segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Duplo desaparecimento prematuramente anunciado



Extracto do livro "Do Livro e da Cultura", de  Gil Jouanard, com tradução, introdução e notas de Miguel Graça Moura, que acaba de sair na Gradiva:

"Dois mal-entendidos vieram obliterar, e de certa maneira dramatizar, o lancinante debate sobre o futuro do livro e o devir da literatura.

Enquanto suporte e vector de informações, resumo, utensílio de aprendizagem, instrumento pedagógico, via portátil de evasão onírica, o objecto livro chegou de facto tardiamente ao campo onde, desde há dezenas de milénios, se desenvolvem as aptidões cerebrais do ser humano. Foi, de resto, por intermédio da oralidade que o Homo sapiens sapiens conseguiu o domínio mental e a seguir físico do mundo visível; mas também que pressentiu a existência de uma vertente invisível, impalpável mas activa, desse mesmo universo.

Este estatuto interino assumido pelo livro enquanto vector, receptáculo e instrumento propagador de saberes, de intuições, de elucubrações e de fantasmas fundava a sua legitimidade no pressuposto segundo o qual «as palavras apagam-se, os escritos ficam».

Segundo o mesmo princípio, a comodidade e a busca de eficácia encontraram utensílios muito mais fiáveis, menos aleatoriamente tributários do grau de perícia e de domínio do utilizador, para desempenhar o papel ao mesmo tempo pragmático e especulativo (mas também tranquilizador) de vade mecum, de jornal, de memória para todos os usos: a informática e a electrónica propõem uma impecável versão sofisticada do canivete suíço para uso cerebral.

Não duvidemos também do facto de que esta nova prótese saberá rapidamente concorrer com (se não suplantar) a leitura livresca, progressivamente relegada para o baú das antiguidades nobres e sentimentais.

De resto, muitos bibliotecários já se adiantaram a este movimento ao renunciarem ao uso do belo prefixo vindo da Antiguidade, esse biblios portador de usos subtis, para adoptarem uma outra raiz inaugural, tão pragmática como era o espírito dos romanos: o medium, utilizado aliás na sua forma plural media, que em latim significa ao mesmo tempo mediano e medíocre.

A causa está, pois, proclamada: ensinar, informar e mesmo divertir (todas preocupações excluídas por Hölderlin da panóplia das tarefas atribuídas aos poetas) serão, cada vez mais frequentemente, e talvez em breve exclusivamente, assunto de «suportes» dotados de inesgotáveis aptidões, extensíveis, combináveis entre si, com a informação a substituir-se resolutamente à formação individual e à quota-parte de iniciativa aleatória.

Todavia, não duvidemos de que os recursos de paciência, de lentidão fértil, de sensualidade táctil e epidérmica, mas também visual, que as páginas dum livro encerram, encontram diante de si um belo futuro: aquele que é reservado às coisas raras, às práticas cuja natureza supostamente elitista se oferece a quem lhe sabe reconhecer e adoptar as subtilezas, fundadoras da parte mais fértil do húmus humano (esse húmus que privilegiará sempre os acentos da viola da gamba em relação aos da música sintética).

Leremos, pois, tal como os amantes amam acariciar-se em segredo: no retiro luxuoso, na calma e na volúpia das Pequenas Bibliotecas Privadas — esses poderosos e afectuosos marcadores da identidade individual.

É certo que muitas vezes já não se irá procurar nos livros aquele saber e aquela «evasão» lúdica que são servidos abundantemente nos self-services de multimédia. Mas continuar-se-á a ir descobrir neles a poesia e o pensamento requintado, personalizado, voluntariamente atípico, aquele que, fora da norma globalizante, permanecerá como fruto e sabor das palavras do acaso que nenhum sistema conseguiria programar porque surgem de improviso, às vezes até de um lapsus generoso — palavras cujo sentido varia de um leitor para outro, às vezes de um instante para outro, ao sabor daquele não-dito que as atravessa e daqueles subentendidos que as fazem tremer.

Por outro lado — segundo mal-entendido e corolário da «fatalidade» histórica — ouve-se dizer que a literatura está a morrer, que já não há tantos grandes romancistas nem tantos leitores como no passado.

Para além do facto de que estas asserções sumárias ganhariam em ser submetidas à prova do estudo cuidadoso e colocadas na escala da extensão dos tempos modernos (isto é, os que decorrem desde o século XVII, investigando quem lia, no tempo deles, Descartes, Racine, La Fontaine, Voltaire, Diderot, Chateaubriand, Baudelaire...), vai sendo tempo de constatar esta evidência estranhamente iludida: o consumo das obras de ficção romanesca decresceu à medida que se foi confirmando a aptidão da imagem móvel para se encarregar dos recursos propostos pelo imaginário (isto é, a sua magnífica capacidade para contar, evocar, narrar, descrever, e até sugerir...).

A tal ponto que a vocação de um Balzac, um Flaubert, um Zola, hoje, teria sido sem dúvida a de recorrer às fabulosas aptidões objectivas desses utensílios (que não o são mais do que o era uma pena ou, mais recentemente, uma máquina de escrever). Melhor ainda: sem dúvida eles encontrariam aí a ocasião de ampliar e aprofundar ainda mais o campo da sua investigação, mas também de tornar mais sensível a densidade da sua percepção sensorial. Em contrapartida, para o escritor e o leitor doidos por acasos linguísticos selvagens e solicitações polissémicas íntimas — a que a história ou o conto só dizem respeito em segunda instância —, a escrita ao nível altivo da mão e a leitura à queima-roupa, ferozmente pessoal, — e portanto o livro — conservam uma esperança de vida sem dúvida tão longa como a da espécie humana, que elas de perto representam."

Esta literatura de proximidade ter-se-á provavelmente afastado da preocupação de contar, de produzir frescos históricos, de fornecer explicações, de misturar acontecimentos. Terá voltado a ser o que tinha sido desde a sua origem: um modo de habitar e tornar- se a própria realidade.

Assim, o livro do futuro já não será sem dúvida factual nem pedagógico nem recreativo: será existencialmente o lugar por excelência da emergência de instantes autónomos e irredutíveis, a que cada um irá colher a energia para realizar a sua própria revolução interior, a sua marcha lenta em direcção a si mesmo, a sua peregrinação à sua própria emancipação, a sua prova de auto-superação permanente. Mas, com efeito, alguma vez a literatura foi outra coisa?

2 comentários:

augusto kuettner disse...

Agarrando unicamente no titulo: de facto neste País com toda a velocidade tudo está a ser feito para acabar com a Cultura e com o Livro...............quanto mais burros e incultos ficarmos mais satisfeito fica o Poder Politico......é o que temos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Por isso mesmo, que a Gradiva acolhe a leitura! Ternura a saber.

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