segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Uma história de evolução. O roquinho dos Açores. Parte II



Há dias publiquei um post sobre a história do Roquinho e das investigações, iniciadas pelo biólogo Luis Monteiro, que conduziram à recente proposta de uma nova espécie, Oceanodroma monteiroi, constituida pela população que nidifica no período quente (Abril-Outubro), em alguns ilhéus junto da Graciosa, no arquipélago dos Açores. Adiantando-me, utilizarei as designações de Roquinho e de Roquinho-de-monteiro, para designar a espécie original e a nova espécie, que são também as populações reprodutoras fria e quente.

O processo de especiação, embora extremamente importante, na medida em que constitiui a base da diversidade das formas de vida, já que se não houvesse barreiras reprodutivas seria impossível uma diferenciação tão vasta como a que conhecemos, não é fácil de estudar, por razões óbvias. São necessárias milhares de gerações para que um processo de especiação se complete, pelo que dificilmente podemos observar um inteiro, no curto período de tempo das nossas vidas, ou da nossa ciência.

Darwin sugeriu a possibilidade da formação de novas espécies no mesmo local, ou especiação simpátrica. Mas, tal ocorrência foi refutada por Ernst Mayr, um dos maiores evolucionistas do Séc. XX, que sistematizou e teorizou o processo de especiação, a partir da genética de populações. Segundo Mayr, seria sempre necessária alguma forma de isolamento geográfico (alopatria) para que a divergência genética entre duas populações se fosse acumulando até ao ponto em que os genomas se tornassem incompatíveis e deixasse de ser possível o entrecruzamento entre elas. Esta forma de especiação designa-se por especiação alopátrica, literalmente ‘em locais distintos’. Os casos de espécies muito parecidas ocorrendo nos mesmos locais seriam, assim, explicados por uma convergência secundária das duas espécies num mesmo local, depois de se terem especiado em zonas geograficamente isoladas entre si. Um exemplo clássico é o das espécies em anel, como a gaivota-argentea que têm populações espalhadas pelo globo, formando uma banda à mesma latitude, cada uma um pouco diferente da vizinha, até que se encontram, depois de um arco de mais de 30 mil Km. E, nesses locais (Europa ocidental), as populações já são duas espécies bem distintas que não se cruzam. É como se tivéssemos representado no espaço o tempo de especiação.

A refutação de Mayr não foi, contudo, convincente na medida em que, embora se aceite que a forma de especiação por ele defendida será a mais fácil e frequente, não deixa de ser admissível a especiação simpátrica. O difícil é encontrar exemplos.

Ora o exemplo do Roquinho e do Roquinho-de-monteiro ilustra um verdadeiro caso de especiação simpátrica em vertebrados terrestres. Os dados moleculares revelam que a população fria dos Açores (roquinho) está geneticamente mais próxima das populações da Madeira, das Berlengas ou das Canárias do que da população quente dos Açores, ou Roquinho-de-monteiro. A medição do tempo de divergência evolutiva entre as duas populações é de 75 mil a 180 mil anos. Como a população quente dos Açores só ocorre naquele arquipélago, é pouco provável que a formação da nova espécie se tenha dado em locais separados. Aliás, dada a extrema mobilidade das aves destas espécies – são frequentemente capturados no golfo do México, indivíduos anilhados nos Açores –, não se pode falar de isolamento geográfico nas ilhas atlânticas.

Curiosamente, também nas Galápagos e em Cabo Verde ocorrem duas populações nidificantes em período quente e frio. Também aqui parece haver uma certa segregação entre as populações. Mas, ao contrário do que sucede nos Açores, ocorre fluxo genético entre as populações quente e fria. Isto é, podemos estar a assistir a um processo incipiente de especiação, que poderá vir a evoluir no mesmo sentido do que se verificou nos Açores.

Mas, como podem evoluir espécies num mesmo local?

Um elemento fundamental deste isolamento simpátrico é o das barreiras comportamentais entre populações. Se os membros de uma população só acasalarem entre si e segregarem os da outra, através de formas de reconhecimento intrapopulacional, escolha do par, ou outra forma de segregação entre indivíduos pertencentes às duas populações, cria-se uma barreira ao fluxo genético. Neste contexto, a descoberta de que as vocalizações das duas espécies nos Açores são bem distinguíveis e que os indivíduos de cada população só respondem às vocalizações da sua população e não às da outra é muito elucidativa.

A formação da nova espécie de roquinho (Oceanodroma monteiroi) nos Açores é um caso excepcional de história evolutiva, mas também de história humana, pela forma como nasceu e se desenvolveu a investigação sobre estas duas populações. A riqueza da natureza está nos detalhes. É preciso saber olhar para eles, como o Luis Monteiro soube olhar.

4 comentários:

Aragão disse...

Bom dia.
Confirma-se a greve dos professores, amanhã?

perspectiva disse...

Convém antes de mais, reafirmar que a especiação, seja ela alopátrica ou simpátrica, nada tem que ver com a suposta evolução de partículas para pessoas.

Pelo contrário, ela corrobora o modelo criacionista das migrações pós-diluvianas, em que, a partir de pequenos grupos dotados de grande variedade genética, as pupulações foram dando lugar a subpopulações, especializando informação genética pré-existente.

Essas migrações permitiram às diferentes espécies a sua dispersão por continentes e ilhas, à semelhança do que sucedeu com os tentilhões dos galápagos.

O problema, para os evolucionistas, é que cada nova "espécie" que surge por este processo tem menos informação genética do que a população de que descende.

A evoluçção, a ser verdade, deveria propiciar aumentos exponenciais da quantidade e da qualidade da informação genética.

A especiação caminha no sentido oposto, na medida em que a quantidade e qualidade da informação genética disponível em cada nova "espécie" é cada vez mais reduzida.

A especiação nada tem que ver com a hipotética transformação de bactérias em bacteriologistas.

A especiação alopátrica, através do isolamento geográfico, é a mais comum, dela existindo muitos exemplos.

A especiação simpátrica, ainda que menos comu, também tem sido documentada nalguns casos.

O mesmo sucede com a especiação mediante recombinação genética.

Como disse, ambas as formas de especiação são fundamentais para se perceber as migrações posteriores ao dilúvio.

No entanto, por nunca darem lugar à codificação de estruturas e funções inovadoras e mais complexas, a especiação nada tem que ver com a suposta evolução de micróbios para microbiologistas.

Fernando Martins disse...

É sempre agradável ouvir um professor de Direito discorrer sobre evolução - ou não será assim?

paulu disse...

Primeiro que tudo quero felicitar o De Rerum Natura por estes dois artigos sobre o roquinho (ou painho) de Monteiro. No meio destas polémicas em torno dos «modelos de avaliação» e afins, creio que passaram imerecidamente despercebidos. Será que não se reparou que se descobriu brilhantemente uma nova espécie de ave, por acaso endémica dos Açores, e cujo nome irá homenagear o cientista português que esteve na origem da descoberta? Não é coisa que ocorra todos os anos…

Estou particularmente fascinado com a possibilidade de a especiação destes painhos ter ocorrido por simpatria. Todavia, não sei se fiquei convencido com o facto de a diferenciação do canto nupcial estar na origem da separação das espécies. Certo que o terem cantos distintos estará hoje a proporcionar a essa separação, mas tal não significa que tenha sido o elemento que originou a divisão.
É verdade que algo semelhante poderá estar a ocorrer com uma espécie de escrevedeira (geospiza fortis) no superlaboratório das Galápagos. Grosso modo, parece que os indivíduos com bicos de tamanho mais extremo – seja para o XS, seja para o XL – estão a obter vantagem sobre a malta com bicos de tamanho intermédio. E como o tamanho do bico afecta a cantoria, etc... E também é verdade que já os estudos de Luís Monteiro apontavam para o facto de as duas espécies de roquinhos seguirem dietas algo distintas.
Contudo, fica fora da explicação essa coisa intrigante de as duas espécies usarem os mesmos locais de nidificação em períodos tão incoincidentes quanto possível. Interrogo-me se na origem da especiação não estará o simples facto de alguns indivíduos terem “experimentado” acasalar fora da época própria, a fim de tirarem partido de um recurso escasso: um espaço porreiro para nidificar. E as restantes diferenças, morfológicas e comportamentais, canto inclusive, terão sobrevindo deste facto.

Seja como for, a maior preocupação agora é conseguir proteger os poucos roquinhos de Monteiro que sobreviveram à colonização dos Açores. 200 ou 300 casais não é um valor que dê margem para grandes optimismos. Gostaria que se confirmasse que eles também conseguem reproduzir-se noutros locais. Aqueles dois ilhéus na Graciosa, ainda por cima tão à mão de semear, é pouca coisa.

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Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...