quinta-feira, 26 de junho de 2008
CHICAGO, 1933: UM CONTO AMERICANO
“Um século de progresso” era o mote da Exposição Mundial que em 1933 e 1934 esteve patente na cidade de Chicago, Estados Unidos. É nessa cidade e nessa altura que se passa a peça “Um Conto Americano – The Water Machine” do dramaturgo norte-americano, natural de Chicago, David Mamet, que agora está exibição no Teatro Nacional de D. Maria II, em Lisboa, com encenação de Maria Emília Correia.
O enredo da peça é muito simples e pode contar-se, para quem ainda não a viu, em poucas palavras: um jovem operário, Charles Lang, inventa um revolucionário motor a água (esse motor não existe, pelo que essa invenção não aconteceu), querendo patenteá-lo e, com os rendimentos, ir viver pacatamente para uma casa no campo com a irmã, mas dois advogados, representando interesses tão poderosos como obscuros, perseguem-nos furiosamente (isto não aconteceu, mas podia ter acontecido)... O azar do casal de irmãos é atribuído no final ao facto de o jovem ter interrompido uma carta em cadeia. Neste “conto americano” e ao contrário da maioria dos outros contos, o mal ganha ao bem, advindo esse resultado de uma fatalidade. A moral da história é muito pouco moral.
A Exposição Mundial de Chicago, que celebrava os progressos do início do século passado, está subjacente a todo o enredo, surgindo mesmo em cena com a ajuda de um guia do Pavilhão de Ciência, o “Hall of Science”, que, entre outras maravilhas, apresenta um “navio-foguete” que atravessa os ares. O guia louva efusivamente os benefícios da ciência, embora mencionando em paridade os malefícios: “Science is the greatest force for good and evil”. Os progressos do século são, afinal, os progressos da ciência, e num país e numa cidade dizimados pela Grande Depressão (que, começada em 1929, atingia por essa altura atingia o seu vale mais fundo), as novidades da ciência expostas na feira constituíam uma luz de esperança no futuro. E havia, de facto, algumas razões vindas da ciência para ter esperança: em 1933, reuniu-se em Bruxelas a 7ª Conferência Solvay de Física, com dezenas de actuais ou futuros prémios Nobel a discutir avanços promissores da física nuclear, e o Prémio Nobel da Física foi dado a dois talentosos jovens, o austríaco Erwin Schroedinger e o inglês Paul Dirac, que tinham ajudado a criar, poucoa anos antes, a teoria quântica, um ramo da Física que de facto mudou o mundo no século XX. Mas, por outro lado, foi nesse mesmo ano que Adolf Hitler subiu ao poder na Alemanha e que as suas ideias se começavam as espalhar, mesmo para além do Atlântico. Foi também o ano em que Franklin Roosevelt foi eleito Presidente dos Estados Unidos, tendo de enfrentar em primeiro lugar a Grande Depressão, com o “New Deal”, e depois o Terceiro Reich, com a entrada na guerra. Em Bruxelas estavam ainda unidos muitos físicos que a guerra mundial haveria de desunir (lembre-se a peça “Copenhaga” de Michael Frayn)
Apesar de a ciência parecer ter um papel central nesta peça, de facto a ciência é um pouco lateral à história. Para começar, o objecto de disputa – o motor a água - é tecnológico e não propriamente científico. Charles Lang faz um biscates na sua oficina e pouca ideia tem da ciência do seu tempo, numa altura em que a melhor tecnologia já se tinha de basear em conhecimentos científicos avançados. Fazia-se boa ciência nessa época, inclusivamente em Chicago, na Universidade de Chicago. E no “Hall of Science” distribuía-se mesmo um interessante “booklet” dedicado a divulgar as ciências básicas como a física e a química. Mas o rapaz era um inventor isolado, desligado dos círculos científicos e até da indústria mais avançada. O autor da peça assume a atitude um pouco “naif”, mas que ainda hoje está generalizada, de confusão entre ciência e tecnologia, entre conhecimento e aplicações práticas. Há que convir que, por vezes, a destrinça não é fácil, o que leva a situações nas quais o justo paga pelo pecador. Mas ela deve ser procurada, até porque a existência ainda hoje de numerosos inventores auto-didactas mostra que se pode buscar aplicações por tentativas avulsas sem ter afinal grandes conhecimentos sobre o mundo.
Mas há um outro argumento que serve para mostrar que a ciência, ao contrário do que acontece no chamado “teatro científico” (de que "Copenhaga" é exemplo), ligado de perto aos conceitos e às práticas das da ciência, é lateral à história: se substituirmos o pretenso motor a água por um mapa do tesouro ou por um tesouro qualquer, o enredo poderia ser exactamente o mesmo. Quer dizer, os mauzões dos advogados não perseguem o bom do rapaz por ele saber ciência demais ou poder vir a saber demais, mas simplesmente apenas porque ele se pode tornar rico – o tal sonho americano – prejudicando alguns dos ricos já existentes – que sabem como ninguém transformar os sonhos dos outros em pesadelos.
De qualquer modo, além de recriar bastante bem uma época histórica decisiva no século XX - a cenografia, usando toda uma parafernália de recursos, é excepcional – a versão de “Um Conto Americano” que está no Teatro Nacional conta de uma maneira sedutora uma história que, apesar de simples, pode ser vista de várias maneiras. Uma história que nos faz pensar. Confesso que, apesar disso, esperava mais da escrita de David Mamet, que não conhecia e tinha visto muito apregoada, mas em sua defesa há que dizer que a peça é do começo da sua carreira e que foi escrita originalmente para a rádio e não para o palco (o que resulta na telefonia pode não ser o que resulta num teatro, um problema que foi resolvido numa versão americana com a colocação de um estúdio radiofónico em palco). Um bom naipe de actores assegura uma boa representação, com Luís Gaspar e Paula Neves nos papéis principais de Charles e Rita Lang. Destaco uma grande senhora do teatro português, Lourdes Norberto, que faz um pequeno papel de uma emigrante polaca. A encenação vive da frequente mutação de cenários de cunho tecnológico, que não se poderá repetir noutro palco (chove mesmo a sério numa das cenas, pelo que a peça não é nenhuma seca!). O potencial espectador fará bem em ir ao Teatro Nacional porque um espectáculo desse tipo não se volta a fazer facilmente.
Uma palavra final sobre energias renováveis, um tema que é hoje mais actual do que nos anos 30. O motor a água da peça não é uma alternativa viável aos motores convencionais pela simples razão de ser fisicamente impossível. O dispositivo mais parecido é o motor a células de combustível que combinam oxigénio e hidrogénio para dar água (é um motor a água ao contrário). Mas remonta aos anos 30 a energia nuclear, uma das formas de energia que, embora não sendo renovável, tem ainda muito para dar a um planeta que é obrigada a diminuir o efeito de estufa. Em 1933 o casal Joliot-Curie fazia, em Paris, as primeiras experiências de radioactividade artificial, desencadeada por uma reacção nuclear. A energia nuclear começava então a ser uma hipótese plausível. Em 1939 era descoberta a cisão nuclear por Otto Hahn em Berlim. Onde foi construída a primeira pilha nuclear, baseada numa reacção em cadeia? Pois tal ocorreu em 1942, já durante a guerra, precisamente em Chicago, debaixo das bancadas de um estádio, por obra e graça de Enrico Fermi, um genial cientista italiano que estava na Conferência de Bruxelas e que, como muitos outros, foi obrigado a emigrar, demandando a América. Ele e os outros cientistas que emigraram, europeus ou americanos, esses sim, viveram, ao contrário de Charles Lang, o sonho americano (Albert Einstein também, emigrado para a América em 1933). E não houve cartas em cadeia que os tivessem impedido de vencer...
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1 comentário:
Tudo isso é muito interessante, certo, mas a peça é miserável! A encenação é engenhosa graças ao desmesurado investimento nos cenários; mas não vai além disso: o trabalho de actores é absolutamente nulo, ao nível do puro amadorismo! Obviamente não voltei após o intervalo.
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