segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

AVISO POR CAUSA DAS COISAS OU: OS HOMENS SEM CABEÇA

Novo texto de Eugénio Lisboa:

Se me cortassem a cabeça, a minha capacidade de pensar ficaria francamente diminuída. 
Bertrand Russell 

 Da epígrafe roubada a esse gamin que dava pelo nome de Bertrand Russell, o qual, em co-autoria com Alfred North Whitehead, publicou o famoso PRINCIPIA MATHEMATICA, pode concluir-se que há toda a vantagem em conservarmos, pela vida fora, a cabeça com que nascemos. Uma sociedade de decapitados teria uma probabilidade diminuta de dar uma contribuição séria ao avanço da Filosofia e da Ciência. 

Embora alguns chefes de regimes que se propuseram instalar o céu na Terra tenham preferido fazê-lo, cortando as cabeças a um aflitivo número de cidadãos recalcitrantes – logo, perigosos – também não é líquido que regimes de maior liberdade tenham sistematicamente produzido cidadãos que conservam intactas as suas cabeças. A verdade é que, como dizia Huxley, o acto de pensar é a excepção à regra de não pensar. Pensar pela sua própria cabeça, embora apoiado no esforço de pensadores antecedentes, exige trabalho e coragem. Dá muito mais fáceis dividendos ir com a corrente dominante e não causar ondas de inquietação. Em termos de carreira e de glória, chega-se lá mais facilmente, aceitando os dogmas em vigor, do que contrariando-os, quase sempre com sofrimento. Os frutos da terra caem mais provavelmente no colo dos conformistas. Ser Galileu não ajuda. Uma carreira universitária bem oleada não se faz, preferencialmente, com ideias originais, antes investigando afanosamente quais os evangelhos em vigor e seguindo-os com mansidão. O vigor de uma ideia que desarruma o statu quo incomoda os proprietários do saber, preferindo estes a devoção canina dos que seguem os caminhos já muito percorridos e confortavelmente acarinhados. 

 A surpresa desagradável é que esta glória conformista é fluentemente conseguida mas dura, de modo geral, muito pouco. Ao chato do Galileu chegaram quase a cortar-lhe a cabeça, mas, tendo ele insistido em conservá-la, com grande astúcia e engenho, a sua glória ficou para sempre e a dos seus perseguidores desapareceu. De Galileu, ficou o eternamente cintilante “E, contudo, move-se”, mais um punhado de leis que não esquecem, ao passo que, dos seus perseguidores, restou apenas o emblema infame: “Quot non fecerunt barbari fecerunt Barberini” (“O que não fizeram os bárbaros fizeram os Barberini”). 

As nossas faculdades de letras estão cheias de dogmas inamovíveis, guardados religiosamente por guardiões determinados e rigorosamente sem cabeça, ansiosos, por sua vez, por cortar as cabeças dos refilões com o abominável hábito de pensarem por si e de declararem singelamente o que encontraram. Aqueles que gostam de encontrar o já encontrado e muito venerado têm uma glória rápida mas de curta duração. O parvo de cabeça teimosamente em cima dos ombros demora a saborear os frutos da glória, mas tem-na melhor assegurada e de muito maior duração.

 Ninguém gosta tanto de cortar cabeças como aqueles que já há muito perderam a sua. Os decapitados odeiam ver as cabeças que lhes recordam as que já tiveram e de que abdicaram, a favor de um triunfo efémero. Porém, quando consentimos em que nos cortem a cabeça, é muito improvável que no-la devolvam. Ficarmos sem cabeça é um processo irreversível. Restará só uma glória aparente e um esquecimento garantido. A cabeça era, afinal, uma parte indispensável do equipamento e não o ter percebido a tempo foi um erro irreparável.

Aqui fica o aviso, por causa das coisas.

 Eugénio Lisboa

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

E, porque as coisas não têm de ser como são, pensar pela própria cabeça, faz todo o sentido, apesar de não ser de todos os quadrantes que se faz bandeira e apelo ao acto de pensar pela própria cabeça, bem pelo contrário.
O indivíduo nem sempre chega a entender a diferença entre pensar e pensar pela própria cabeça. É uma dicotomia algo artificial e estranha, porque, em rigor, só se pode pensar com a própria cabeça e, mesmo quando pensamos sobre aquilo que é cultura, objectivação de pensamento, ideias, juízos, ainda que não através de objectificação mais ou menos efémera, seja ou não linguagem, ou meio de comunicação, sonora, escrita, visual, qualquer que seja a codificação usada (por ex., dizer amo para significar odeio, etc..) é a cabeça de um indivíduo que “imagina”, “pensa” o que, aparentemente, está pensado, por exemplo, num livro.
Mas podemos ter a certeza, podemos estar seguros de que ninguém pensa pela cabeça de ninguém? Creio que sim.
No entanto, o acto de pensar é apenas uma forma consciente de pensar. Pensar nem sempre corresponderá a um acto consciente. A consciência, aquilo que, neste contexto, considero condição para se poder falar de acto, constitui, no conjunto da vida humana, suponho eu, baseado em mero palpite do tempo que passamos a dormir, ou quase a dormir, distraídos ou em estado “quase comatoso”, sendo a parte da vida que mais directamente testemunhamos, não deixa de ser relativamente muito pequena, embora a que é representativa para a nossa memória, do cronómetro biográfico.
E não é por não estarmos conscientes dos nossos metabolismos fisiológicos e processos neurológicos que eles deixam de ocorrer. Aqui, a nossa cabeça pouco ou nada pode pensar em termos de acto de pensamento determinante do processo. Ninguém, aqui, sequer pensa, nem pela própria cabeça, nem pela cabeça de outrem (se isto fosse possível).
É, não obstante, perceptível a diferença entre pensar como mero descodificador num processo de comunicação e pensar como emissor.
Se, perante uma assembleia de sábios, eu tivesse que falar com a condição de lhes dizer apenas algo que eles não soubessem, em verdadeiro e absoluto nome próprio, sem me ser permitido recorrer a citações, ou quaisquer ideias que não fossem minhas, não sendo aceite sequer que me referisse a qualquer doutrina, autor, teoria, ideologia, devendo mostrar originalidade e conhecimento de tal modo que eles próprios nunca tivessem sequer suspeitado, a minha prova seria algo parecido com uma missão impossível e não teria nada a ver com uma prova acerca do que pensaram os outros, sábios ou não.
Naquela minha hipótese, eu teria que pensar pela própria cabeça.
O problema é que pensar pela própria cabeça não é tão cómodo, nem tão fácil, nem tão compensador, nem tão “inteligente” e “económico” e, do ponto de vista da comunicação, é um desafio com obstáculos brutais, tanto para quem emite, quanto para quem recebe.

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