sexta-feira, 20 de setembro de 2019

LEONARDO E PORTUGAL


Ontem estive a falar sobre Leonardo da Vinci na Feira do Livro no Porto. Em baixo o meu texto no último "As Artes entre as Letras", precisamente sobre Leonardo (na figura o mapa-múndi atribuído a Leonardo):

Leonardo da Vinci (Anchiano – Vinci, 1452 – Amboise, 1519), o grande génio italiano que celebramos este ano por ocasião dos 500 anos da sua morte, é do tempo das maiores proezas dos Descobrimentos portugueses: foi contemporâneo dos reis D. Afonso V (1.º reinado 1438-1477, 2.º reinado 1477-1481), D. João II (1.º reinado 1477, 2.º reinado 1481-195) e D. Manuel I (reinado 1495-1521). Novos caminhos do globo foram, ao longo dos 67 anos da sua vida, abertos por navegadores lusos: em 1434 Gil Eanes dobrou o cabo Bojador, em 1488 Bartolomeu Dias dobrou o cabo da Boa Esperança, em 1498 Vasco da Gama chegou à Índia, em 1500 Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil quando estava em rota para a Índia, e em 1513 Jorge Álvares chegou à China. No entanto, é em vão que se procuram nos milhares de páginas dos livros de apontamentos de Leonardo, que constituem a sua obra maior, referência aos feitos dos portugueses, sobre os quais ele, em Itália, em Florença, em Milão, em Roma ou nos outros sítios onde esteve, deve ter tido conhecimento. Nem sequer há qualquer outra referência a Portugal.

 Uma aproximação aos Descobrimentos poderá ser a referência que faz a um seu mapa-múndi (“il mio mappamondi…, il libro mio”) no Codex Atlanticus, de 1480-1485, hoje guardado em Milão. Embora não se saiba ao certo a obra a que se refere, é impossível que o autor não tenha reflectido aí as descobertas marítimas dos portugueses, corrigindo assim a antiga cartografia ptolemaica. Em 1470, os navegadores João de Santarém e Pedro Escobar já tinham chegado ao arquipélago de S. Tomé e Príncipe, na costa da Guiné (a ilha do Príncipe foi baptizada em honra do filho de D. João V, que lhe haveria de suceder). Existe hoje guardado na Royal Library britânica, em Windsor, um desenho de um mapa-múndi, datado de ca. 1508, que pode estar relacionado com a referida indicação no Codex. O desenho, que mostra o globo espalmado em octantes, é um dos primeiros a representar a América, descoberta por Cristóvão Colombo, genovês ao serviço de Espanha, em 1492. Não se afasta muito da realidade, incluindo curiosamente tanto uma razoável representação do Árctico como um desenho precoce e imaginativo da Antárctica. Mas erra substancialmente no tamanho da Europa e na localização da América, que ostenta já esse nome. Mostra, embora com pouco rigor, a África, que tem inscrito o nome “Ethiopia” inscrito, e algumas ilhas atlânticas. Mostra a Índia, a China e o Japão, cuja existência era conhecida do Ocidente antes da chegada dos navegadores ocidentais. Manda a verdade dizer que é algo duvidosa a autoria de Leonardo desse mapa-múndi, pensando alguns especialistas que será antes de algum discípulo. Facto é que no referido Codex se encontra um esquisso mostrando o mesmo tipo de projecção em octante que o do mapa-múndi que alguns atribuem a Leonardo. Este terá conhecido Américo Vespúcio (1454-1512), o florentino que fez viagens à América no final do século XV e início do século, algumas sob a bandeira portuguesa, tendo escrito sobre elas (como é sabido, o nome de América refere-se a ele). O primeiro mapa do globo a referir o nome “América” é o chamado mapa de Waldseemueller, do nome do cartógrafo alemão que o publicou em 1507, mapa esse que se encontra hoje na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Há outras conexões de Leonardo com Portugal. Nos seus anos de juventude, por volta de 1475, Leonardo pintou um cartão, destinado a fabricar uma tapeçaria da Flandres, por encomenda de um florentino que provavelmente tinha negócios com Portugal relacionados com a Madeira ou África, para ser oferecido ao rei D. Afonso V ou ao príncipe seu herdeiro. Nessa altura Leonardo estava na oficina do seu mestre Verrochio, tratando-se por isso de uma das suas primeiras obras. A tapeçaria, que representava uma cena do paraíso bíblico (que para alguns tinha conexão com as míticas e procuradas terras do Prestes João na África), nunca foi feita, mas o desenho original, ainda que incompleto, foi admirado por vários artistas, incluindo provavelmente Rafael que pintou cena semelhante no Vaticano. Não chegou aos nossos dias. Há uma só obra de Leonardo em Portugal: o pequeno desenho Rapariga lavando os pés de uma criança, que está de posse da Universidade do Porto e deverá ser exibido na grande exposição sobre Leonardo que abrirá no Museu do Louvre, em Paris, a 24 de Outubro em Paris. Não se sabe bem como chegou a Portugal, mas sabe-se que deve ter sido feita em Florença, cerca de 1480. A autoria de Da Vinci ficou estabelecida apenas na década de 60, uma vez que antes se pensava ser de um obscuro maneirista italiano.

 Quando é que pela primeira vez se falou de Leonardo da Vinci em Portugal? Embora tenha havido notícias no reinado de D. Manuel a respeito de máquinas de inspiração leonardiana, o certo é que só no reinado de D. João III o génio italiano aparece referido. O primeiro tratado de pintura escrito em língua portuguesa é Da Pintura Antiga, de Francisco de Holanda (ca.1517-1585), recentemente publicado pelo Círculo de Leitores, na colecção Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa. O manuscrito data de 1548, mas só foi impresso no século XIX depois de ter sido encontrado numa biblioteca de Madrid. Numa secção do Livro II desse tratado intitulada “Tábua dos famosos pintores modernos a que eles chamam ‘Aguias,’ ” Francisco de Holanda, coloca no lugar cimeiro “Miguel Ângelo, florentim”, o famoso rival de Leonardo: “Querem que seja o primeiro, e que a todos leve a palma.” Florentim.” Mas, “a segunda dou a Leonardo da Vinci, que foi o primeiro que fez ousadamente a sombra.” Seguem-se na lista Rafael, Ticiano e Mestre Perino. No Livro I do mesmo tratado, ao falar dos pintores mais recentes, escreve: “Finalmente, no tempo do papa Alexandre, Júlio e Leo, primeiro Leonardo da Vinci, florentino, e Rafael de Urbino abriram os formosos olhos da pintura, alimpando-lhe a terra que dentro tinham, e, ultimamente, mestre Miguel Ângelo, florentino, parece que lhe deu espírito vital e a restituiu quase em seu primeiro ser e prisca animosidade. Mas a Leonardo e Rafael tenho mais inveja que a este famosíssimo pintor toscano, tudo isto segundo o pouco que eu entendo.” Francisco de Holanda possuiu um desenho de Leonardo, representando um velho (Busto de homem grotesco visto de perfil), mas essa obra não está hoje em Portugal, mas sim em Oxford.

Há uma outra ligação portuguesa, O quadro mais caro do mundo, rematado em leilão em 2017 por 450 milhões de dólares, o Salvator Mundi, que alguns atribuem a Leonardo, que não estará na próxima exposição do Louvre por os respectivos curadores duvidarem da verdadeira autoria. Acontece que o quadro pertenceu a um colecionador inglês, Sir Francis Cook (1817-1901), que teve título de nobreza e casa em Montserrat, Sintra, onde esteve parte da sua coleção. A pintura foi vendida ao desbarato, por 45 libras, em 1958 por herdeiros de Cook, por não se lhe conhecer valor na altura…

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