quarta-feira, 17 de abril de 2024

DIREITOS E DEVER(ES)

Texto gentilmente oferecido por Carlos Fernandes Maia, professor de Ética.
 
O tema dos direitos e deveres desperta uma série de interrogações quanto ao alcance ou delimitação das perspetivas a encarar. 
 
Desde o que podemos ou somos obrigados a fazer até à comparação histórica, sociológica ou ontogenética, passando pela associação a regimes políticos ou mesmo ao âmbito ético-moral, os direitos e os deveres têm formulação objetiva antiquíssima, como a presente no código de Hamurabi ou nos mandamentos moisaicos.

Nota-se nessas proclamações uma dominância dos deveres sobre os direitos, ao contrário das formulações atuais, que se perspetivam mais como garantia de direitos
 
Há dois reparos, no entanto, que merecem ser feitos: em nenhuma das proclamações, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, até às mais recentes se dá como adquirido o que é outorgado.

A declaração é nitidamente um ideal a que se procura vincular a crença e a prática dos homens numa perspetiva de dignificação da singularidade e da comunidade. Se essa crença e essa prática fossem efetivas, a declaração era redundante. Disto é bem exemplo o primeiro período do artigo primeiro da declaração pós-revolução francesa: «os homens nascem e são livres e iguais em direitos». 
 
O outro reparo tem a ver com o risco de sectarismo que uma boa intenção e profunda necessidade podem conter aquando de uma declaração de direitos. No mesmo caso da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o segundo período é deveras problemático: «as distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum». Primeiro, porque as distinções não devem ser sociais, mas operacionais; e, segundo, porque a ‘utilidade comum’ permite os regimes corporativos e sociocráticos ou mesmo ditatoriais, nega a dignidade primordial da pessoa e obstaculiza a iniciativa individual na construção do bem comum. Mas o próprio título, ao distinguir homem e cidadão, é sectário, na medida em que com o termo cidadão se quer selecionar a dimensão laica do homem, o que implica, a contrario, a desvalorização dos crentes.

A abordagem dos deveres suscita hoje uma recusa primária por associação direta com a sujeição a ordens ou interesses de outrem e, por isso, com a falta de liberdade ou mesmo ofensa à dignidade da pessoa.

Historicamente, o acontecimento marcante dessa nova perspetiva foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – possível de se ver na sequência da Declaração de Direitos de 1689 ou até da Magna Carta, de 1215 – saída da revolução francesa. Na prática, seguiu-se o regime de terror, em que ninguém tinha garantida sequer a ligação da cabeça ao tronco.

Mas, recuando vinte e seis séculos, podemos constatar que nos atenienses se inverteu a relação entre direitos e deveres aquando da invasão persa: antes, o cidadão usufruía de direitos conforme o que fazia e pelo bem da polis; depois, se os invasores se consideravam senhores de direitos, os atenienses passaram para eles o dever de cuidar do bem público e exigiram direitos para si.

É bem conhecida a posição de Kant, segundo a qual as coisas têm preço e só o homem tem dignidade. O tema dos direitos e dos deveres pode ser reduzido, em termos práticos e de fundamentação, a esta perspetiva. Ou seja: a exigência de direitos e a imposição de deveres tanto remetem para a justificação do que o homem faz ou evita, como manifesta o grau de dignidade atingido.

É nesta perspetiva que o título tem o termo dever no singular e no plural
 
Com o plural identificam-se não só as práticas operativas de responsabilização quanto aos outros – e aos direitos destes – como o respeito pela normativa moral atitudinalmente bondosa. Com o singular afirma-se o dever de ser homem e fundamenta-se o cumprimento dos deveres parciais quanto ao próprio e quanto ao contributo para a satisfação dos direitos dos outros.

Não tem, portanto, sentido, considerar o homem como um sujeito de direitos sem mais. Esta perspetiva existencialista foi importante para superar uma visão essencialista apoiada na religião e na monarquia absoluta – ou nas ditaduras modernas –, mas não é exequível por si mesma. E a confirmá-lo está a infeliz afirmação do existencialista ateu Sartre, segundo o qual ‘o inferno são os outros’. A afirmação só teria sentido sob a forma de lamento quanto à impossibilidade – por deficiência, circunstância ou falha de vontade – de muitos homens conseguirem afirmar a sua dignidade no saber, na solidariedade, no aperfeiçoamento ético, etc.

De facto, como reconhece Santabárbara (2019, 47), o que a experiência nos mostra é desigualdades não provocadas intencionalmente, contingências determinantes, barreiras intransponíveis, etc. De modo que os outros, agindo consciente e voluntariamente na procura do aperfeiçoamento, isto é, com liberdade e responsabilidade, são antes um apoio na construção da humanidade – de que cada um participa e de cuja qualidade beneficia.

Associar a dignidade do homem à igualdade de direitos pode exigir que se fundamente essa dignidade. O autor citado remete para uma fonte transcendente – uma divindade – a mesma que fundamenta a igualdade entre os homens baseada na criação idêntica ou mesmo na filiação divina. 
 
Todas as fundamentações filosófico-ontológicas têm tendência para se refugiarem no absoluto, por natureza exterior ao homem. Isso representa a submissão a uma visão pessimista do ser humano, apoiada com a razão na fenomenologia da violência, da prepotência, do crime, etc. Mas o facto de pessoas ‘bem colocadas na vida’ se disporem a legislar sobre direitos dos mais desfavorecidos é um sinal evidente do sentido de dignificação humana. Se ainda hoje a humanidade sobrevive e até melhora as condições de vida e as exigências éticas – apesar das ameaças por culpa própria direta ou indireta – é porque há uma grande maioria a cumprir os seus deveres operacionais e circunstanciais e o seu dever de ser pessoa inteligente e aberta: inteligente porque adaptada às situações diversas e aberta porque quer aperfeiçoar-se.

O mais que uma fundamentação transcendente poderia justificar é o que se pode chamar dignidade constituída, ou seja, aquela a que se refere Kant, isto é, que cada homem, por ser homem, deve ser tomado como fim e não como simples meio. 
 
Mas… – e aqui poderiam aparecer muitos ‘mas’ – é muito difícil reconhecer dignidade a um ditador sanguinário, a um assassino em série, a um governante corrupto – como até a qualquer profissional sem escrúpulos quanto aos direitos dos usuários. E, ao invés, admiramos quem cuida e promove o aperfeiçoamento pessoal e coletivo. A esta orientação mais ou menos esforçada e bondosa chamaríamos dignidade constituinte. E foi esta que justificou a outorga de direitos aos que são menos dotados, bafejados pela sorte ou capazes de reivindicações.

Não se nega de forma alguma o papel das lutas sociais e pessoais de reivindicação de direitos. Mas assim como não é justificável que, depois de adquiridos, não tenham como correspondência o dever pessoal e social de melhoria, no que depende dos ‘beneficiados’, também qualquer direito atribuído não poderá ser objetivamente satisfeito se não houver quem cumpra o dever correspondente. 
 
Referência: Santabárbara, Luis G-.C. (2019). Entre la utopia y la realidad. Santander: Sal Terrae.
 
Carlos Fernandes Maia
[O texto tem continuação] 

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

As declarações de direitos humanos não são um pau de dois bicos mas, pelo menos, de três. Não é correto considerá-las como a outra face (dos deveres) da mesma moeda. Sabemos da experiência corrente, quotidiana, que um dever refere-se a um exercício enquanto um direito se refere ao exercício e ao gozo. Os direitos e deveres humanos, não estou a falar de direitos e deveres de origem contratual, que são a maioria, e nestes ressalta a negociabilidade, por exemplo, da liberdade, não têm correspondência sinalagmática, de reciprocidade e igualdade restrita. Animais, crianças, incapazes, inimputáveis, são exemplos de direitos sem correlativos deveres.
Passando dos três bicos para a questão da razão de ser, que não confundo com a fundamentação teórica, dos direitos e dos deveres, as declarações de direitos não carecem de ser complementadas com uma declaração de deveres, a não ser que não sejam universais, porque nesse caso é necessário discriminar os direitos e os deveres.
Se perguntarmos porque surgiram e porque se afirmaram as proclamações da liberdade e da igualdade, não podemos deixar de pensar que na sua génese, histórica e cultural, está uma razão de ser que é uma evidência lógica, em geral e abstrato. Uma coisa são os factos, a liberdade e a igualdade concretas e outra são os direitos, o direito. Aquelas não devem deixar de ser “julgadas” à luz do direito.
A questão da dignidade humana, em meu entender, tal como a questão da dignidade dos outros seres vivos, radica na mesma lógica do direito, da igualdade e da reciprocidade.
No caso dos humanos, a dignidade, ser digno de direitos, pode ser interpretada em várias perspetivas, mais ou menos paternalistas e hierárquicas, por exemplo, o direito como algo que é concedido por quem tem o poder (no limite, de vida e de morte), religioso, político, militar, económico, como algo que tem a sua fonte numa relação de forças de cujo atrito se alcança algum equilíbrio, no entanto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem parece ir mais longe e colocar a tónica no facto, e no princípio, de que os direitos humanos são individuais, pessoais e não estão (não devem estar), na esfera de disponibilidade de quem quer que seja, inclusive do próprio indivíduo. Não são, nesse aspeto, um título, ou um estatuto, hierarquicamente conferido, ou concedido, como acontece, por exemplo, no caso do cidadão.
Não dependem de estarem escritos ou reconhecidos em algum lugar, inclusive nessa Declaração, o que torna este documento, também por isso, um grande pilar da civilização. Aliás, em termos de hierarquia, eles são o topo da pirâmide, justamente no lugar onde as religiões colocavam Deus.
Mas esta dignidade tem o reverso da medalha: a violação de um valor tão alto é mais grave do que a violação de um valor mais baixo. E essa dignidade do homem não o dispensa, nem o põe a salvo de ter que responder por ela.

De Rerum Natura disse...

Muito obrigada, estimado Leitor Carlos Ricardo Soares pela sua reflexão que amplifica a aqui realizada. A segunda parte do texto, que em breve publicaremos, vai, de algum modo, no(s) sentido(s) que aponta.
Cordialmente;
MHDamião

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