sábado, 1 de maio de 2021

PLUCKROSE, LINDSAY E AS TRETAS PÓS-MODERNAS COM SELO ACADÉMICO

Um dos escândalos maiores da cultura contemporânea ocorreu há 25 anos: o físico norte-americano Alan Sokal (n. 1955), professor de Física na New York University e abalou a cultura pós-moderna quando publicou um artigo na revista Social Text, com o título ”Transpondo as Fronteiras: para uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica”, que não passava de um amontoado de disparates, designadamente que a gravidade quântica era uma construção social e linguística. O truque de Sokal foi discutir conceitos da Física de um modo que fosse ao encontro das ideias pós-modernas. Em Maio de 1996, o físico revelou o embuste. Começou aí uma polémica que ficou conhecida por “guerra das ciências”.

Sokal, que escreveu com o físico belga Jean Bricmont (n. 1952) o livro Imposturas Intelectuais, saído na Gradiva em 1999, visitou por essa altura Portugal e, quando o convidei para dar uma palestra no Departamento de Física da Universidade de Coimbra, aceitou logo. Mas não quis falar do livro, mas sim dar um seminário da sua área de especialidade. Pediu para estar sozinho quinze minutos antes para se concentrar e depois deu a palestra sem slides, escrevendo no quadro e falando em português (que tinha aprendido no Brasil). Se já tinha grande admiração por ele, fiquei ainda com mais.

Lembrei-me de Sokal, porque acabo de ler um livro de Helen Pluckrose, uma crítica cultural britânica, e James Lindsay (n. 1979), um físico-matemático norte-americano, intitulado Teorias Cínicas, acabado de sair na Guerra & Paz, a editora de Manuel Fonseca que agora está a fazer 15 anos (muitos parabéns!). Os autores citam o referido livro de Sokal e Bricmont e agradecem a Sokal uma revisão da obra. Acontece que Pluckrose, Lindsay e Peter Boghossian (n. 1966), filósofo e pedagogo norte-americano, resolveram em 2017-2018 multiplicar o “embuste de Sokal”. O caso ficou conhecido como “Sokal squared” (“Sokal ao quadrado”), ou “Grievance studies affair” (“Caso dos estudos de agravo”). Decidiram escrever 20 artigos com ideias  absurdas, tal como o de Sokal, mas agora abordando vários assuntos – sobre raça, sexo, género, colonialismo, obesidade,  etc. - e submeteram-nos a revistas especializadas em diferentes áreas e, em geral, com um sistema de revisão pelos pares. Estava planeado continuarem até 2019, mas em Outubro de 2018 confessaram a sua brincadeira, depois de jornalistas do Wall Street Journal terem descoberto que a suposta autora desses artigos, Helen Wilson, era um nome  inventado. Quando o embuste foi admitido pelos próprios – que disseram como Sokal que queriam testar a seriedade intelectual das revistas  – dos 20 artigos, quatro tinham sido publicados , três tinham sido aceites para publicação, mas ainda mão estavam publicados, seis tinham sido rejeitados e sete estavam ainda em fase de apreciação. Quer dizer, dos 13 artigos sobre os quais havia decisão editorial a maioria tinham sido aceites!

Os artigos eram um chorrilho de dislates, uns mais delirantes do que outros, mas muitos editoes e revisores não repararam.  Um dos artigos defendia que os cães tinham um cultura de violação, outro sustentava que a fobia contra pessoas transgénero podia ser ultrapassada com técnicas de penetração anal usando brinquedos sexuais e outro ainda ensaiava reescrever o Mein Kampf,  em linguagem feminista. Os autores explicaram que a sua intenção era expor a falta de seriedade intelectual dessas revistas associadas, todas elas, a ideias pós-modernas. Nelas a verdade e o rigor eram sacrificados em favor de “agravos sociais”. Desencadeou-se então uma polémica tal como antes tinha acontecido com Sokal: alguns acharam muito divertida sua denúncia com exemplos práticos da falta de racionalidade em jornais académicos, ao passo que outros condenaram o acto, por ter havido abuso da “boa-fé” do editores e revisores.

Os autores do “Sokal ao quadrado”, que se auto-classificam como “liberais de esquerda com uma atitude céptica” queriam afinal denunciar a “corrupção ideológica” da academia, em particular nalguns meios de esquerda, os quais, levados pelas boas intenções de ataque ao racismo, ao sexismo, ao colonialismo, etc., não mostravam qualquer espírito crítico, uma atitude necessária à ciência e à filosofia. Segundo eles, essas falhas eram filhas do pós-modernismo, uma corrente filosófica associada a nomes como os franceses Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard, que campearam entre os anos 70 e 90. Essa atitude, que é contrária ao  à racionalidade, assenta num cepticismo radical perante a possibilidade de conhecer seja o que for. Não há sequer uma realidade comum, podendo qualquer pessoa emitir qualquer opinião sem poder reclamar maior validade. A ciência era apenas uma construção de um grupo social – os cientistas -  que teria a mesma validade que a construção social de qualquer outro grupo - como os feiticeiros. Para Pluckrose e Lindsay, as agendas pós-modernas nos estudos de raça, sexo, género, etc.  não passam de “pós-modernismo aplicado”. Elas são filhas daquilo, que de um modo simples, gosto de chamar “tretas pós-modernas”. Tendo o pós-modernismo estagnado como filosofia, deixou como herança uma agenda política, uma agenda totalitária, pois os defensores dessas causas não admitem ser contrariados. Claro que os autores de Teorias Cínicas aceitam que existe racismo, machismo, colonialismo, etc.., isto é, há preconceito e opressão, mas pensam também que, nos seres humanos, há um balanço entre a realidade biológica e a construção social, não podendo a primeira ser ignorada.

Em Teorias Cínicas (o título é um jogo de palavras com “teorias críticas”, uma expressão muito usada pelos pós-modernos), dois dos autores do “Sokal squared” explicam  muito bem, em 331 densas páginas, os erros do pós-modernismo. O subtítulo elucida: “Como activistas académicos reduziram tudo a raça, género e identidade – e como isso nos prejudica a todos”.  O leitor português, na boa tradução de João Luís Zamith, tem agora à sua disposição um manual de desmontagem das tretas “pós-modernas”. O primeiro capítulo explica o que é o pós-modernismo. O segundo explica a “viragem aplicada do pós-modernismo”. Os capítulos seguintes trazem a análise de casos particulares: a Teoria  Pós-colonial (“Desconstruindo o Ocidente para salvar o outro”), a Teoria Queer (“Liberdade do normal”), a Teoria Crítica da Raça e Interseccionalidade (“Acabar com o racismo vendo-o em todo o lado”), os Feminismos e Estudos de Género (“Simplificação como sofisticação”) e os Estudos de Deficiência e de Gordura (“Teoria da identidade dos grupos de apoio”). Para concluir, discute-se a “Justiça Social”. Os autores distinguem a “Justiça Social” (em maiúsculas) que os pós-modernos aplicados defendem da “justiça social” (em minúsculas), que defendem  num quadro da democracia liberal. Os últimos capítulos são: “Pensamento e Estudos em Justiça Social, “A Justiça Social de Acção” e, para que não se diga que os autores são nada propõem:  Uma alternativa à Ideologia da Justiça Social” (“Liberalismo sem política de identidade”). Acrescem muitas notas e uma bibliografia seleccionada. Os autores escreveram, com conhe4cimento e rigor, um livro que fazia falta neste mundo (incluindo Portugal), onde os autores distinguem a “Justiça Social (em maiúsculas) que os pós-modernos aplicados defendem, colocando-a em maiúscula, com a justiça social em mino osculas, que os atuir-se defendem a irracionalidade e a confusão campeiam.  O volume, saído em Agosto de 2020 nos Estados Unidos,  entrou logo para algumas listas de best-sellers, como as do Wall Street Journal e do USA Today. Foi, para o Times, o melhor livro político e social de 2020 e, para o Financial Times, um dos melhores livros desse ano. Steven Pinker, professor de Psicologia em Harvard (o autor de O Iluminismo Agora. Em defesa da razão, ciência, iluminismo e progresso, Presença, 2018), elogiou-o: “Este livro expõe as raízes intelectuais profundamente superficiais dos movimentos que parecem estar a engolir a nossa cultura.” A obra está, em todo o mundo, a dar azo a acesas discussões.  Era também bom que desse lugar a elas aqui, pois as correntes pós-modernas estão também infiltradas na nossa cultura, incluindo a política, as universidades e os media. É muito difícil discutir com os pós-modernos, porque eles nunca admitem estarem errados. A cegueira ideológica tolda-lhes o espírito crítico. A leitura deste livro poderá fazer bem a quem, com uma visão obnubilada, não vê mais do que  a “sua“ verdade.

Termino, respigando um excerto elucidativo do estilo do livro, este no quadro da crítica Teorias Pós-Coloniais: “O seu trabalho [dos pós-modernos] é de muito pouca relevância prática para as pessoas que vivem em países anteriormente colonizados e que tentam lidar com as consequências políticas e económicas desse processo. Não há grande motivo para acreditar que povos previamente colonizados tenham utilidade alguma para uma teoria pós-colonial ou descolonializante que argumenta que a matemática é uma ferramenta do imperialismo ocidental, que vê a alfabetização como tecnologia colonial e apropriação pós-colonial, que vê a investigação como mera produção de metatextos totalizantes do conhecimento colonial, ou que se preocupa em confrontar a Franca e os Estados Unidos pela sua apreciação de grandes rabos negros.” Os autores dão referências, pois todas essas tretas estão publicadas em revistas académicas…

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