Sokal, que escreveu com o físico
belga Jean Bricmont (n. 1952) o livro Imposturas Intelectuais, saído na
Gradiva em 1999, visitou por essa altura Portugal e, quando o convidei para dar
uma palestra no Departamento de Física da Universidade de Coimbra, aceitou
logo. Mas não quis falar do livro, mas sim dar um seminário da sua área de especialidade.
Pediu para estar sozinho quinze minutos antes para se concentrar e depois deu a
palestra sem slides, escrevendo no quadro e falando em português (que tinha
aprendido no Brasil). Se já tinha grande admiração por ele, fiquei ainda com
mais.
Lembrei-me de Sokal, porque acabo
de ler um livro de Helen Pluckrose, uma crítica cultural britânica, e James
Lindsay (n. 1979), um físico-matemático norte-americano, intitulado Teorias
Cínicas, acabado de sair na Guerra & Paz, a editora de Manuel Fonseca
que agora está a fazer 15 anos (muitos parabéns!). Os autores citam o referido
livro de Sokal e Bricmont e agradecem a Sokal uma revisão da obra. Acontece que
Pluckrose, Lindsay e Peter Boghossian (n. 1966), filósofo e pedagogo norte-americano,
resolveram em 2017-2018 multiplicar o “embuste de Sokal”. O caso ficou
conhecido como “Sokal squared” (“Sokal ao quadrado”), ou “Grievance studies
affair” (“Caso dos estudos de agravo”). Decidiram escrever 20 artigos com
ideias absurdas, tal como o de Sokal,
mas agora abordando vários assuntos – sobre raça, sexo, género, colonialismo, obesidade,
etc. - e submeteram-nos a revistas
especializadas em diferentes áreas e, em geral, com um sistema de revisão pelos
pares. Estava planeado continuarem até 2019, mas em Outubro de 2018 confessaram
a sua brincadeira, depois de jornalistas do Wall Street Journal terem
descoberto que a suposta autora desses artigos, Helen Wilson, era um nome inventado. Quando o embuste foi admitido
pelos próprios – que disseram como Sokal que queriam testar a seriedade
intelectual das revistas – dos 20
artigos, quatro tinham sido publicados , três tinham sido aceites para
publicação, mas ainda mão estavam publicados, seis tinham sido rejeitados e sete
estavam ainda em fase de apreciação. Quer dizer, dos 13 artigos sobre os quais havia
decisão editorial a maioria tinham sido aceites!
Os artigos eram um chorrilho de dislates,
uns mais delirantes do que outros, mas muitos editoes e revisores não repararam.
Um dos artigos defendia que os cães
tinham um cultura de violação, outro sustentava que a fobia contra pessoas transgénero
podia ser ultrapassada com técnicas de penetração anal usando brinquedos sexuais
e outro ainda ensaiava reescrever o Mein Kampf, em linguagem feminista. Os autores explicaram
que a sua intenção era expor a falta de seriedade intelectual dessas revistas
associadas, todas elas, a ideias pós-modernas. Nelas a verdade e o rigor eram
sacrificados em favor de “agravos sociais”. Desencadeou-se então uma polémica
tal como antes tinha acontecido com Sokal: alguns acharam muito divertida sua denúncia
com exemplos práticos da falta de racionalidade em jornais académicos, ao passo
que outros condenaram o acto, por ter havido abuso da “boa-fé” do editores e revisores.
Os autores do “Sokal ao quadrado”,
que se auto-classificam como “liberais de esquerda com uma atitude céptica”
queriam afinal denunciar a “corrupção ideológica” da academia, em particular nalguns
meios de esquerda, os quais, levados pelas boas intenções de ataque ao racismo,
ao sexismo, ao colonialismo, etc., não mostravam qualquer espírito crítico, uma
atitude necessária à ciência e à filosofia. Segundo eles, essas falhas eram
filhas do pós-modernismo, uma corrente filosófica associada a nomes como os
franceses Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard, que campearam
entre os anos 70 e 90. Essa atitude, que é contrária ao à racionalidade, assenta num cepticismo
radical perante a possibilidade de conhecer seja o que for. Não há sequer uma realidade
comum, podendo qualquer pessoa emitir qualquer opinião sem poder reclamar maior
validade. A ciência era apenas uma construção de um grupo social – os cientistas
- que teria a mesma validade que a
construção social de qualquer outro grupo - como os feiticeiros. Para Pluckrose
e Lindsay, as agendas pós-modernas nos estudos de raça, sexo, género, etc. não passam de “pós-modernismo aplicado”. Elas
são filhas daquilo, que de um modo simples, gosto de chamar “tretas pós-modernas”.
Tendo o pós-modernismo estagnado como filosofia, deixou como herança uma agenda
política, uma agenda totalitária, pois os defensores dessas causas não admitem
ser contrariados. Claro que os autores de Teorias Cínicas aceitam que
existe racismo, machismo, colonialismo, etc.., isto é, há preconceito e
opressão, mas pensam também que, nos seres humanos, há um balanço entre a realidade
biológica e a construção social, não podendo a primeira ser ignorada.
Em Teorias Cínicas (o
título é um jogo de palavras com “teorias críticas”, uma expressão muito usada
pelos pós-modernos), dois dos autores do “Sokal squared” explicam muito bem, em 331 densas páginas, os erros do
pós-modernismo. O subtítulo elucida: “Como activistas académicos reduziram tudo
a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica a todos”. O leitor português, na boa tradução de João Luís
Zamith, tem agora à sua disposição um manual de desmontagem das tretas “pós-modernas”.
O primeiro capítulo explica o que é o pós-modernismo. O segundo explica a
“viragem aplicada do pós-modernismo”. Os capítulos seguintes trazem a análise
de casos particulares: a Teoria Pós-colonial
(“Desconstruindo o Ocidente para salvar o outro”), a Teoria Queer (“Liberdade
do normal”), a Teoria Crítica da Raça e Interseccionalidade (“Acabar com o
racismo vendo-o em todo o lado”), os Feminismos e Estudos de Género (“Simplificação
como sofisticação”) e os Estudos de Deficiência e de Gordura (“Teoria da
identidade dos grupos de apoio”). Para concluir, discute-se a “Justiça Social”.
Os autores distinguem a “Justiça Social” (em maiúsculas) que os pós-modernos
aplicados defendem da “justiça social” (em minúsculas), que defendem num quadro da democracia liberal. Os últimos
capítulos são: “Pensamento e Estudos em Justiça Social, “A Justiça Social de
Acção” e, para que não se diga que os autores são nada propõem: “Uma alternativa à Ideologia da Justiça
Social” (“Liberalismo sem política de identidade”). Acrescem muitas notas e uma
bibliografia seleccionada. Os autores escreveram, com conhe4cimento e rigor, um
livro que fazia falta neste mundo (incluindo Portugal), onde os autores
distinguem a “Justiça Social (em maiúsculas) que os pós-modernos aplicados
defendem, colocando-a em maiúscula, com a justiça social em mino osculas, que
os atuir-se defendem a irracionalidade e a confusão campeiam. O volume, saído em Agosto de 2020 nos Estados
Unidos, entrou logo para algumas listas
de best-sellers, como as do Wall Street Journal e do USA Today.
Foi, para o Times, o melhor livro político e social de 2020 e, para o Financial
Times, um dos melhores livros desse ano. Steven Pinker, professor de
Psicologia em Harvard (o autor de O Iluminismo Agora. Em defesa da razão,
ciência, iluminismo e progresso, Presença, 2018), elogiou-o: “Este livro
expõe as raízes intelectuais profundamente superficiais dos movimentos que parecem
estar a engolir a nossa cultura.” A obra está, em todo o mundo, a dar azo a acesas
discussões. Era também bom que desse
lugar a elas aqui, pois as correntes pós-modernas estão também infiltradas na nossa
cultura, incluindo a política, as universidades e os media. É muito difícil discutir
com os pós-modernos, porque eles nunca admitem estarem errados. A cegueira ideológica
tolda-lhes o espírito crítico. A leitura deste livro poderá fazer bem a quem,
com uma visão obnubilada, não vê mais do que
a “sua“ verdade.
Termino, respigando um excerto elucidativo do estilo do livro, este no quadro da crítica Teorias Pós-Coloniais: “O seu trabalho [dos pós-modernos] é de muito pouca relevância prática para as pessoas que vivem em países anteriormente colonizados e que tentam lidar com as consequências políticas e económicas desse processo. Não há grande motivo para acreditar que povos previamente colonizados tenham utilidade alguma para uma teoria pós-colonial ou descolonializante que argumenta que a matemática é uma ferramenta do imperialismo ocidental, que vê a alfabetização como tecnologia colonial e apropriação pós-colonial, que vê a investigação como mera produção de metatextos totalizantes do conhecimento colonial, ou que se preocupa em confrontar a Franca e os Estados Unidos pela sua apreciação de grandes rabos negros.” Os autores dão referências, pois todas essas tretas estão publicadas em revistas académicas…
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