitos explorados como barros vermelhos correspondem a camadas sedimentares, abundantes entre nós nas Orlas Mesocenozóicas (em especial no Triásico, no Jurássico superior e no Cretácico inferior e final) e nas Bacias Cenozóicas. Em Aguada (Águeda), Barracão (Leiria) e Pombal exploram-se argilas refractárias, utilizadas no fabrico de tijolos refractários e outras peças de cerâmica resistentes ao calor.
A argila esméctica, principal constituinte da greda, corresponde a uma argila de granularidade muito fina, de aspecto saponáceo, com grande poder absorvente das gorduras, sendo, por isso, utilizada, desde há muito, na indústria de tecelagem artesanal de preparação da lã, para a lavar e desengordurar. Como tal, é conhecida por argila ou terra de pisoeiro [14] (terre à foullon, em francês e fuller’s earth, em inglês). Outras propriedades deste tipo de argilas, tais como, expansibilidade, tixotropia , tornam-nas utilizáveis, por exemplo, como lamas de sondagem, pois lubrificam a coroa da sonda durante e perfuração e suportam as paredes do furo, uma vez retirada esta. Também as tintas tixotrópicas utilizam esta propriedade na pintura de paredes e tectos.
São várias as ocorrências de argilas esmécticas em Portugal, quer residuais, resultantes da alteração de rochas básicas (plutonitos e filões), quer sedimentares. Do primeiro tipo destaca-se a referenciada sob o nome de “bentonite”, associada à rocha gabro-diorítica de Benavila (Avis). Como esmectites sedimentares merecem destaque as argilas intercaladas nas Arcoses de Coja e na Formação do Bom Sucesso, ambas na Bacia do Mondego, nas Formações de Silveirinha dos Figos e de Cabeço do Infante, na Beira Baixa e as do Complexo Montmorilonítico, incluindo as Argilas de Tomar, na Bacia do Tejo-Sado.
Por último, uma breve referência às argilas fibrosas. São várias as ocorrências de palygorskite em território nacional, umas de alteração, em veios (fendas) no interior do basalto do Complexo Vulcânico de Lisboa, outras de natureza sedimentar, de idade paleogénica, intercaladas no Complexo de Benfica (Lisboa) e seus equivalentes nas Bacias Cenozóicas do interior do País.
A. Galopim de Carvalho
Notas:
[1] O mesmo étimo está na origem do termo cré, usado para designar o calcário friável que deu o nome ao Cretácico e a Creta, a ilha mediterrânea.
[2] alteração deutérica - alteração ocorrente no interior da crosta, exercida sobre os minerais das rochas, por acção de: 1) águas magmáticas residuais muito quentes (hidrotermais), dos vapores e dos voláteis associados; 2) águas residuais do metamorfismo regional; 3) águas meteóricas penetradas na crosta e, aí, aquecidas por efeito do grau geotérmico. O qualificativo deutérico, do grego deuterós, ulterior, secundário, alude à posterioridade dos minerais resultantes desse tipo de alteração, secundários relativamente aos minerais da rocha magmática, entendidos como primários. São exemplos deste tipo de alteração, a caulinização e a serpentinização O mesmo que alteração hipogénica.
[3] terra rossa - expressão italiana internacionalizada alusiva a um solo ferralítico, residual, de cor vermelha, composto essencialmente por argila e óxido de ferro. Resulta do processo de dissolução das rochas carbonatadas pelas águas pluviais carregadas de dióxido de carbono
[4] terra cota - é uma cerâmica cozida no forno, sem ser vidrada.
[5] terra de greda - nome vulgar referente a certas argilas desengordurantes (esmectites). O mesmo que terra ou argila de pisoeiro.
[6] silte . aportuguesamento do termo inglês silt, alusivo a uma fracção detrítica, predominantemente de quartzo, de granulometria compreendida entre 0,063 e 0,004 mm.
[7] limo - termo português equivalente ao silt dos autores ingleses
[8] siltito - rocha sedimentar detrítica coesa, essencialmente formada por silte.
[9] siliciclásticas - diz-se das partículas detríticas de minerais siliciosos (quartzo, feldspatos, micas, etc.).
[10] Termo introduzido na terminologia geológica, em 1839, pelo geólogo inglês R. Murchinson, para referir uma rocha xistenta, muito friável, do Silúrico do País de Gales.
[11] Relacionada com este termo, temos, em português, a palavra fangoterapia, o tratamento clínico com lamas.
[12] Termo introduzido pelo sueco Gerard De Geer, em 1912, a partir do varv, termo local que alude à disposição em camadas.
[13] caulino - conhecido e utilizado desde a Antiguidade, no Extremo Oriente. O nome provém de Kao Ling, expressão que significa montanha alta e que refere uma localidade na província de Jiangxi, na China. Os ingleses chamam-lhe China clay, numa alusão nítida à importância desta matéria-prima no país do Sol Nascente.
[14] pisoeiro - o artífice que lavava e desengordurava a lã, usando o pisão.
[15] tixotropia - Em linhas gerais, consiste na possibilidade de uma suspensão argilosa em água adquirir grande viscosidade, em repouso, e fluidez quando agitada.
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