Certos livros importantes tardam muito a sair em português.
Terra e Mar. Breve reflexão sobre a história universal, do alemão Carl Schmitt, então professor de Direito na Universidade de Berlim
, demorou 66 anos. Tinha vindo a lume em Stuttgart em 1942 na Klett Kotta
. O mesmo autor, apesar de ter uma obra vastíssima, só tinha publicados entre nós
Teoria da Guerrilha (Arcádia, 1975) e
Catolicismo Romano e Forma Política (Hugin, 1998). Este último foi traduzido, tal como o que acaba de sair, por Alexandre Franco de Sá, professor de Filosofia da Universidade de Coimbra e especialista no pensador alemão (ele é autor de
Metamorfose do Poder: prolegómenos schmittianos a toda a sociedade futura, Ariadne, 2004, e da tese de doutoramento
O Poder pelo Poder: ficção e ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder, Universidade de Coimbra, 2007).
Schmitt é um intelectual indissociável do regime de Hitler. Com efeito, foi professor em Berlim entre 1933 e 1945, período em que foi membro do partido nazi, depois de se ter doutorado em 1915 em Estrasburgo (então alemã) e de ter sido professor em Munique, Greifswald, Bona e Colónia. Preso pelos russos no fim da Segunda Guerra Mundial, foi pouco depois libertado para voltar a ser detido pelos americanos, tendo ficado detido durante largos meses no âmbito do Julgamento de Nuremberga dos crimes de guerra nazis. O inquérito foi inconclusivo e Schmitt não chegou a ser
julgado. Os registos dos interrogatórios são hoje conhecidos e ilustram a
complexa relação entre o mundo imaterial das ideias e o terreno material do governo e da guerra. Leia-se um extracto, na língua do interrogador Robert Kempner:
“K: I take it for granted that, as a professor of public law, you know exactly what a war of aggression is. Do you agree with me on the fact that Poland, Norway, France, Russian, Denmark, Holland were invaded? Yes or no?
S: Of course.
K: Did you not provide the ideological foundation for those kinds of things?
S: No.
K: Could your writings be so interpreted?
S: I do not think so - not by anyone who has read them.
K: Did you seek to achieve a new international legal order in accordance with Hitlerian ideas?
S: Not in accordance with Hitlerian ideas and not sought to achieve but diagnosed.”
http://www.theoria.ca/theoria/archives/2005/12/carl-schmitt-at-nuremberg.html
Lembre-se que outros professores alemães mundialmente famosos, como Heidegger, na Filosofia, e Heisenberg, na Física, permaneceram, tal como Schmitt, na Alemanha, durante a guerra, tendo sido acusados de colaboração ou, pelo menos, simpatia com o regime nazi. Schmitt, embora se tenha defendido bem e tenha sido libertado, não se distanciou suficientemente das fortes acusações que sobre ele pendiam.
Algo isolado e retirado do ensino universitário, Schmitt viveu muito tempo depois da guerra, continuando a estudar Filosofia do Direito e Direito Internacional. Nascido em 1888 em Plettenberg, na Vestfália, só veio a falecer, nessa mesma terra, com a bonita idade de 97 anos. Assistiu ao II Império Alemão (II Reich), à Primeira Guerra Mundial, viveu todo o período da República de Weimar (desde o fim dessa guerra até à tomada do poder pelo Fuehrer), todo o tempo do III Reich assim como o pós-guerra na República Federal Alemã. Só não viu o muro de Berlim cair pois isso só aconteceu em 1989, quatro anos depois da sua morte. As suas teses jurídicas são bastante controversas. Defendeu a figura jurídica de “estado de excepção” (depois do incêndio do Reichtag a Alemanha, com a suspensão de partes da Constituição de Weimar, viveu um “estado de excepção”). A soberania, segundo Schmitt, consiste precisamente na capacidade de instaurar esse "estado de excepção". Defendeu também uma ideia de “teologia política” segundo a qual todo o direito teria proveniência divina, isto é, resultaria da secularização de leis sagradas. Em 1934, na Noite das Facas Longas, justificou os assassinatos dos comandos das SA falando em “forma superior de administração de justiça”. Assumiu posições claramente anti-semitas. E desempenhou vários cargos profissionais e governamentais que exigiam a confiança dos dirigentes nazis. Valeu-lhe, no fim da guerra, para além da sua enorme capacidade argumentativa, o facto de, em 1936, ter sido atacado pelo jornal das SS (Das Schwarze Korps), que o acusou de ser católico e de o seu anti-semitismo ser apenas uma manobra oportunista e de encobrimento por ter antes defendido posições anti-racistas (de facto, Schmitt era católico, embora tenha sido excomungado por ter casado segunda vez, em 1925, com uma ex-aluna de origem sérvia).
Carl Schmitt, no âmbito da sua actividade académica, visitou vários países, entre os quais Portugal. Nas actas dos seus interrogatórios de Nuremberga encontra-se uma referência a uma palestra na Universidade de Coimbra durante a Segunda Guerra Mundial. Havia em Portugal nessa época um grupo de personalidades assumidamente germanófilas. Uma delas foi o Professor de Direito da Universidade de Coimbra Luís Cabral de Moncada, cujas memórias foram publicadas já depois da sua morte (Memórias, Luís Cabral de Moncada, Pessoas, Factos, Ideias 1888-1974, Verbo, 1993). Moncada nasceu no mesmo ano de Schmitt, mas morreu antes, não tendo por pouco assistido à Revolução de Abril. Nessa muito interessante auto-biografia (que é não só a trajectória de uma vida, mas a trajectória de um século português, que vai da monarquia constitucional ao Estado Novo, passando pela Primeira República) refere a assinatura de Carl Schmitt no Livro de Honra da casa que Moncada possuía em São Silvestre, nos arredores de Coimbra (agradeço ao bibliotecário Jorge Pais de Sousa esta informação). São aí contadas histórias muito curiosas como a intervenção de Moncada no Tribunal Internacional do Sarre, nos anos 30, em representação do governo português, e a sua presença num banquete, nos anos 40, em Berlim, onde um alto dignitário alemão criou inopinadamente uma Câmara Jurídica Internacional, aproveitando a presença de vários convidados estrangeiros. Vem aí também contada a anedota segundo a qual, numa comissão formada por Moncada e dois outros juristas portugueses, ele saberia alemão, mas não Direito, o segundo saberia Direito mas não alemão, enquanto o terceiro não saberia nem Direito nem alemão...
A edição portuguesa de Terra e Mar mostra na capa uma paisagem costeira, onde entram três dos quatro elementos dos antigos gregos: a terra, o mar e o ar. Só falta o fogo, mas há um avião no ar... Trata-se de uma narrativa, escrita para a sua única filha, da progressiva ocupação do espaço pela humanidade. O homem é um animal terrestre. O seu planeta chama-se Terra, apesar de estar coberto na sua maioria por água e de a vida ter começado na água. Mas, segundo Schmitt, a evolução da humanidade deu-se no sentido da conquista dos mares. Quem teve o poder foi sempre quem obteve o domínio do mares. Fala dos descobrimentos portugueses, referindo o Tratado de Tordesilhas. Antes disso fala de Isaac Abravanel, o judeu que foi tesoureiro de D. Afonso V, antes de ter ter ido para Espanha e Itália, e que, como cabalista, interpretou o Antigo Testamento (o livro de Schmitt, nas edições do pós-guerra, foi expurgado de excertos mais anti-semitas). Fala dos holandeses, que disputaram os mares aos portugueses (apesar da sua religião, Schmitt nutria, como nota o prefaciador Virato Soromenho Marques, simpatia pelos holandeses). Fala do domínio inglês dos mares, que veio a seguir. Na Primeira Guerra Mundial começou, porém, o domínio do ar que, na Segunda Guerra, passou a ser absolutamente decisivo. O livro está na linha de um antigo mito segundo o qual, depois do ar, viria o fogo. De facto, Berlim viu, três anos depois de Terra e Mar, o fogo descer dos céus!
É uma obra, que apesar de breve, versa não só a história, mas também a mitologia, a política, a geoestratégia, a filosofia, a literatura e a ciência. Lê-se muito bem. Está de parabéns não só o tradutor como a editora. A cultura alemã, apesar dos esforços de muita e boa gente, não tem entre nós peso equivalente ao de outras. E Schmitt, apesar da sua deplorável ligação ao nazismo, é um autor que tem vindo cada vez mais a ser lido e discutido na Alemanha e em todo o mundo. Talvez porque George W. Bush, depois do ataque aéreo às Torres Gémeas, fez aprovar o “Patriot Act”, que cria afinal um “estado de excepção”...
- Carl Schmitt, Terra e Mar. Breve reflexão sobre a história universal, Esfera do Caos, Lisboa, 2008.
4 comentários:
Finalmente uma excelente recensão literária. Uma personagem fascinante, pelos excertos.
JSA:
A recensão é demasiado à la Wikipedia e, como a Wikipedia enferma de alguns problemas.
Carl Schmitt é um personagem fascinante e muito controverso, sem sombras de dúvidas um dos mais importantes filósofos políticos do século XX. Mas os parágrafos aqui escritos são de uma superficialidade atroz.
Por exemplo, não é verdade que jornal das SS (Das Schwarze Korps), que o acusou de ser católico . O Das Schwarze Korps acusou-o de catolicismo político o que só faz sentido se se souber que Schmitt começou a sua vida política no Zentrum, o partido católico de direita formado para as primeiras eleições para a assembleia constituinte na república de Weimar em 19 de Janeiro de 1919. Nessas eleições, o Zentrum ficou em 2º lugar (o 1º foi o SPD, Partido Social Democrata, com 163), com 89 dos 420 lugares no Reichstag.
A história da república de Weimar é fascinante e conturbada mas é preciso perceber que a parte mais significativa da obra de Schimtt foi escrita no contexto histórico-político da república de Weimar. Como escreveu o próprio Schmitt, não é possível escrever um mesmo ensaio duas vezes, porque as situações políticas mudam constantemente, e “uma verdade histórica é verdade somente uma vez”.
Resta dizer que a constituição que saiu dava prerrogativas excepcionais ao presidente, especialmente no famoso artigo 48 da Constituição que permitiu uns anos depois que Hitler matasse de morte matada a república de Weimar e dissolvesse os restantes partidos (o Zentrum já se tinha dissolvido de motu proprio para apioar Hitler)
Vale a pena ler «The Enemy: An Intellectual Portrait of Carl Schmitt» editado por Gopal Balakrishnan, o melhor que já li sobre Schmitt para se perceber porque acho esta recensão muito fraquinha...
Depois, Schmitt era um jurista (indiscutivelmente conservador e de direita como a maioria dos juristas alemães da época mas não era um nazi, era do Zentrum, durante o tempo de implantação do nazismo. só entra no partido nazi em 1 de maio de 1933, por convite de Heidegger
Por exemplo, é interessante contrastar as decisões judiciais acerca das diversas revoltas e assassinatos políticos, cometidos por extremistas de direita e esquerda entre 1922 e 1925.
dos vinte e dois assassinatos praticados por extremistas de esquerda, 17 foram exemplarmente punidos, 10 deles com a morte.
Os extremistas de direita cometeram 354 assassinatos, só um foi rigorosamente punido mas sem pena de morte.
Por exemplo, depois do malogro do "Putsch" de Kapp, em 1920, o governo acusou 705 pessoas de alta traição, mas só uma foi condenada ... a 5 anos de cadeia!
O líder militar do Putsch, o general Fheiherr von Luettwitz, por decisão de um tribunal alemão em 1926, teve direito a receber as pensões devidas ao tempo em que conspirou contra o governo e andou a monte em fuga da justiça na Hungria.
Depois, apesar da prisão perpétua, prevista no artigo 81 do Código Penal Alemão, para "todo aquele que tentar alterar pela força a Constituição do Reich Alemão, ou de qualquer Estado da Alemanha", Hitler foi condenado... a 5 anos de prisão, e só cumpriu 8 meses num quarto privativo no castelo de Landsberg o0nde escreveu o "Mein Kampf".
O passado político e literário de Scmitt era visto com muito maus olhos pelos nazis, como a publicação das SS comprova.
Não só era amigo de intelectuais judeus como Hugo Preuss, Walter Benjamin e Fritz Eisler - a quem dedicou a sua "Teoria da Constituição" como denunciava a a tomada "legal" do poder por extremistas na "Legalidade e legitimidade".
Hitler era católico, e é bem conhecido o anti-semitismo dos católicos no caso Dreyfus.
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