quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Humanidades ou Universidades para consumidores perfeitos?

Tomamos a liberdade de reproduzir parte de um texto de Margarida Miranda, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, publicado há dois dias (ver aqui). O inquietante problema que coloca não pode deixar de estar no centro do debate educativo, em geral, e do ensino superior, em particular. Trata-se da desvalorização do conhecimento escolar, aquele que, por princípio, só pode ser aprendido de um modo formal na relação entre professores e alunos.

A autora põe a tónica na desvalorização do conhecimento humanístico em favor do conhecimento científico mas, se esta foi uma realidade bem visível nas últimas décadas, num presente mais recente, insiste-se em tornar ambas as áreas destituídas de qualquer interesse se não lhes for conferido um evidente carácter profissionalizante e se, a este nível, não se conseguir demonstrar utilidade imediata. 

Estamos, pois, perante uma tragédia de enormes proporções de que ainda não podemos saber todas as consequências, uma tragédia que invade o magnífico edifício que demorou tantos séculos a construir: a Escola Pública. Por isso, textos como este ajudam-nos a tomar consciência do que está em causa e de, eventualmente, dentro da medida das nossas possibilidades, caminharmos em sentido contrário.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins

“Até à Segunda Guerra Mundial, as Humanidades estavam no coração do debate público e do projecto político. Nos últimos anos, o seu papel desvaneceu-se, foram marginalizadas em proveito das ciências ditas ‘duras’. Importa tirá-las dessa marginalidade (…) e torná-las de novo presentes na esfera das políticas públicas”. 
Foi este o mote da Conférence mondiale des huma-nités. Défis et responsabilités pour une planète en transition, organizada em 2017 em Liège pela UNESCO, que reuniu cerca de 1800 participantes do mundo inteiro. «E se suprimíssemos as Humanidades?» Foi com esta pergunta provocatória que Jean Winand, professor de Egiptologia na Universidade de Liège (…) intitulou a conferência inaugural. 
1. Da nostalgia de uma Idade do Ouro com 100% de emprego nasce uma tendência para identificar formação com profissão. São as entidades patronais e sindicais, mas também os próprios estudantes e os seus pais, atraídos pelos mesmos objectivos profissionais para os filhos. E por fim são as próprias universidades, uolens nolens sujeitas a um poder político que muitas vezes coincide com o seu próprio poder financeiro. 
É preciso alcançar ganhos imediatos. Assim, a lógica utilitária abate-se sobre os curricula universitários. As universidades são desencorajadas de criar percursos que não conduzam a níveis de empregabilidade de 100%: Universidades profissionalizantes, alinhadas com as necessidades da indústria e do mercado prefeririam formar (ou formatar?) diplomados directamente utilizáveis em determinadas funções económicas. 
Como se legitimássemos um novo perfil de servidão (…). Para que serve estudar línguas do passado se elas já não se falam nem sequer ajudam a arranjar emprego? 
A este propósito, não resisto a partilhar a experiência mais recente na Faculdade onde ensino: quando o Latim e até o Grego eram “cadeiras” impostas (…) apenas em licenciaturas onde pareciam de todo inevitáveis, os números de inscritos eram escassos; quando [se] permitiu aos estudantes maior flexibilidade na construção do seu próprio plano de estudos, os números aumentaram, como se [eles] vissem ali uma espécie de reserva fecunda, indispensável para nutrir os diversos saberes de onde provinham, fosse o português ou as línguas modernas, a história, a música ou a filosofia… 
Imaginemos que a pouco e pouco a indiferença pelo latim e o grego levasse à extinção do seu ensino. Dentro de poucas décadas, quando morresse o último latinista e o último helenista, teríamos de renunciar à recuperação de qualquer texto e documento nessas línguas (…). Acabaríamos até por perder o património de bibliotecas e museus. Seria apagar camadas sucessivas de memória até à total amnésia. 
E com a extinção da memória extinguir-se-ia qualquer desejo de interrogar o passado. Uma humanidade desmemoriada perderia por completo o sentido da sua identidade e da sua história. 
2. O desinteresse pelas Humanidades é claramente um reflexo da evolução da Universidade contemporânea. Por isso, dizia J. Winand, é preciso reflectir sobre o papel da Universidade e da instituição universitária, no contexto da aldeia global e de gerações de estudante sequestrados pelas redes. 
Claro que seria absurdo ignorar que a internacionalização e o intercâmbio de alunos e professores favoreceram enormemente a investigação e a difusão do conhecimento, e contribuíram para o desenvolvimento de regiões menos favorecidas. 
Mas a globalização também traz consigo uma ameaça. Globalização, diz J. Winand, rima com uniformização. Quem lida com programas de financiamento da investigação assiste a critérios de avaliação cada vez mais tipificados. Desse modo, generalizam-se temas de investigação por estarem ‘na moda’, tornando-se assim obrigatórios para a corrida ao financiamento (abstenho-me de dar exemplos). 
Um caso de perigosa uniformização é a imposição crescente da língua única, não só na investigação como no ensino. A adopção de uma língua única tem vantagens evidentes do ponto de vista das necessidades básicas de comunicação. Mas a riqueza da humanidade e das ciências humanas exprime-se precisamente na diversidade das línguas. Seria aceitável privar uma cultura (portuguesa ou outra) da sua própria linguagem científica, em nome da globalização que nos eleva as classificações internacionais? Não seria esse um novo poder de colonização? «Para os nostálgicos de uma hipotética unidade primitiva», escreveu J. Winand, «Babel foi uma maldição. Pelo contrário, temos de ver nela [a pluralidade das línguas] uma oportunidade». 
Não tem a história mostrado que foram governos autoritários os que tiveram a preocupação de eliminar dialectos ou línguas secundárias? Além da globalização, a universidade enfrenta ainda um segundo perigo: a mercantilização do saber, consequência da necessidade permanente de atrair recursos financeiros. 
É curioso verificar como o aumento exponencial do ensino superior coincidiu com o desinvestimento do Estado, ou seja, com o aumento da competição entre as universidades (…). E foi assim que, da democratização do ensino passámos às universidades de primeira e de segunda (…). 
3. Devemos então interrogar-nos pela definição ou o papel da ‘Universidade’ numa sociedade humanista. 
Queremos um estabelecimento para formação de especialistas destinados a determinadas profissões, que não só não fiquem caros à economia, como venham a aumentar as suas receitas? Ou queremos integrar nesse ensino e nessa investigação uma visão transversal, de carácter mais amplo, que ensine a reflectir sobre o sentido dessas práticas científicas e profissionais, de que a sociedade claramente precisa? 
Ou seja, a sociedade precisa de diplomados que sirvam a economia, tão qualificados para a sua profissão quão docilmente ignaros de tudo o que excede o m2 do seu saber? Ou antes de pessoas altamente qualificadas e ao mesmo tempo dotadas de espírito crítico para diagnosticar os problemas da humanidade e exercer a responsabilidade social que lhes cabe? 
Se queremos recuperar a centralidade do ser humano (que não se reduz ao bem-estar económico), não podemos suprimir as humanidades. 
A alternativa é forma(ta)r automatismos úteis mas sem alma, consumidores perfeitos, mas não pessoas livres, capazes de abraçar o bem comum."

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Apetece perguntar "quem se pode dar ao luxo de estudar Humanidades?".
Ninguém melhor do que os estudiosos e versados em Humanidades para explicar porquê, como e quem, ao longo da história, se dedicou às Humanidades.
Mas há cientistas que, inevitavelmente, mergulham nesse imenso passado de estudo e investigação, para nos contarem histórias de escolas e de indivíduos, sábios do seu tempo, que estudavam e investigavam sem outro objectivo que não fosse o de conhecer, o de responder a perguntas, a maior parte das vezes, de meros problemas sem repercussões económicas.
O passado exerce sobre a nossa curiosidade um poder "gravitacional" tão intenso e tão forte que nem precisamos de ser convencidos da sua importância. Se o passado está prenhe de futuros que não aconteceram, também esteve prenhe de futuros que aconteceram e continua prenhe de futuros.
Vivemos uma era de inseminação artificial.
Os lunáticos que viviam obcecados com a observação e a explicação do espaço sideral não conseguiam trocar noites a fio, a localizar estrelas e constelações, por um saco de batatas. Acreditariam eles que estavam no caminho das importantes descobertas científicas que se concretizaram nos últimos séculos da nossa era?
Mas estavam a inseminar e, de algum modo, apostavam nisso, em vez de apostarem noutra coisa.
Comparativamente, os progressos do conhecimento das últimas décadas, ou séculos, foram uma explosão de "nascimentos", após uma inseminação, gestação de milénios.
Para explicar o mundo, um cientista ocupa mais de 2/3 do seu trabalho a descrever o objecto das atenções dos antigos e as dificuldades que encontraram e que não conseguiram resolver.
Não obstante, explicar o mundo, numa perspectiva da evolução da ciência, exige e impõe que se explique a parte não menos importante do mundo, que é o mundo propriamente dito, a humanidade, os fenómenos sociais, os factos sociais, a realidade social.
Em boa hora, Augusto Comte, Karl Marx, Herbert Spencer, Durkheim, Max Weber, entre outros, procuraram aplicar o método científico à investigação e exploração da realidade social.
Os governos de hoje, os parlamentos de hoje, os partidos de hoje, a visão do mundo de hoje, os programas e as agendas políticas, culturais, económicas e científicas, devem tanto ou mais aos revolucionários da análise e do pensamento sociológico dos dois últimos séculos, como a todos os seus predecessores juntos.
E estou convicto de que as Economias de hoje assentam maioritariamente na riqueza gerada pelas Humanidades, Artes, Espectáculo, Desporto, Comunicação, Entretenimento, Jogos, Lazer, Cultura, Saúde, Direito(s)...
Nenhum governo, em países democráticos, escapa ao poder e à pressão crítica de um mundo que quer moldar os governos e não aceita ser moldado.
Tudo, em princípio, está na disponibilidade do homem, excepto o próprio homem, que não é disponível por nada, nem por ninguém.
Esta condição humana é a fonte, diria, de toda a conflitualidade e da esperança num mundo, não apenas mais conhecido, mas melhor.

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