quarta-feira, 14 de maio de 2008

Argumentos de autoridade



Um dos mails de reacção a um post mais divertido que já recebi informava-me que não tinha direito a considerar a astrologia uma banha da cobra não só porque ilustres cientistas do passado como Kepler e Galileu «acreditavam» em astrologia como também Fernando Pessoa era um firme crente nas charlatanices astrológicas.

Numa passagem da longa mensagem, o seu autor invectivava-me - acho eu, é complicado descodificar a a prosa com que fui mimoseada - em relação ao post «Charlatanices, pseudo-ciência e pós-modernismo - II» nos seguintes termos:

Chamo apenas a sua atenção para as questões seguintes:
- um saber pode ou não existir sem fundamentação implícita?
- caso possa, como distinguir os seus diversos praticantes?
- até que ponto está disposta a não aceitar argumentos de autoridade e a fazer juizos anacrónicos, isto é juizos sobre personagens históricos que quando hipoteticamente confrontados com suas opiniões não lhe dariam, de todo, razão.

Se lhe pareceu isto muito geral então pense em Kepler, em Galileu, em outras figuras do renascimento que se interessaram seriamente por astrologia. Se quer vir para mais próximo pense em Fernando Pessoa.


Achei divertidissimo este «conselho» paternalista a uma química que sempre se interessou pela história desta ciência. Sem grande esforço recordo inúmeros cientistas respeitados e respeitáveis que fizeram incursões mais ou menos abertas pela alquimia em pleno século XVIII. Assim, a aceitar a admoestação recheada de argumentos de autoridade do meu crítico, que espera que «pelo menos o nome de Cassirer a faça inflectir das tiradas irreflectidas», «o pudor e o apreço» agora não por Pessoa mas, por exemplo, por Newton - ou Nerval, Baudelaire, Yeats, Novalis, Coleridge ou mesmo Goethe na literatura -, seriam suficientes para renegar esta ciência tão insultuosa de grandes vultos da História e dedicar-me à procura da pedra filosofal!

O Desidério já escreveu sobre a distinção de bons e maus argumentos de autoridade mas não é preciso ler um manual de filosofia para perceber que esta admoestação é um exemplo de mau argumento de autoridade para além de ser profundamente cretina até nos cientistas escolhidos: quer Kepler quer Galileu são nomes que evocam exactamente a rejeição de argumentos de autoridade e ambos se distinguiram pelas suas propostas radicalmente opostas em relação ao que se aceitava na época. Aliás, se algum cientista aceitasse argumentos de autoridade deste calibre a ciência não progrediria. Mesmo os cientistas que são de certa forma ícones da ciência, como Darwin ou Einstein, propuseram teorias erradas que foram rejeitadas pela comunidade científica.

A ciência avança porque o apreço que temos pelos grandes cientistas do passado não é acompanhado de «pudor» que nos iniba de trabalhar e/ou refutar as suas propostas, bem pelo contrário: a melhor homenagem que podemos fazer à sua memória é «alimentar-nos da sua vitalidade de espírito, da sua visão corajosa e de longo prazo e das suas lições de feitos particulares» para ir mais longe.

Recordei a mensagem - que depois do ataque de riso inicial devido à pomposidade balofa da prosa me fez reflectir quão facilmente as pessoas se esqueçem destas lições de feitos particulares de vultos do passado e debitam máximas de nomes sonantes como corolário ou argumento último de teses normalmente cretinas, como esta defesa da banha da cobra - quando li que vai amanhã a leilão uma carta pouco conhecida de Einstein a Eric B. Gutkind datada de 3 de Janeiro de 1954.

De facto, o nosso espaço de debate nos posts sobre ciência e religião ostenta até à exaustão, como argumento de autoridade que porá fim a qualquer discussão, a citação de Einstein, «Science without religion is lame, religion without science is blind». O conteúdo da carta que amanhã será leiloada, que pessoalmente não considero argumento para nada, servirá pelo menos, espero eu, para alertar os que utilizam esta citação ad nauseam que é contraproducente usar Einstein para o fim pretendido. Na carta, Einstein escreve:

«A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia é uma colecção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis. Nenhuma interpretação, não importa quão subtil pode (para mim) alterar isto.

Para mim, a religião judaica, como todas as outras, é a encarnação de algumas das superstições mais infantis. E o povo judeu, ao qual tenho o prazer de pertencer e com cuja mentalidade tenho grande afinidade, não tem qualquer diferença de qualidade para mim em relação aos outros povos. Até onde vai a minha experiência, eles não são melhores que nenhum outro grupo de humanos, apesar de estarem protegidos dos piorescancros por falta de poder. Mas além disso, não consigo ver nada de ‘escolhido’ sobre eles.»

13 comentários:

jorge vicente disse...

embora eu nunca me sentisse tentado a debruçar-me sobre astrologia nem fazer qualquer curso sobre astrologia, sempre respeitei quem o fizesse e, por essa razão, acho de muito mau tom alguém gozar com o tema ou achar que quem acredita nisso é idiota ou não tem os conhecimentos necessários, etc, etc, etc.

para mim, charlatanice é alguém que tenta enganar os outros sabendo que aquilo que ensina não é verdadeiro. e isso é que deve ser denunciado.

se os outros gostam de astrologia, alquimia, o segredo, que importa? eu não sou o dono de nenhuma verdade. prefiro a minha do que ter de me submeter às ideias dos outros, sejam elas científicas ou espirituais.

um abraço
jorge vicente

p.s.
também acho que o leitor ter dado o exemplo do fernando pessoa não é exemplo nenhum. o nosso exemplo é que deve ser a autoridade para nós.

Armando Quintas disse...

Caro jorge vicente se se quiser utilizar a asrologia com finalidads ludicas nada contra, agora utilizar-la como se de ciencia se tratasse isso é que é inadmissivel, e não se esqueça que o dinheiro ganho pelos astrologos deriva do facto de afirmarem que é ciencia quando não passa de charlatanisse, acha que os astrologos são ingenuos ao ponto de pensarem que a astrologia é ciencia ou ao contrario sabem de ante mao que não é mas que querem vender o produto, cuidado com a ingenuidade porque neste mundo ninguem dá nada a ninguem..

jorge vicente disse...

caro armando quintas,
por essas e por outras é que muitos estudantes de astrologia são recomendados a não pedirem dinheiro nenhum se, eventualmente, optarem por ser astrólogos. o que é um pouco difícil já que o dinheiro atrai sempre mais dinheiro.

vejo mais a astrologia (a verdadeira astrologia, não aquela dos telejornais e das revistas) como uma filosofia, uma crença. e não como ciência. e existe uma grande diferença entre ambas. não estou a ver como é que um astrólogo irá defender as suas teorias numa tese tendo se se socorrer de evidências científicas.

mas, enfim, são ideias e pontos de vista diferentes.

um abraço a todos
jorge vicente

jorge vicente disse...

ou, talvez, seja melhor dizer crença em vez de filosofia, para não ofender os filósofos.

mais um abraço

Rui leprechaun disse...

Já tinha de facto ouvido falar dessa carta, mas não percebo, por esses parágrafos citados, em que é que isso contraria as opiniões conhecidas de Einstein sobre a religião.

Tanto quanto eu sei e li, ele sempre se referiu a "Deus" e à "religião", num sentido imanente ao próprio universo, com exclusão do aspecto pessoal do Divino, que é uma ideia central nas 3 grandes religiões monoteístas do Oriente Médio, mas de que Einstein não comunga.

Ora ele aí refere-se justamente à sua descrença na Bíblia e no Judaísmo como fundamentos dessa ideia de religião universal, melhor ainda, uma espiritualidade mais vasta e liberta de credos ou dogmas, cuja ideia exprimiu por diversas vezes.

A knowledge of the existence of something we cannot penetrate, of the manifestations of the profoundest reason and the most radiant beauty - it is this knowledge and this emotion that constitute the truly religious attitude; in this sense, and in this alone, I am a deeply religious man.

I believe in Spinoza's God who reveals himself in the orderly harmony of what exists, not in a God who concerns himself with the fates and actions of human beings.

The religion of the future will be a cosmic religion. It should transcend personal God and avoid dogma and theology. Covering both the natural and the spiritual, it should be based on a religious sense arising from the experience of all things natural and spiritual as a meaningful unity. Buddhism answers this description. If there is any religion that could cope with modern scientific needs it would be Buddhism.

And so on. Estes são apenas 3 exemplos, mas muitos mais podem ser encontrados aqui:

Albert Einstein Quotes on Philosophy of Religion, Theology, God

Logo, não vejo contradição alguma entre aquilo que o grande físico diz nessa carta e tudo aquilo que já antes tinha afirmado sobre Deus e a religião.

Por último, e já que me parece vir a propósito, deixo aqui um vídeo interessantíssimo em que a neurocientista Jill Bolte Taylor relata a sua extraordinária experiência pessoal durante um derrame cerebral maciço do qual só recuperou após 8 anos!

Most beautiful, human and touching, and also a marvellous insight into that sense of wonder and beauty that Einstein talks about.

My Stroke of Insight

So in a sense it's all the same...

Rui leprechaun

(...Life is like a magic game! :))

jorge vicente disse...

e essa espiritualidade mais vasta é que é (ou deveria ser) a verdadeira espiritualidade, não a espiritualidade que nós temos, onde existe um Deus-Homem que nós inventámos para não lhe chamarmos Zeus, Apolo ou Hera.

E pior é que certas correntes da new age já inventaram um Kryon que, dizem, existe desde o princípio do mundo. Nada tenho contra os ensinamentos dos livros de Kryon, mas começo a pensar que muita gente já está a começar a inventar novos deuses, em vez de se inventarem a si próprios como seres do mundo que amam, vivem e são felizes.

um abraço
jorge vicente

Nuno Sousa disse...

Muito bonito!
Adoro estas histórias. Quero partilhar uma bela página que anda a fazer furor entre meus conhecidos, e todos me perguntam o que acho de tal história maravilhosa!
Como físico, nem sei por onde começar a criticar, pois é tão maravilhidiota que por muito que tente, fico sem paravras.

O achado está aqui:

http://www.rincon.com.br/Paginas/Saqqara.htm

Cumprimentos

Sousa

fernando caria disse...

Cara Palmira

Finalmente consigo discordar de si :)
Não há bons argumentos de autoridade. Não são sequer argumentos. São sentenças de finalização das conversas que até esse momento poderiam ser racionais, válidas e interessantes!

Estou disposto a defender esta posição, argumentativamente. Claro!

Quanto à observação do "leprechaun" de não ver qual a contradição entre as citações da carta com as posições conhecidas de Einstein (parabéns pela resumida fundamentação de grande qualidade), meu caro, é esse precisamente o ponto. Não há contradição.

Penso que a Palmira o utilizou, para desmontar as objecções dos ignorantes, que costumam apelar a esse suposto argumento de autoridade, completamente infundado.

As objecções costumam ser do tipo:
- Mas o próprio Einstein acreditava em Deus!?
Sim. Mas era o Deus que o leprechaun tão bem descreveu.

É um excelente exemplo, de como os argumentos de autoridade não são sequer Argumentos Válidos, porque se baseiam em premissas falsas, das quais não pode nunca resultar uma conclusão Verdadeira e portanto válida.

" O PASSARO" disse...

não ha mais vinho pa esta mesa

boa noite

Armando Quintas disse...

Nuno Sousa, deu exactamento um bom exempo do lixo que n se deve ler, como historiador nem me vou dar ao trabalho de desmontar o texto, é puro lixo, misturar historia com pseudo-ciencias e palermices afim é o que dá..

Nando disse...

Sem entrar em detalhes sobre a discussão, deixo aqui um excerto da página sobre Kepler na Wikipedia (e discutido no excelente livro de John Gribbin, Science: A History):

"While Kepler considered most traditional rules and methods of astrology to be the "evil-smelling dung" in which "an industrious hen" scrapes, there was "also perhaps a good little grain" to be found by the conscientious scientific astrologer."

É verdade que Kepler serviu de astrólogo em muitas ocasiões, e especulou sobre o assunto, acreditando na possibilidade de existir uma influência entre os astros e as pessoas. Mas, como o próprio confessou em cartas (vide livro), fazia-lo primordialmente para ter acesso aos telescópios de então...

Mas já se sabe: o Kepler era astrólogo e o Einstein tinha más notas. E ambos cheiravam mal da boca. Ou a rosas, depende do que se quiser defender.

jorge vicente disse...

eu continuo a considerar de que se deve ler tudo (ou saber tudo) para se tirar as devidas conclusões. li uma parte daquele texto sobre o egipto e pensei:

como as coisas agora estão! quem vai procurar livros sobre esoterismo ou espiritualidade, só lê o que não deve e, depois, ficam todos com a cabeça estragada. e, depois, os livros mais interessantes como a blavatsky (apesar de algumas invenções poéticas), o fulcanelli e outros ninguém os compra.

"a voz do silêncio" da blavatsky traduzida pelo pessoa já a vi na fnac durante mais de um ano sem ninguém olhar para ele.

enfim...

um abraço a todos
jorge

Haddammann Verão disse...

Fé é intuição.
Crença é fantasia, é plágio da fé – subtende o embuste, o falso, o não-buscado.

A intuição provoca questões.
A Ciência especifica, elabora, as questões e as experimenta.

Do produto das experimentações vem a Tecnologia, e daí o melhor viver do ser humano.

A Ciência otimiza os cinco sentidos do homem.
A Fé otimiza o sentimento.

Quanto mais o ser consciente vivencia os resultados da Ciência, mais intui, e mais nuances de sentimentos comporta seu aporte bio-psicológico.

O que é dissonante disso é rompimento com o sentido da busca natural da Vida; e é o descambo para a tolice, a estupidez, a escravidão, a violência, a ignorância, a indolência, a covardia, e sofrimento.

A Fé infere o conceito de Deus pelo sentido de busca de cada um.

Quando se transforma o ponto de vista de uma inferência numa crença, e numa imposição, aí surgiu o sortilégio, o terror, o abismo, o vírus danificador do vigor psicológico da espécie humana.

Esse embuste acaba com o valor da virtude do sentimento humano e lança a espécie no atoleiro da cegueira, e a crer no espanto da soberba, nos absurdos da hipocrisia, nos laços das mentiras dos interesses; e nos faz destoar completamente das genuínas competências, afastar-nos da beleza, da vivacidade e do gozo pleno da Vida.

Haddammann Veron Sinn-Klyss

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...