quinta-feira, 29 de maio de 2008
A reforma ortográfica vista do outro lado
Daqui do Brasil chega-me esta interessante opinião de Hélio Schwartsman sobre o Acordo Ortográfico. É um dos poucos autores que vê o problema central onde eu o vejo: na ingerência inadmissível do estado na língua. Leia aqui. (Agradeço a José Costa Júnior por me enviar o artigo.)
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10 comentários:
Li o texto e, mais uma vez, penso que esta crítica assenta em premissas erradas.
Não há no acordo (ou nas anteriores reformas) nenhuma norma imperativa que se dirija ao cidadão. Há apenas uma norma que se dirige às administrações e que foi cautelosamente (pelo menos a intenção era essa) redigida para não se afastar demasiado da prática dos locutores (que constitui o sangue vivo da língua).
Para perceber este ponto, basta atentarmos no seguinte : uma pessoa que não precise de se dirigir à administração, que não tenha que se haver com a segurança social, que não espere do Estado que eduque os seus filhos, etc., nunca se verá confrontada com o acordo (ou aliás com uma qualquer regra ortográfica, ou antes, apenas com a regra « espontânea » que advém da necessidade de comunicar com os outros, regra que, precisamente, tem muito pouco de « espontâneo »).
O acordo só afectará as nossas vidas na medida exacta em que nós precisarmos da administração.
Na mesma medida, a administração não pode deixar de ter uma influência, reflexa, mediata, sobre a evolução da língua, e sobretudo sobre a evolução da língua escrita. Isto também não é novo, como qualquer historador sabe…
O argumento do “ totalitarismo linguístico” não passa de um sofisma…
Já agora, desenvolvendo o argumento do meu comentário acima, eis porque julgo que as objecções do seu post de há uns dias não respondem à questão (não publiquei esta réplica na altura porque ainda não me tinha registado). Pegando ponto por ponto nas suas objecções :
1. Nada há no acordo que seja contrário à lei, ou à ordem pública, ou ofensivo para uma ou várias categorias de pessoas. Portanto não vejo nenhuma analogia com a situação (hipotética) que descreve, de uma lei que excluísse a contratação de mulheres ou de negros por pessoas públicas.
2. Não me parece que o acordo tenha sido negociado sem estudos científicos prévios. Mas, sobretudo, o acordo apenas impõe um padrão para as administrações dos países envolvidos, nada mais. Isto não significa que esse padrão só virá a ser acatado por burocratas, pois na verdade será também utilizado pela população em todos os seus contactos com a administração (nomeadamente, na escola e nos estabelecimentos de ensino). Mas também não significa que as populações dos países envolvidos se vão ver juridicamente obrigadas a modificar por completo as suas práticas linguísticas.
Repare que, em teoria, o padrão usado pela administração pode perfeitamente co-existir com outros padrões. Veja o caso dos países árabes que utilizam uma língua académica e administrativa distinta das variantes locais do árabe, variantes essas que não deixam de existir e de prosperar. Veja o caso da Índia, onde existe uma língua da administração central (o hindi) que co-existe com inúmeros outros dialectos e com o inglês. Veja o caso de vários países africanos (a começar pelos PALOP…), etc.
É certo que, na prática, é provável (pelo menos em Portugal) que o novo padrão venha a influenciar a prática dos locutores. Foi assim que sucedeu com as reformas ortográficas anteriores, e hoje ninguém escreve com « ph », embora não exista nenhuma norma jurídica que o proíba (nem, aliás, nenhuma norma que proíba a edição de textos escritos à moda antiga, como sucede muitas vezes com re-edições em fac simile). Mas isto não resulta de uma qualquer imposição jurídica. Resulta apenas da nossa propensão para utilizar no dia-a-dia o mesmo padrão que a administração. E essa propensão tem a ver com a nossa consciência de que a língua é um fenómeno social (social logo político) que nos une a uma comunidade (a nação), comunidade essa que é identificada com o Estado (mas não foi sempre assim e ainda hoje não é assim em muitas partes do mundo).
Não há, por conseguinte, nenhuma intromissão abusiva na esfera da liberdade individual. Os cidadãos serão tão livres, amanhã como hoje, de falar e de escrever conforme lhes der na real gana.
Dito isto, a questão levantada pelo seu post pode ser formulada como segue : é legítimo a administratção adoptar um padrão ortográfico para utilizar nas suas actividades ? Penso que é perfeitamente legítimo e, até, indispensável. Mais, observo que o acordo não muda nada nessa matéria : existe hoje um padrão ortográfico utilizado pela administração e ninguém se queixa disso.
A única coisa que mudará com o acordo, é a seguinte : em vez de termos um padrão nacional, adoptaremos um padrão internacional, juntamente com outros países que, tendo raízes comuns com as nossas, usam a mesma língua.
Se isso é bom ou mau é questão política.
A priori, parece-me que é bom. Bom para todos os países envolvidos, e bom para a língua portuguesa pois, para a esmagadora maioria dos seus locutores ela é considerada como uma língua única. Com efeito, Portugueses, Brasileiros, Angolanos, etc. todos temos consciência de falarmos « a língua de Camões » (embora estejamos conscientes de que essa língua é diferente da língua usada por Camões no século XVI).
Admito que possa haver argumentos em contrário, mas não os vejo nas críticas dirigidas habitualmente contra o acordo. Nem nas suas…
3. Em democracia, as normas impostas pelo Estado são impostas pelas « pessoas », que constituem o povo representado no Parlamento. As normas que não emanam do Estado é que podem ser suspeitas de assentarem em imposições arbitrárias e em poderes ilegítimos. Se a máxima que sublinhou em bold fosse verdadeira, o próprio Estado não teria razão de ser. Ora em Portugal, salvo erro, a esmagadora maioria das pessoas é favorável a que haja Estado. E não são totalitárias por causa disso…
Isto é verdade em geral, mas também no domínio da língua. Se, em resultado de uma norma social assente na tradição, a administração redigir ou utilizar documentos redigidos numa língua que só uma pequena parte da população entende, é perfeitamente legítimo intervir para corrigir a situação (que lesa os interesses da maoria dos administrados). Exemplos : é legítimo o Estado impor que as leis sejam redigidas em português (e não em latim, como foi o caso durante muito tempo, ou em inglês) ; é legítimo o Estado impor que a educação ministrada pelas escolas públicas seja feita em português, etc.
Este tipo de considerações está por trás de muitas normas do nosso ordenamento jurídico (incluindo normas constitucionais) que visam a proteger a língua portuguesa, língua que é (implicitamente) consagrada pela nossa constituição como a língua do povo português. Ninguém põe em causa estas regras. Porque é que as regras do acordo ortográfico não beneficiam da mesma legitimidade ?
4. Como disse acima, o acordo não obriga o cidadão a adoptar o padrão definido pela administração… salvo na medida em que estiver a tratar com a administração. A prática do locutor nunca é completamente livre, pois tem de se adaptar ao receptor. Quando o receptor é a administração (que nos representa a todos) é legítimo que se imponha o uso de uma língua compreendida por todos. Não há portanto analogia com a sua vida sexual (mas, já agora, se achar que o Estado não tem nada a ver com a sua vida sexual, leia atentamente o código penal).
5. Aí está a única questão que merecia ser desenvolvida. Mas infelizmente, o Desidério não explica em que é que o acordo mudará a situação para pior. Posso perceber que seja um bocado incómodo passarmos a escrever « ato » em vez de « acto ». Mas não pensa que o acordo trará contrapartidas compensadoras, facilitando a coordenação dos esforços desenvolvidos nos diversos países com o (mesmo) objectivo de proteger a (mesma) língua ? Não existem vantágens óbvias em passarmos a escrever com a mesma ortografia que os brasileiros ? Não acha que a cultura portuguesa só tem a ganhar com uma aproximação entre as administrações dos países cujos povos falam a língua portuguesa ?
Como disse, não tenho certezas nesse ponto. Mas gostaria que os adversários do acordo me explicassem quais são as terríveis desvantagens que temem (para além do ligeiro incómodo referido acima) pois, muito honestamente, não as vislumbro…
João Viegas
Caro João Viegas, não sou o Desidério mas não resisto a dois apontamentos.
1 - Pergunta: "Mas não pensa que o acordo trará contrapartidas compensadoras, facilitando a coordenação dos esforços desenvolvidos nos diversos países com o (mesmo) objectivo de proteger a (mesma) língua ?"
Pessoalmente não o penso. Acho que é um movimento misturando do bem-intencionado ao oportunismo, que faz girar bastante dinheiro e que nada aproveita ao comum falante de português. Porque se há algum problema de ligação Portugal-Brasil ele não é causado por umas quantas saudáveis divergências ortográficas. E bastam os exemplos de aplicação das mesmas palavras com sentidos diferentes para que tal devesse ser claro... Ou pelo menos assim o penso. Sabe, na minha terra diz que "não se conserta o que não está estragado", penso que é uma boa política a seguir.
2 - Diz: "Não existem vantágens óbvias em passarmos a escrever com a mesma ortografia que os brasileiros ? Não acha que a cultura portuguesa só tem a ganhar com uma aproximação entre as administrações dos países cujos povos falam a língua portuguesa ?"
e a isto pergunto-lhe: é a ortografia que impede o entendimento e a aproximação das duas administrações? se o acha por favor mostre-me exemplos que a mim é um argumento que me causa a mais profunda perplexidade. e mais lhe digo, o que enriquece a cultura é a diversidade, o caldo, e não a homogenização que é boa para o leite de pacote.
Caro Kyriu,
Aceito os seus argumentos, que me parecem de facto argumentos de fundo. Como disse, não tenho certezas nessa matéria.
Tenho ainda assim algumas duvidas (de pessoa que não é especialista na questão) : se a diversidade é boa, então, deveria existir um unico mercado livreiro e ser tão facil encontrar em Portugal livros editados no Brasil como livros editados em Portugal (ora não é isso que sucede, temos dois mercados estanques, o que no fundo é um desperdicio). Na mesma ordem de ideias, projectos culturais (editoriais e não so) portugueses deviam poder beneficiar de ajudas estatais brasileiras e vice-versa. Também não me parece que isto suceda na pratica.
Em meu entender, estas são as questões que deveriam ter sido debatidas, e não outras.
Por isso fico de pé atras quando vejo que os argumentos utilizados (como o do "imperialismo linguistico") não têm no fundo nada a ver com o assunto...
Corrijo : leia-se "totalitarismo linguistico" e não "imprerialismo linguistico"
Dou-lhe toda a razão nesse aspecto. Um exemplo simples, fiz um curso de engenharia onde não me recordo de nenhum aluno que tendo em opção uma tradução brasileira de um livro e acesso à versão original em inglês não opta-se pela inglesa. Eu pessoalmente insiro-me nessa categoria. O motivo não se prende com uma questão ortográfica mas de vocabulário. Aquilo fere-me a sensibilidade. Falo, é claro, em livros técnicos. Conheço outros cursos onde as pessoas preferem a tradução brasileira porque não dominam o inglês mas tendo opção em a versão brasileira e do português nacional optam pela última. E de novo, é a questão do vocabulário. Acha que os léxicos vão mudar? Não me parece.
Em livros de literatura e ficção tenho grande prazer em ler em qualquer "versão" de português. Porque aí é a própria diferença que sinto enriquecer o texto. E é isto que também temo que se vá perdendo. Parece-me que vivemos numa época de higienização, como essa aplicação ao jeito de greve de zelo que a ASAE faz de todas as directivas de Bruxelas. Atire-se a água e o bébé... bem, extravio-me, as minhas desculpas.
Se não há correspondência e mais intercâmbio cultural parece-me que os motivos nadam na forma como olhamos o Brasil e o Brasil (entenda-se Brasil, brasileiros e numa perspectiva estatística) nos olha do que em detalhes ortográficos. Nesse aspecto esse acordo é uma fraude relativamente aos "males" que pretende combater. Não consigo deixar de sentir que há gente a meter dinheiro ao bolso à minha pala (enquanto contribuinte) e isso é a maior tristeza disto tudo.
"O acordo só afectará as nossas vidas na medida exacta em que nós precisarmos da administração." (j. viegas)
Só? E quem publica, não verá os seus textos corrigidos de acordo com essa nova norma???
Peço desculpa por não responder aqui ao João; mantivemos uma conversa por email e respondi-lhe pessoalmente. O essencial da minha resposta é isto:
Penso que o erro do João é pensar que sem legislação sobre a ortografia haveria anarquia ortográfica. Isto é falso. Não há legislação sobre a gramática e não há anarquia gramatical. Não há legislação sobre o léxico e não há anarquia lexical. O princípio basilar de qualquer sociedade livre é que só se deve legislar sobre o que ficaria pior sem legislação. Ora, a ortografia não ficaria pior sem legislação, tal como a gramática ou o léxico ou a fonética não ficam piores. Em todos estes casos, não é necessário haver legislação para haver norma.
Quando a legislação não intervém, a norma existe, mas é orgânica e livre: resulta do uso que as pessoas fazem da língua, do que os linguistas, lexicógrafos e gramáticos escrevem nos seus dicionários e gramáticas e vocabulário se prontuários. Depois, a administração pública limita-se a seguir a maré, tal como todas as outras pessoas.
Mas com a legislação tudo muda de figura. O que acontece neste caso é que meia dúzia de linguistas sem qualquer qualificação especial que os distinga dos outros, excepto andarem nos corredores do poder, conseguem impor as suas ideias ortográficas a todo o país. Coisa que não conseguiriam sem a legislação — até porque são pessoas tão más academicamente que não escrevem bons dicionários, prontuários, gramáticas, etc., que, pela sua qualidade se tornem influentes, mudando as coisas organicamente. Isto é totalitarismo linguístico, evidentemente.
O argumento do João de que a administração pública tem o direito de legislar sobre a sua própria ortografia é sofístico porque não é disso que se trata. A legislação obriga todos os livros escolares, universidades, jornais e na verdade qualquer pessoa a adoptar uma ortografia arbitrária que um grupelho de frustrados quer impor ao país.
A analogia com países como a Arábia Saudita não colhe porque a nossa situação é totalmente diversa: não precisamos de duas línguas, nem de duas ortografias, uma para as pessoas comuns e outra para a administração pública. A administração pública pode perfeitamente limitar-se a usar a ortografia que toda a gente usa, e nada perde com isso; nem ganha seja o que for adoptando outra ortografia que pretende unificar mas nada unifica. Como poderia unificar, se continuaremos a escrever “económico” enquanto os brasileiros escreverão “econômico"? E que vantagem haveria na unificação? Há imensas variantes do castelhano, do inglês e de outras línguas, mas apenas duas do português.
Acresce que o João não distingue uma norma legislada de uma norma livremente seguida pelas pessoas. As duas coisas são muito diferentes. Imagine-se que faço amor com a minha mulher de uma determinada maneira, e que 90% das pessoas são como eu. Porreiro. Mas agora imagine-se que o estado resolve legislar sobre isso, determinando que é ilegal não fazer amor dessa maneira! Isto é absurdo. No entanto, se aceitarmos o argumento do João, nada haveria de errado, pois o argumento do João é este: “precisamente porque, sem legislação, não deixa de haver norma, e que essa norma (como qualquer norma) é imposta, pelos usos, a tradição, as relações de poder, etc, que é legítimo legislar” Não concordo minimamente com este argumento. A existência de norma não legislada não é razão suficiente para se legislar a norma. A razão suficiente para se legislar é sempre a mesma, haja ou não norma não legislada, e a razão é esta: ficaríamos claramente pior sem tal legislação do que com ela. Este é o único princípio de legislação defensável numa democracia.
Graça, repare que não existe nenhuma regra juridica que a obrigue a publicar com a nova ortografia (da mesma forma que não existe nenhuma regra, hoje, impedindo de publicar com uma grafia anterior às reformas do século xx).
Caso haja mais pessoas a achar esta discussão interessante, aqui fica a minha responsta aos argumentos de Desidério :
Caro Desidério,
Eis-nos precisamente onde eu queria chegar. A questão que levanta é a que torna o problema interessante para o jurista, pois obriga-nos a reflectir sobre o que é uma norma. Vamos por partes :
Primeiro ponto : A norma linguística é mais do que uma prática usual (como fazer a barba de manhã, ou fazer amor da mesma forma que 90 % das pessoas). A norma linguística implica uma convicção de obrigatoriedade que a assimila ao que nós, juristas, chamamos um costume. Quando as pessoas se esforçam por falar e escrever correctamente, não o fazem espontâneamente, nem inconscientemente. Fazem-no porque acreditam que devem seguir determinadas regras, que são obrigadas a isso. Há por conseguinte uma “juridicidade” embrionária nas regras linguísticas. Essa caractérística encontra-se de resto (com maior ou menor intensidade) noutro tipo de regras sociais : as regras da boa educação, as regras de etiqueta, algumas regras ditas de higiene, algumas regras éticas ou morais, as regras deontológicas, etc.
É portanto errado, em meu entender, dizer que se trata de "uma norma livremente seguida pelas pessoas" (conceito que é aliás discutível, pois contém uma contradição, mas isso levar-nos-ia muito longe). As pessoas seguem o padrão que lhes é imposto e essa imposição não cai do céu : é uma norma social, imposta (nomeadamente) pela necessidade de as pessoas comunicarem com a comunidade a que pertencem. Como qualquer outra imposição « tradicional », esta imposição pode dar lugar a abusos, ou simplesmente ter efeitos perversos. Vamos supor que existe uma seita, perdida algures em Trás-os-Montes, que acredita que os seus membros devem apenas falar em grego e que só devem ensinar grego aos seus filhos, impedindo-os de frequentar a escola e de comunicar com as outras crianças. Numa situação dessas, o direito permitiria a intervenção da autoridade. E ainda bem.
Este exemplo mostra que é legítimo o poder preocupar-se com a língua. De resto, de um ponto de vista histórico, o Estado moderno sempre se preocupou com a língua (até pela razão que indiquei num comentário anterior : o Estado moderno está intimamente ligado à ideia de comunidade nacional, a qual é muitas vezes definida a partir da língua).
Segundo ponto : No caso do Acordo (como no da anterior reforma) estamos a falar de uma norma que não é imposta de forma directa. Trata-se apenas de um padrão que vai influenciar a prática na medida exacta em que as pessoas aceitarem deixar-se contaminar pela língua da administração. É certo que o poder da administração é enorme, porque dependemos dela em inúmeros domínios, a começar pelo domínio da educação. Mas esta realidade tem a ver com a nossa escolha política. Escolhemos viver numa comunidade estadual e confiar ao Estado a incumbência de garantir inúmeros bens sociais essenciais. É normal que esta realidade tenha por consequência uma dependência linguística. O « totalitarismo linguístico » é inevitável e não é totalitarismo nenhum, trata-se apenas da consequência da nossa dependência do Estado (e nós é que escolhemos o grau maior ou menor dessa dependência).
Terceiro ponto : O Desidério dir-me-á, muito bem, mas então porque é que a administração fixa a norma ortográfica por uma decisão política, e não a norma gramática, ou o léxico ? Boa pergunta. Não tenho resposta definitiva mas cá vão alguns reparos que me parecem poder contribuir :
- No fundo a administração também utiliza um padrão gramatical e lexical, mas não sente necessidade de o explicitar ; de resto, em muitos países passa-se o mesmo com a ortografia : não conheço nenhuma regra que imponha à administração federal norte-americana um padrão ortográfico, nem à administração central britânica, mas ambas utilizam um padrão (e a prova é que conseguimos distinguir os dois padrões).
- A partir de quando é que uma decisão administrativa se transforma num problema político ? Talvez a partir do momento em que implica arbitrar entre vários imperativos de interesse público (exemplo : entre manter a tradição e facilitar o ensino ; outro exemplo : entre manter um padrão separado do de outros países, ou adoptar um padrão único).
- O Desidério não respondeu à minha pergunta em forma de « boutade ». Porque é que consideraria errado que um professor desse uma má nota ao aluno que escreve « farmácia » em vez de « pharmacia » ? A resposta só pode ser : porque o professor não está a cumprir a sua missão de ensinar a norma ortográfica fixada pela administração (e é precisamente isto que o Desidério espera que ele faça).
cadê o texto ?
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