sábado, 13 de abril de 2024

Eugénio Lisboa, e para sermos justos

Por João Boavida 

Neste momento da sua morte três ideias me parece justo realçar. A primeira é a de lealdade para com os seus amigos. Admirador de José Régio desde os tempos do seu serviço militar em Portalegre, e da tertúlia à qual também pertenceu, nunca deixou de estudar e valorizar a sua obra nem correu atrás de outras quando os ventos poéticos começaram a soprar noutras direções.

Devemos-lhe uma constante atenção à obra de Régio, publicando artigos, organizando antologias, coordenando a publicação das suas obras completas, participando em congressos e, sobretudo, chamando continuamente a atenção para a variedade, a complexidade e a riqueza dessa obra. A propósito, veja-se o livro coordenado por Filipe Delfim Santos, José Régio, correspondência com Eugénio Lisboa, editado em 2016 pela Imprensa Nacional. Pelas cartas, pelo prólogo do próprio Eugénio Lisboa, pelas riquíssimas e variadíssimas notas de rodapé e o índice onomástico com suas inúmeras referências, o livro tem grande interesse para o conhecimento do Portugal literário, cultural e até político da segunda metade do século XX.

Mas não só como crítico e estudioso da obra de Régio que Eugénio Lisboa nos deve interessar. As suas memórias - Acta est fabula (Lisboa, Opera Omnia) em cinco volumes - é um belíssimo “filme” da sua vida, sempre com a realidade cultural, social e política em pano de fundo, o que muito contribui para a compreensão do seu (e nosso) tempo. 

Era um homem do mundo, viveu em vários países, tinha grande formação tanto científica como literária, o que lhe permitiu desempenhar com competência e brilho funções de relevo em áreas muito diferentes. Além disso era um poeta (A matéria intensa, O ilimitável oceano, Poemas em tempo da peste, etc., são alguns dos seus títulos). 

Atento e interventivo, com grande facilidade escrevia sonetos e outros géneros, frequentemente críticos, muitas vezes ácidos e até cáusticos sobre os desmandos do mundo e os que, nele, tudo mandam. Veja-se, a este propósito, o livro forte, de dor, de indignação e até furor Poemas em tempo de guerra suja (Lisboa, Guerra & Paz, 2022) sobre os horrores da invasão da Ucrânia e Putin, destruidor de vidas e de cidades.

A outra justiça a fazer-lhe é a de que sempre foi fiel aos seus grandes autores. Sendo desde jovem um leitor voraz, pôde adquirir, com o incomparável prazer da leitura, uma escala de valorização literária que o orientou com segurança toda a vida. Os seus quadros de referência eram vastíssimos e o seu cânone sólido e bem estruturado. Aberto à novidade e a reconhecer valores novos, não corria, porém, atrás de modas, e toda a vida preservou os seus autores de referência e as respetivas obras, lendo e relendo com entusiasmo e paixão os seus enredos, conflitos e dramas. Não se coibia por isso de atacar com frontalidade os que desvalorizam o conteúdo, apagam o enredo e com experimentalismos exagerados e inovações a todo o custo frequentemente afastam os leitores e acabam por tirar-lhes o prazer de ler. 

Não tínhamos em Portugal outro com esta capacidade, com referências tão seguras e simultaneamente com tal poder de luta e de intervenção. Um dos seus últimos livros – Vamos ler, um cânone para o leitor relutante (Guerra & Paz, 2021) – é uma viva e sentida iniciação à leitura, que muito útil poderá ser para os que agora passam os dias (e as noites) com o nariz metido nos telemóvel e perdem o melhor da vida.

João Boavida 

(Artigo saído hoje no Diário de Coimbra).

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