domingo, 7 de abril de 2024

"AS LIÇÕES DOS MESTRES". UMA REEDIÇÃO COM GRANDE OPORTUNIDADE

George Steiner, leitor a tempo inteiro e crítico de literatura, ensaísta e escritor, académico de prestígio foi similarmente um professor comum, ainda que distinto de muitos pelo sofisticado pensamento que elaborou sobre esta condição. É um pensamento de que precisamos muitíssimo num momento em que a palavra "professor" se vê desaparecer do vocabulário pedagógico, ou do que se impõe como tal.

Por isso, alegrei-me com o facto de a editora Gradiva ter reeditado um dos seus livros (“As lições dos mestres”), inteiramente dedicado ao ensino. É a quarta edição em cerca de vinte anos, sinal de que há quem mantenha interesse pela essência de tal condição.

Depois de, no século XX, filósofos como Karl Jaspers (com o livro "Os mestres da humanidade"), Hannah Arendt (com o artigo "A crise da educação") e George Gusdorf (com o livro "Professores para quê?"), terem dissertado sobre a função estruturante do professor que se pode designar por "mestre", Steiner, na mesma linha de raciocínio, volta a ideias que eles tocaram e persegue outras no livro aqui em destaque.

O conteúdo é o resultado de uma série de conferências que realizou no início deste século (Origens duradouras, Chuva de fogo, Magnificus, Maîtres à penser, Em solo nativo, Um intelecto que não envelhece) e o título inspirado numa novela de Henry James (“A lição do mestre”), a que alude em mais do que uma passagem.

Presumo que, com o plural (“As lições dos mestres”), quis reconhecer a multiplicidade de nomes (da filosofia, da ciência, da arte, da religião…) que, desde a antiguidade à contemporaneidade, trouxeram algo de novo, de bom, de edificante à humanidade, e que, por isso mesmo, tem de ficar connosco e com os que virão depois de nós. Nomes, que identificam — como Jaspers diz — “mestres da humanidade” e que, apesar de menos célebres do que Sócrates ou Jesus, mesmo quase desconhecidos ou desconhecidos, assumiram o dever de educar. 
 
Obrigando tal dever que a figura do professor se aproxime da do mestre, Steiner detem-se nas suas marcas mais distintivas. Eis algumas delas:

1. Nem todos os professores são mestres. Muitos professores são, ao contrário, “amigáveis coveiros”, aqueles cujo ensino "ruinoso", se traduz na "instrução que, conscientemente ou não, é cínico nos seus objectivos puramente utilitários". Esse ensino "arranca a esperança pela raiz (...) é, quase literalmente, criminoso e, metaforicamente, um pecado. Diminui o aluno, reduz a uma inanidade cinzenta a matéria apresentada. Derrama sobre a sensibilidade da criança ou do adulto o mais corrosivo dos ácidos, o tédio, o metano do ennui. Para milhões de pessoas, a matemática, a poesia, o pensamento lógico foram destruídos por um ensino inane, pela mediocridade, talvez subconscientemente vingativa, de pedagogos frustrados (...). Em termos estatísticos, o antiensino constitui praticamente a norma (...). Entre os professores do ensino elementar, instrutores da mente e do corpo, são alarmantemente escassos os que têm plena consciência daquilo que está em jogo, do equilíbrio entre confiança e vulnerabilidade, da fusão orgânica entre responsabilidade e sensibilidade" (p. 41).
2. Um mestre tem consciência de que a sua acção é sempre “uma intrusão” na "alma humana”. É que "tem nas mãos o mais íntimo dos seus alunos, a matéria frágil e incendiária das suas possibilidades — toca na alma e nas raízes do ser". Nesta conformidade, porque "o verdadeiro ensinamento pode ser terrivelmente perigoso" (...), "ensinar sem uma grave apreensão, sem uma reverência perturbada pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê‑lo sem considerar as possíveis consequências individuais e sociais é cegueira" (p. 124). Nessa intrusão revela-se o que há de humano no ser humano, o que ele já é e o que pode ser. Por isso o ensino tem sempre no horizonte a "assustadora interferência na alma, no desenvolvimento, de outro ser humano" (p. 163).
3. Um mestre deve estar, portanto, preparado para uma relação, que, mesmo sendo, à partida, definida, inclui, como todo o encontro humano, tanto o encanto como o desencanto, os quais "darão forma a impulsos de afeição ou aversão, ou a complicadas fusões de ambos os sentimentos" (p. 49). Para ilustrar a ideia, Steiner recupera diversos casos de relacionamento professor-aluno/s e os seus múltiplos e misteriosos contornos. Ao final, nota a sua possibilidade: "falível, marcada quase inevitavelmente pela inveja, pela vaidade, pela mentira e pela traição" mas, por outro lado, "as suas esperanças eternamente renovadas (...) apontam para a dignitas da pessoa, para um regresso ao que de melhor existe em nós. Nenhum meio mecânico, por mais expedito que seja, nenhum materialismo, ainda que triunfante, poderá erradicar esse alvorecer interior" que acontece na relação (p. 206).
4. Um mestre deve também estar preparado para a partida, sendo esta data previsível. Mas não para uma partida qualquer, uma partida em que o estudante estará diferente do que era à chegada. Leva algo mais ou, melhor, algo diferente da humanidade em si; algo da humanidade que se tornou no seu “eu” e que, por princípio, ele irá levar a outros, que terá futuramente à sua responsabilidade. É uma partida não apenas de ordem espacial e temporal, mas sobretudo de constituição do pensamento. Nas palavras de Steiner: "o grande ensino é aquele que desperta dúvidas, que encoraja a dissidência, que prepara o aluno para a partida"(p.124). E, depois de ponderar os casos, no final, um verdadeiro Mestre deve estar só. 
5. Um mestre valoriza a memória, quer a colectiva quer a individual, de resto, intimamente ligadas. É que sem transmissão do saber, que se constitui como memória da humanidade, sem a ligação do passado ao presente, que ele permite, não há futuro, pelo menos do modo como o imaginamos. E o que "decoramos" desse saber, fica em nós, torna-se um saber de "coração" A integração do saber, que é memória, na memória de cada um não é, porém, o fim último do ensino, como sublinha Steiner, mas o ponto de partida para levar a compreender, criticar, criar… apreciar. Por isso, “os mestres protegem e impõem a memória” (p. 173) que, sendo «a Mãe das Musas», é precisamente o dom humano que possibilita a aprendizagem" (p. 53). Ou seja, aquilo que sabemos de cor amadurecerá e desenvolver‑se‑á dentro de nós. O texto memorizado interage com a nossa existência temporal, modificando as nossas experiências e sendo dialecticamente modificado por elas. Quanto mais vigoroso for o músculo da memória, mais bem protegido estará o nosso ser integral. O censor ou a polícia do Estado não podem extirpar o poema memorizado" (p. 54).

O “professor tem consciência da magnitude e, se quisermos, do mistério da sua profissão" (p. 40), em última instância "dá sentido à mortalidade" (p. 78). De entre as lições que Steiner procurou nos mestres que visitou esta é, a meu ver, a mais profunda e, evidentemente, a mais difícil. E também a que mais se afasta do nosso horizonte.

Maria Helena Damião

3 comentários:

António Pires disse...

Ser professor, neste primeiro quartel do século XXI, em Portugal, é, sobretudo, muito difícil!
Seja lá quem for, para não ferir suscetibilidades entre os mais altos responsáveis pelas políticas na área da educação, que destituiu de autoridade e autonomia científica os professores do ensino secundário no exercício da sua nobre função de ensinar, destruiu, com uma só cajadada, o binómio ensino/ aprendizagem, sem o qual toda e qualquer escola não é mais do que uma miragem.
Para abreviar explicações, tenho de dizer que ser professor, secundário ou superior, não é passar diploma de mestre a qualquer macaco, como acontece em Portugal.

Helena Damião disse...

Por isso mesmo, caro Leitor António Pires, como professores precisamos de reafirmar a relevância do professor na educação daqueles que a escola pública tem obrigação de educar. Isso obriga-nos, evidentemente, a pensar na formação que está a ser proporcionada aos professores. Não vejo que estejamos no caminho certo, mas podemos escolher por outro caminho ou, pelo menos, tentar ir por outro caminho.
Cordialmente, MHDamiãp

Mario Ricca disse...

Certamente devemos fazer todo o esforço para melhorar a formação e a qualidade dos professores; mas há excesso de idealismo nas palavras de Steiner.
Em primeiro lugar, os professores formam-se em universidades ou institutos superiorres como o Piaget, onde frequentam aulas de cátedra, quer no campo específico a que se dedicam (línguas, matemática, história....) quer nas cadeiras ditas "pedagógicas" que na minha experiência sáo uma vergonhosa fraude, em que se aprendem de cor uns dogmas e outros chavões que depois se debitam no teste para tirar 16 ou mais - ninguém chumba a coisas como "sociologia da educação". Portanto, acabado o curso, tiveram doses maciças do modelo "doutoral" , e nenhum Mestre lhes saiu em sorte para contrapor.
Em segundo lugar, vem o estágio. Tanto quanto sei, funciona como no meu tempo - há poucos orientadores, muitos são rotineiros oportunistas (o meu vivia de dar 'explicações') que se candidatam para ter menos turmas, um horário mais composto e um acréscimo de vencimento. Qualquer um pode ser orientador de estágio, e o que tem de fazer é quase só gerir a competição entre os seus estagiários, nalguns casos sei que se usa o "dividir para reinar". Os estagiários topam e depois reproduzem o modelo - alguns não, claro.
Mas o que mais contradiz Steiner é a habitual lei estatística. Há sempre alguns muito maus professores, e alguns "Mestres"; mas a distribuição gaussiana impõe que a grande maioria sejam medianos, e gerem mediania nos alunos. Desejar que 'todos' os professores sejam Mestres é utopia irrealista. Nem na Finlânda - onde já perceberam que é preciso investir nas condições materiais e organizacionais do processo: bons e estimulantes espaços, horários flexíveis, materiais de excelência - e os professores medianos conseguem resultados bem bons. Não formam génios, claro, os Mestres são uma imensa minoria , mas superam os resultados da maioria dos países na formação específica - matemática e ciências, artes e humanidades.
Pragmatismo é o que é preciso, não idealismo.

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